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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

CRIATIVIDADE E OUTRAS PAUTAS

 

Rembrandt: a propósito de um autorretrato1

 

Rembrandt: resonances of a self-portrait

 

 

Vera R. F. Montagna

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro da Diretoria Científica e da Divisão de Documentação e Pesquisa Histórica da SBPSP. Exerce regularmente atividade artística de pintura e de gravura em metal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora desenvolve o tema do impacto estético da arte no espectador, tomando como guia uma experiência pessoal diante de um autorretrato de Rembrandt (1660) e abordando algumas relações entre o espectador e a arte.

Palavras-chave: Arte. Rembrandt. Experiência. Apreciação estética. Congruência simbólica.


SUMMARY

Taking her personal experience in front of one of the latest Rembrandt's self-portrait (1660) as a guide the author considers some relations between the audience and Art and its aesthetic impact.

Keywords: Art. Rembrandt. Experience. Aesthetic appreciation. Symbolic congruence.


 

 

O olhar de Van Gogh é de um grande gênio,
mas o modo como eu o vejo me dissecar do
fundo da tela onde nasceu, me faz sentir que
não é mais o gênio de um pintor que vive nele,
mas o de um certo filósofo, nunca por mim
encontrado em vida.

(Antonin Artaud)

O que em mim sente está pensando.
(Fernando Pessoa)

I know pregnant silences- I don't have to believe in them.
(Wilfred Bion)

 

 

A criação artística nasce de uma necessidade interior, de buscas emocionais e espirituais, de desejos que se traduzem num modo pessoal de procura e investigação permanente da matéria e se manifestam nas formas de expressão simbólica da obra de arte. Podemos reconhecer, então, que as grandes criações de arte "encarnam algumas de nossas mais profundas intuições" (Scott, 1951, p. 3). E, como sabemos, a obra com seu "campo polifônico" abre inúmeras possibilidades interpretativas e nos interroga sobre a complexidade que a caracteriza. Nesse sentido, o desconhecido da obra sempre envolve um tipo de silêncio, de mistério capaz de despertar em nós sentimentos de natureza estética: beleza, assombro, estranhamento, horror e outros mais. Desse ponto de vista, a consciência de ser tocada pelo outro, pela obra de arte, atenta-se para a "capacidade de sentir estremecimentos", que na concepção de Adorno (2010, p. 120) é constitutiva do comportamento estético, unindo Eros e conhecimento.

Contemplar uma obra de arte como os extraordinários autorretratos de Rembrandt pode provocar, de modo inesperado, um impacto misterioso e enigmático, que afeta de um modo inédito a sensibilidade, como uma fagulha que se ativasse dentro de nós. O desassossego e a carga de emoções que tal vivência evoca não apenas nos desacomodam como podem ser propulsores de uma experiência interior singular. O que vemos, sentimos ou intuímos diante de uma obra de arte? Que relações podemos estabelecer entre uma pintura e a nossa vida? Como colocar em palavras sentimentos intuídos que "pescamos" do fundo de nós mesmos ante um objeto estético? Como a obra pode provocar no espectador um desmoronar da linguagem? Essas são algumas indagações que me acompanham na realização desse comentário. Para abordar esse tema que abarca minha experiência de vida como psicanalista e a minha atividade artística, baseio-me em uma vivência pessoal de grande impacto estético, ocorrida anos atrás, diante de um dos autorretratos desse artista holandês, cuja ressonância afetiva tornou-se fecunda e transformadora.

Numa visita ao Metropolitan Museum of Art, de Nova York, após vagar um longo tempo por salas, apreciando pinturas de diferentes séculos, detive-me em um autorretrato de Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669), um óleo pintado no período tardio da vida do artista, 1660, aos 54 anos de idade.

