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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

CRIATIVIDADE E OUTRAS PAUTAS

 

O Menino mais Velho quer (des)conhecer o inferno – esse lugar espantoso

 

The oldest boy wants to (un) know the hell – this frightful place

 

 

Carla Oléa

Psicóloga e escritora, gerencia o blog www.carlaolea.com, que contém coletânea própria de ensaios, poemas, crônicas e contos. Mestre em psicologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis (SP). Membro filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

The author Celebrate Vidas secas (Graciliano Ramos) 80th anniversary with an essay about a scene where the Oldest Boy is surprised by a revelation: the existence of hell – impacting word. Between frightened and curious through an emotional experience trying to find the meaning.

Palavras-chave: 80 anos Vidas secas. Experiência emocional. Busca de sentido. Menino mais Velho.


SUMMARY

A autora celebra os 80 anos de vida do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, tecendo um ensaio a partir de uma cena em que o Menino mais Velho é surpreendido por uma revelação: a existência do inferno – palavra impactante. Entre assustado e curioso, caminha numa experiência emocional tentando desvendar-lhe o significado.

Keywords: 80 years Vidas secas. Emotional experience. Search for meaning. Oldest boy.


 

 

Aquela hora os periquitos descansavam na vazante, nas
touceiras secas de milho. Se possuísse
um daqueles periquitos, seria feliz.

(Ramos, 2011, p. 52)

O Menino mais Velho era interessado em palavras, e havia escutado a benzedeira Sinhá Terta pronunciar a palavra inferno. Ele precisava compreender do que se tratava. Pergunta, então, para Sinhá Vitória, sua mãe, que responde a ele que é um lugar ruim. Não contente, ele a questiona se ela já esteve lá. A mãe, achando-o insolente, dá-lhe uns cocorotes, e lhe diz que é um lugar ruim que tem espetos quentes. O menino sai chorando e vai para fora da casa com a cachorra, Baleia. Ele fica desnorteado.

Do que trata essa cena?

Graciliano é um artista, portanto, ele constrói imagens, cenas antológicas que atravessarão os séculos, levando em suas células informações do humano, sua saga, e seu tempo.

O objetivo de todo artista é deter o movimento, que é vida, por meios artificiais, mantendo-o fixo, de modo que, cem anos depois, quando um estranho olhar para aquilo, ele se movimenta de novo por ser vida. Como o homem é mortal, a única imortalidade possível para ele é deixar algo atrás de si que seja imortal porque sempre vai se movimentar. É a maneira de o artista pichar "Kilroy esteve aqui" no muro do esquecimento final e irrevogável pelo qual um dia terá que passar. (Faulkner, 2011, p. 33)

O Menino mais Velho fotografa nossa pulsão epistemofílica, o anseio por conhecer o que vivemos, a vida em sua interioridade, o mundo, o mistério, as ambiguidades, a complexidade. Há, entretanto, obstáculos a essa pesquisa. A resposta de Sinhá Vitória pode ser entendida como uma representação de toda essa dificuldade. Primeiro uma complicação do estado de coisas de como está 185-189 organizada a sociedade. De modo sucinto, diria que há um sistema hierárquico, que não admite questionamentos. O menor não questiona o maior, o pequeno não questiona o grande, o sujeito não questiona a instituição, o cidadão não questiona o estado nem tampouco seus governantes; e não se trata aqui de uma inquirição cujo propósito é o desafio, diversamente falamos da indagação que está ancorada no anelo de aprofundar uma percepção, a conquista de uma visão mais ampla sobre o que se pretende compreender ou sobre o que está disposto ante os seus olhos. Não obstante, está firmado que é desse modo que as coisas devem ser. Há uma sutil indisposição geral em face ao estado de questionamento e dúvida.

Algo no interior do Menino mais Velho corrobora esse cenário. Carregamos uma marca que se enraíza em nosso movimento, só se chega à vida adulta partindo-se do solo infantil; lá, nessa terra, éramos pequeninos guiados pelos grandes. Um tempo dourado em que não era preciso pensar, responsabilizar-se por suas próprias percepções e condutas, melhor ainda, não era preciso conhecer a realidade e haver-se com ela. Esse contato é desorganizador para o narcisismo que não aceita a empreita de ver-se frágil, pequeno, impotente diante da vida. A recusa em aceitar esse lugar menor, em que a realidade, que atinge a golpes o narcisismo e é um fato irrefreável e irremediável, provoca a busca por uma sombra embaixo da portentosa e frondosa copa da idealização. Há alguém grande, muito grande, aquele adulto que saberá a resposta, que conhecerá o caminho, que poderá ser o guia.

Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e vazias, eu ia para a estação ferroviária. Quando confrontei um relógio de torre com o meu relógio, vi que já era muito mais tarde do que havia acreditado, precisava me apressar bastante; o susto dessa descoberta fez-me ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo caminho. Ele sorriu e disse: "De mim você quer saber o caminho?". "Sim", eu disse, "uma vez que eu mesmo não posso encontrá-lo"."Desista, desista", disse ele, e virou-se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós com o seu riso. (Kafka, 2011, p. 181)

O herdeiro de Fabiano está ambíguo. Havia ele se aproximado de algo que parecia existir, estava lá; a palavra que anunciava 185-189 o desconhecido era bonita aos seus ouvidos. Assustou-se quando o significado atribuído por Sinhá Vitória à palavra inferno apresentava-a como algo terrível. Confuso, tenta conhecer o novo elemento levando-o para o cesto onde repousam os macios e findos novelos das certezas.

Bravo, desconcertado, desorganizado, esgueira-se ao calor do agreste. A realidade a ser conhecida não está clara e não parece suportável. Era preferível que a mãe o tivesse poupado. Para que estragar as coisas?

Talvez não pensasse mais no assunto, esqueceria o que disse Sinhá Vitória, a paz o viria buscar. Contudo, já não conseguia mais dissipar o vulto que se formara, e que agora o perseguia. Não havia saída, a não ser lançar-se à solidão da descoberta. E, assim, aninhado-se à mãe terra, e pajeado por um sol "espinhudo", pôs-se a repetir:

Lugar ruim
Condenado
Onde é que tem espeto quente
Inferno
Inferno
Inferno
Inferno [...]. (Santos, 1963)

A genialidade de Graciliano também está em fazer com que o leitor perceba e responda algo que o Menino mais Velho ainda não sabe, apenas intui. O leitor está identificado com aquilo que é desconhecido ao Menino, com aquilo que ele quer saber. Cúmplices do autor, sabemos que o inferno é ali. O Menino não o sabe ainda, embora o viva, está dentro da própria substância que quer conhecer.

"Isto me levou a pensar que talvez estivessem, na própria vida, mergulhados em seu próprio elemento, tal como nunca conseguiríamos estar, como os peixes que nas profundezas aquáticas, jamais conseguirão entender o medo que temos de nos afogar" (Blixen, 2005, p. 32). Isso faz despontar um problema: é preciso emergir da substância para poder enxergar-se, de outro modo, submergidos, não poderemos conhecê-la.

O Menino claudica. Talvez sua mãe tenha sofrido um desvario e o agreste lhe arrancado à unha toda a ternura. Ou, talvez, "Sinhá Vitória dissesse a verdade"; nesse caso, o "inferno devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca" (Ramos, 2013).

"Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, pôs-se a fazer no chão desenhos misteriosos. Para que Sinhá Vitória tinha dito aquilo?" (Ramos, 2013, p. 61). Agora, em vez das certezas, havia dúvida e desordem. A realidade, com seu cajado afiado, ameaçava-lhe as bem-aventuradas ilusões.

Graciliano, todavia, socorre seu Menino mais Velho, tem misericórdia dele, dando-lhe uma companhia - Baleia, a cachorra.

Baleia é o ser, em Graciliano, repleto de humanidade, que não perde de vista aquilo que em psicanálise se chama bom objeto interno.

"Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso" (Ramos, 2013, p. 60).

A cena seria outra se lá não estivesse a afortunada Baleia. Ainda que não houvesse mais meios de retornar plenamente ao leito da ilusão, ele encontrou companhia. Mesmo que assolados pelo desprovimento da linguagem, havia ligação, essa força capaz de resgatar um condenado do Aqueronte. Baleia não respondia a ele, mas estava ali, e acreditava no osso - no osso "graúdo, cheio de tutano e com alguma carne" (Ramos, 2013, p. 61).

A presença desse elemento vivo, que transita numa atmosfera repartida, podia ser aspirada, trazida para dentro. Baleia continha o desespero do Menino mais Velho como o faria uma mãe compreensiva; isso o fazia prosseguir, aturar a espera, até que o inferno lhe pudesse ter um significado íntimo, vivo e suportável.

"[...] O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso [...]" (Ramos, 2013, p. 61).

O Menino mais Velho, no autor, não quer ser apenas peixe mergulhado na substância do lamaçal, teme, mas intui que há algo para ser conhecido. Como em Fabiano, seu pai, há a sina de não aceitar a condição imposta. Não ser cabra, afinal, e ao final.

Graciliano salvou Fabiano e todos os seus do impiedoso inferno, abraçando-os no colo maternal da poesia e dando-lhes a casa da imortalidade.

 

REFERÊNCIAS

Blixen, K. (2005). A fazenda africana. (C. Marcondes, trad., 2ª ed.). São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Faulkner, W. (2011). A arte da ficção 12. In As entrevistas da Paris Review (C. Schwartz & S. Alcides, trads., Vol. 1, pp. 7-36