Em silêncio, permaneci longamente ali sentada, deixando meu olhar se deter naquela obra, de apenas 80,3 x 67,3 cm de dimensão. Ao contemplá-la, fui tomada por uma vivência incomum, um abalo que me lançou numa experiência arrebatadora, disparando uma estranha mistura de emoções e pensamentos. Vi-me em presença de algo difícil de descrever de imediato, um tipo de "mistério magnético", emprestando uma expressão do escritor cubano Leonardo Padura (2013, p. 201). Uma intensa vivência pessoal ocorreu naquela sala do museu, não consigo afirmar quanto tempo durou, porém, suas reverberações foram significativas. Resultaram em "marcas do assombro", do sublime, e servem de guia para algumas reflexões que pretendo fazer a propósito de certas relações entre a arte e o observador.

No referido autorretrato, o artista se retrata sobre o linho da tela, trajando uma veste de matiz marrom e portando uma volumosa boina preta. Forjada numa grande elipse, a boina recobre o alto da cabeça, deixando entrever nas laterais descobertas uma parte iluminada dos delicados cabelos grisalhos e espiralados da figura. Nesse volume compacto e irregular, o pintor trabalha gradações sutis de luz, captando o movimento das dobras do aveludado e sedoso tecido da boina. A densidade do volume escuro acentua o contraste que se projeta no uso da luz diagonal, que ilumina parcialmente o rosto no retrato. No campo alargado da tela, os tons sóbrios do fundo acompanham as várias nuanças de preto e castanho da roupa, obtidas pelo efeito de longas pinceladas, desta feita deixando entrever dobras longitudinais de cor esverdeada e outras acobreadas. Em meio a esse conjunto escurecido, terroso, é que avulta o rosto luminoso (lumen), sugerindo a idade avançada (nas rugas profundas e na pele flácida), no colorido dos tons róseos e ocres suaves. Rembrandt obtém, assim, variações sutilíssimas dos efeitos de chiaroscuro2 e um domínio indestrutível da sua arte. Percebemos que o artista explora um uso da luz e da sombra inteiramente novo, cria uma atmosfera íntima em que a luz se traduz em iluminação e não em clarão, a luz direta. Nesse sentido, no autorretrato Rembrandt (1660) capta e se identifica com a "luz da alma".

Observamos por esse intermédio que o artista está ocupado não com o efeito dramático da luz, mas, ao contrário, que utiliza a luz em sua pintura para extrair dela uma atmosfera de intimidade mágica, que faz vibrar na tela o olhar penetrante; olhar que, de súbito, magnetiza o espectador.

Nesse conjunto notamos que a imagem é obtida não pelo contorno do desenho rígido prefigurado, mas minuciosamente urdida por diversas texturas da tinta e do ritmo das pinceladas curtas e longas, bem como de variações cromáticas sutis. Trata-se de um trabalho de justaposição das cores e do acúmulo das várias camadas que resulta, então, no colorito3 (o visível da pintura), capaz de gerar naquele que a contempla a sensação de densidade de tempo expandido, em que cada gesto expressa de modo concomitante as buscas do artista.

Essa trama dos elementos plásticos contribui para que o olhar do espectador se dirija (muitas vezes sem o saber) ao profundo da pintura, pela superfície. Isso nos leva a considerar como a maestria artística de Rembrandt é capaz de extrair tanto de uma paleta reduzida. Para mais um exemplo, observa-se que uma leve sombra nos olhos, contrastando com a textura espessa da tez e seus matizes fugidios, tem em sua arte a capacidade de transformar os olhos em olhar profundo, expondo as entranhas do espectador e dissecando-o "do fundo da tela onde nasceu", como escreveu Antonin Artaud a respeito de outro gênio da pintura, Van Gogh.

Ao alcançar uma carga poética tão potente, tão radical, a pintura de Rembrandt imanta e move (movere) o espectador, elevado pelo sublime da pintura. É nesse sentido que Jacqueline Lichtenstein discute a "eloquência da cor"4 e aponta na sua discussão o surgimento de um novo tipo de espectador:

Antecipando a estética das Luzes, nosso autor [Roger de Piles] invoca um novo tipo de espectador, não mais o "conhecedor" que se compraz no infinito jogo de deciframentos, e sim o amador que tem o prazer em olhar um quadro. (1994, p. 162)

Se minha consciência permitia vislumbrar que estava diante de uma pintura cheia de mistérios, penso que havia indiscutivelmente nela a síntese de algo que me transportava para além dela mesma. O tronco ereto do autorretrato do artista, cujo olhar era profundamente humano e indagativo, aliado à expressão ligeiramente desafiadora dos lábios, parecia me envolver num tipo de atmosfera íntima, meditativa. De certa forma, estava diante de uma pintura que me despojava das palavras e das reações sentimentais que mascaram a recepção da obra. Nessa contemplação, aos poucos foram surgindo pensamentos fugidios sobre o sentido da vida, o envelhecimento, a morte e uma percepção aguda de um instante único, em contraste com a força e perenidade configurada por Rembrandt por meio da arte. Além disso, o conjunto da pintura tocava a minha sensibilidade, também me atingia de modo contraditório, pois irradiava beleza e dor, sentimentos melancólicos e uma força impetuosa, que aguçava a minha curiosidade. De modo concomitante percebia que tais pensamentos indicavam a fragilidade das certezas.

 

I

Tudo estava subordinado à sua arte e dedicado a ela.
(Pascal Bonafoux)

Rembrandt explorou intensamente a arte da gravura em metal, desde a juventude até os últimos anos de vida. Nascido em Leyden, suas primeiras águas-fortes5 datam de 1625, aos 19 anos de idade, além disso, ao longo da vida colecionou gravuras de Albrecht Dürer (1471-1528), dos artistas holandeses Hercules Seghers (1589-1638) e Jacob van Ruisdael (1628/1629-1682), entre outros. Era conhecedor da arte, da importância da luz nos pintores italianos, de Tiziano Vecellio (1485-1576), da "revolução" da pintura de Caravaggio (1573-1610) e das possibilidades dramáticas do uso do claro-escuro. Os estudiosos também são unânimes em reconhecer a importância da gravura na pintura de Rembrandt, em que explora exaustivamente a potência da linha e suas tramas complexas, para criar atmosferas luminosas nos desenhos abertos e nas luzes fugidias.

Assim, pude encontrar naquela pintura (1660) uma síntese muda e eloquente dos autorretratos do artista que conhecia. E, no olhar enigmático que nasce do sombreado da pintura, intuir uma gama de sentimentos contraditórios, condensados na qualidade da representação pictórica: os infortúnios e as perdas sofridas pelo artista, sua solidão, sua dignidade e força interior, suas buscas, sua maestria. São obras-primas que elevam o realismo ao mais alto nível, como afirmam os seus estudiosos. É nessa direção, por exemplo, que o historiador da arte E. H. Gombrich afirma que Rembrandt observou "a si mesmo sem vaidade", "num espelho absolutamente sincero" (1993, p. 331). Nos seus retratos, foi capaz de observar suas próprias feições de forma intensa e atenta, obtendo desse laborioso ofício outras apreensões e uma compreensão cada vez mais penetrante do rosto humano. O que resulta, então, não é simplesmente um retrato verossímil do seu rosto ou um estudo das emoções, da "linguagem das paixões"6 , pelo exagero mimético da expressão facial, mas uma gravura ou uma pintura em que o extraordinário artista holandês foi capaz de, pelo espelho, representar a interioridade da alma humana.

O seu autorretrato (1660) é exemplar, transcende o espelho rígido para refletir a espiritualidade do homem, seu caráter despido das aparências, do fausto, das relações contratuais. Propicia um diálogo, seja pela reflexão psicológica de si mesmo, seja pela aguda percepção do outro e do sentido da vida. Resulta, assim, numa pintura que penetra o espectador com intimidade, sem ser intrusiva. Penso que esses e outros aspectos de sua vida se tornaram significativos e indissolúveis em sua criação. Rembrandt mostra nas suas pinturas uma qualidade assustadora, desmentindo "sua queda das alturas do sucesso para uma posição à margem da sociedade holandesa". Ele testa os limites de sua arte e em função disso foi acusado de pintar "mais para agradar a si mesmo", observa Pascal Bonafoux em Rembrandt: substance and shadow (1992). "Tanto marrom!", criticam seus opositores, que o desqualificam por não apresentar nas suas pinturas figuras bem-acabadas, alegres, cores vivas. Não subordinou a sua arte aos ditames do gosto de sua clientela ou de sua época. Mas, de fato, Rembrandt ultrapassa a arte de seu tempo ao "inovar técnica e espiritualmente a arte holandesa".

Vivendo no século XVII, no assim chamado "século de ouro dos Países Baixos", numa Holanda fortificada por seu poderio econômico. O dinheiro em circulação patrocinava, então, o gosto nas artes, que refletiam os heroísmos e as aspirações de seu povo ao abandonar o feudalismo e a aristocracia. Nessa Holanda rica, o artista obteve um reconhecimento extraordinário desde a juventude, formando diversos artistas, como Ferdinad Bal e Govert Flinck, em seu ateliê em Amsterdã, conquistando o mais alto domínio de sua arte. Se em 1632 pinta A lição de anatomia do Dr. Tulip, obtendo enorme sucesso e fama, nos últimos anos de sua vida recebeu duras críticas, desprestígio e abandono de seus mecenas, como mencionamos anteriormente. Apesar de ter sido muito rico, Rembrandt teve de suportar, já mais velho, a bancarrota financeira, desfazendo-se de seu ateliê, vendendo a sua casa e a sua grande coleção de arte para poder sobreviver. Além disso, enfrentou sérios infortúnios desde jovem, como as perdas precoces de três de seus quatro filhos, ainda no primeiro ano de vida, assim como da jovem e bela Saskia, sua mulher. Mesmo assim, solitário, não ajustou sua vida e a sua obra às normas ditadas por aquela sociedade de austera fé reformista. Humanista, criou com liberdade, revitalizando a sua arte até o final da vida. Estava à frente de seu tempo.

Do ponto de vista psicanalítico isso diz respeito à maneira como "atravessamos tormentas". Na teoria do pensamento de Bion, trata-se de como a nossa mente, em constante movimento, pode sustentar a dor, incertezas e turbulências advindas das tensões entre as forças destrutivas e o crescimento mental, diante do impacto do desconhecido do mundo. É nesse sentido que pensar implica dor.

Segundo Bion, o contato com a dor mental produz, por exemplo, fenômenos de alucinose e necessitará de desinvestimento das lembranças, dos desejos e, também, das teorias (para poder atravessar a posição depressiva), ao enfrentar as forças destrutivas advindas de "mudanças catastróficas", sejam elas diminutas ou desastrosas. Após essas mudanças o resultado será a abstração e a linguagem sintética.

Compreendemos que a pintura de Rembrandt abarcou não apenas a inteligência, intuições imaginativas, fantasias inconscientes, ou seja, a experiência emocional vivida do artista, como também toda a poética do objeto, toda uma visão de mundo. Transformações profundas se processaram ligadas ao objeto estético. Encontramos nela seu ethos, suas ideias, sentimentos e aspirações, aquilo que se denomina espiritualidade. Nessa esteira, "a espiritualidade do artista coincide com a matéria por ele formada, no sentido que sua operação adquire um insuprimível caráter de personalidade, que arrasta para a obra, como matéria formada, todo o seu mundo interior" (Pareyson, 1997, p. 58), ou seja, toda a sua vida penetrando nela, metamorfoseando-se.

Carregado de mistério, o autorretrato de Rembrandt nos transporta para o interior da obra, da alma do artista e ao mesmo tempo para dentro de nós mesmos.

 

II

Outras repercussões de grande impacto estético foram aos poucos sendo formuladas e amadurecidas.

Sabemos que as pinturas são capazes de produzir tipos diferentes de olhar no espectador. Na observação da tela, percebemos como a estrutura, o modo de operar do artista e o conteúdo expresso na obra de arte estão profundamente imbricados. A obra nos arrebata, interpela, e esse efeito que a pintura produz é descrito por Piles como "uma emoção súbita, um estancar brutal diante da imagem" que, num primeiro momento, escapa à palavra e ao discurso, como dissemos anteriormente. Essa captura, que pode atordoar o espectador, consiste, outras vezes, em uma pausa diante de uma imagem em que a percepção de algo inesperado emerge dentro dele mesmo, num tipo de reciprocidade com a obra, que o surpreende e o lança de imediato numa outra região de sensibilidade. Instante que provoca no espectador uma ilusão, em que são abolidas as fronteiras entre o real e a sua representação. Instante no qual a ilusão pictórica "arrasta o indivíduo para os caminhos da errância onde ele perde não somente a certeza das coisas, mas também a certeza de si" (Lichtenstein, 1994, p. 171).

De certa forma, na minha experiência, olhar em silêncio aquele autorretrato permitia que a obra me penetrasse e interpelasse. No caso, esse olhar abriu um diálogo com a pintura e com as reverberações dentro de mim. Não se trata, nessa situação, de uma "armadilha de sedução" em que a representação pictórica, com suas aparências enganadoras, faz cair em suas tramas o "espectador crédulo", mas enfatizar como o uso dos elementos plásticos explorados pelo artista atua no espectador e o transtorna a partir de uma experiência estética específica.

Sabemos que a experiência estética é um dos modos de alargarmos a consciência de nós mesmos e do mundo que nos cerca. Tomando como referência as ideias e conceitos de Donald Meltzer a respeito da experiência estética, Meg Williams enfatiza que

Nossas respostas estéticas em todas as áreas são fundamentadas no conhecimento original e primordial alcançado pela primeira percepção da beleza do mundo pela criança, como visto na mãe ou no seio como objeto-combinado. (Williams, 2010, p. XV, tradução livre)7

Esse conhecimento primordial, que funda, ou melhor, que dá fundamento as nossas respostas estéticas, reaviva (em nós) o uso da emoção, da intuição, da imaginação, de tal modo que todo nosso corpo torna-se, por inteiro, um órgão de focalização, que trabalha nessa operação emocional complexa que é ver. É a partir dessa perspectiva transformadora que proponho dar continuidade e pensar situações ligadas à experiência estética, que podem se manifestar ou se expressar em cada indivíduo nos diferentes momentos ou nas diversas situações da vida. Trata-se de uma experiência de abertura para o mundo e com nós mesmos.

Tal experiência, capaz de germinar novas ideias, aproxima-se do que Paul Valèry chamou de "estado de poesia". Em Variedades, Valéry descreve esse "estado indefinido" como "estado de poesia" (1999, p. 198), que, segundo ele, é de natureza irregular, fugaz, transitória. Porém, são estados extremamente fecundos, na medida em que podem ser aproveitados e elaborados pelo artista para gerar uma pintura, um poema, um filme. No caso do analista com o paciente, tal estado fecundo pode nutrir uma interpretação ou uma experiência emocional transformadora. Nesse sentido, o fazer do artista e o do analista com seu paciente se aproximam. Ambos podem estar movidos por um desassossego, por pequenos sinais intuitivos, que todos temos, mas que, muitas vezes, desconsideramos.

Talvez a experiência estética seja uma forma singular de acessarmos nossos escombros e de integrarmos as nossas experiências com o mundo. E, por se tratar de fragmentos suscitados em nós, como manifestação de sentimento intenso e de uma relação de profunda reciprocidade com aquilo que se observa, compreende uma tentativa de superarmos o habitual, de apreendermos algo que nos escapa. É generosidade e entrega; não é um estado deliberado, exterior ao indivíduo, no qual o querer e a vontade se impõem. Ao contrário, contém um componente de surpresa, de aflição e beleza e, muitas vezes, algo de sublime. Esse sentido que estou enfatizando da "natureza paradoxal do efeito estético", efeito próprio do sublime, foi reconhecido pelo abade Du Bos8, em Reflexões críticas sobre a poesia: "esse prazer que mais se parece com a aflição e cujos sintomas por vezes vêm a ser os mesmos que os da mais intensa dor" (1719, citado por Lichtenstein, 2004, p. 86).

Essa ressonância sensível no espectador da dinâmica estrutural da obra desfaz as fronteiras entre sujeito e objeto, "o sujeito de si mesmo esquecido". Encontrei no ensaio "De olhos vendados", de Adauto Novaes, uma reflexão sobre a proposta de Merleau-Ponty,que,de acordo com o autor,"redescobre o sensível como fonte do pensamento", rompendo a distinção clássica entre sujeito e objeto, carne e espírito. É nesse sentido que Novaes destaca uma das "últimas notas escritas por Merleau-Ponty pouco antes de morrer":

O sentir que se sente, o ver que se vê, não o pensamento de ver ou de sentir, mas visão, sentir, experiência muda de um sentido mudo... A carne do mundo não é sentir-se como minha carne - é sensível e não sentiente. Chamo-a, não obstante, carne para dizer que ela é pregnância de possíveis. (Novaes, 1995, p. 14)

Podemos notar com o filósofo que o sensível é "redescoberto" como "fonte do pensamento e forma universal do "ser bruto", anterior à subjetividade e à objetividade" (Novaes, 1995, p. 14). Compreende tudo que se inscreve nas coisas, tudo que nelas seja visível ou não, até mesmo ausente. E, nesse sentido, essa "visibilidade" que desfaz as fronteiras entre sujeito e objeto diz respeito, no meu entender, a uma atitude de se colocar à disposição do objeto estético, de acolhimento, e não de um estado de fusão com tal objeto. Alia-se, pode-se pensar, ao modo intuitivo de apreensão dos fenômenos, quando nos colocamos à disposição dele, sem pedir nada ao objeto. Estamos falando aqui de um modo de recepção. Adorno faz uma reflexão arguta a respeito do confronto com o belo e o sublime na recepção da obra de arte:

Apesar de tudo, no comportamento adequado perante a arte, subsiste o momento subjetivo: quanto maior o esforço de participação na realização da obra e da sua dinâmica estrutural, tanto maior é a parte do sujeito investida na contemplação, tanto mais o sujeito, de si mesmo esquecido, percepciona a objetividade. Também na recepção, a subjetividade mediatiza a objetividade. Em confronto com qualquer belo, como Kant o constatou, apenas no sublime o sujeito torna-se consciente da sua nulidade e vai, além dela, até ao que é outro [...]. (Adorno, 1970, p. 16)

O espectador se coloca à disposição para que a obra se exprima: "Transpõe vulgarmente a relação de propriedade [...]; prolonga o comportamento de autoconservação sem falha, submete o belo àquele interesse que, segundo a concepção ainda insuperada de Kant, o transcende" (Adorno, 1970, p. 16).

Assim, o "desconhecimento causado pelo confronto com o objeto estético", como diz Meltzer e Williams (1995), implica muitas indagações ligadas a sua apreciação estética, pois entramos num campo do conhecimento de "algo que apesar de material é inefável" (Meltzer & Williams, 1995, pp. 240-244). Nessa concepção, no cerne da experiência estética "está o problema de poder manter (holding), reconhecer o gosto do sonho que fica evocado entre o sonhador e o objeto estético" (Meltzer & Williams, 1995, p. 238). Por isso, penetrar o desconhecido da obra de arte implica poder estabelecer aos poucos uma "congruência simbólica" com o mistério que rodeia o objeto estético e que, na terminologia de Bion, é o trabalho psíquico de transformação em direção a "O" e não o conhecimento sobre o objeto.

Como, então, enfrentar e sustentar esse estado fugaz, de sonho "evocado entre o sonhador e o objeto estético","essa nuvem diáfana de não saber"? - indagam Meltzer e Williams (1995), ao aprofundar essa reflexão do impacto estético do ponto de vista da apreciação artística. Para os autores, é o processo de formação simbólica que irá auxiliar a sustentação deste "estado de sonho" evocado pela "reciprocidade entre os objetos internos e objetos externos" com "pleno reconhecimento do espaço" (p. 238).

Sonho compreendido como o pensamento primeiro, como "representação inicial do significado da experiência emocional e a pedra fundamental sobre a qual necessariamente se apoiam outros níveis de pensamento mais elaborados" (Meltzer, 1992, p. 404), seguindo a concepção de Wilfred Bion.

Como mencionamos anteriormente, para Bion, há uma oscilação repetida [Ps-D] em integração e valores que precisam ser atravessados a cada uma das mudanças catastróficas, e isso é necessário para o viver criativo. Mas a etapa entre a emoção e o sonho que dá uma representação para a emoção, ele deixou envolvida em mistério (Meltzer, 1992, p. 404). Meltzer, por sua vez, privilegia o valor da intuição profunda dos modos de relação primária (mãe-bebê), numa dinâmica de força de atração, de investimento e do conflito ligado à violência dessa atração e aos enigmas do objeto (objeto estético), que ameaçam a coesão do self devido à incapacidade de o bebê resolvê-lo. Tais concepções nos levam, entretanto, a novas indagações sobre o impulso criativo e suas relações com o objeto estético.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
VERA R. F. MONTAGNA
Rua Gracindo de Sá, 71
01443-080 – São Paulo – SP
tel.: 11 3062-0734
veramontagna4@gmail.com

Recebido 25.04.2018
Aceito 12.05.2018

 

 

1 O autorretrato de Rembrandt (1660) encontra-se no Metropolitan Art Museum de Nova York.
2 Roger de Piles (1635-1709), pintor, gravador, crítico de arte e diplomata, introduziu o termo "clair-obscur"(chiaroscuro) para ressaltar o efeito da cor ao acentuar a tensão entre a luz e a sombra em uma pintura. Sua importante contribuição à teoria da estética se deve ao seu Dialogue sur le coloris, no qual iniciou a defesa de Rubens com o argumento iniciado em 1671 por Philippe de Champaigne sobre os méritos relativos do desenho e cor sobre a obra de Tiziano.
3 "Dolce [Lodovico Dolce, 1508/101568, humanista veneziano] vai insistir sobre a necessidade de distinguir entre a cor, tal como ela sai do tubo, color, e tal como ela é utilizada pelo artista, colorito" (Lichtenstein, 1994, p. 154).
4 Lichtenstein (1994), em A cor eloquente, discute as ideias do crítico de arte e pintor Roger de Piles (16351709). Piles adota nos seus escritos a conhecida teoria ciceroniana da arte da oratória, ao privilegiar o efeito da arte de "transtornar" (movere) e não o de instruir (docere) ou de agradar (delectare) o espectador. A autora discute também distinções significativas entre cor e colorido, afirmando: "um século depois de Dolce, Roger de Piles distinguirá a cor-matéria, que torna os objetos sensíveis à visão, do colorido-forma, parte essencial da pintura através da qual o pintor consegue imitar a aparência das cores, e que compreende a ciência do claro-escuro" (1994, p. 154). E continua: "Ao contrário da escultura, a pintura não se contenta em mostrar o visível, ela torna visível o invisível ao pintar sentimentos, emoções, e não apenas a forma exterior do corpo humano" (1994, p. 158).
5 Técnica de gravura de estampa em metal em que o artista desenha no verniz, previamente aplicado sobre uma chapa metálica (a matriz). A imagem é então obtida mediante a mordaçagem do ácido na matriz durante um tempo que é determinado pelo artista. As nuanças de cinzas e negros de cada linha dependerão do tempo da mordaçagem do ácido e da trama das linhas obtida. Posteriormente, a reprodução da imagem da matriz será estampada sobre um papel umedecido, pela ação da prensa. Técnica utilizada no século XVII, tendo sido Rembrandt considerado um dos maiores água-fortistas da história da arte.
6 Referindo-se à importância que Le Brun concede à "expressão das paixões" em uma conferência acadêmica (1668).
7 "Our aesthetic responses in all areas are founded on the original, primordial knowledge attained by the infant's first perception of the beauty of the world as seen in the mother or breast as-combinedobject" (Williams, 2010, p. XV).
8 Jean-Baptiste Du Bos (1670-1742), abade francês que escreveu Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture, editado em 1719.

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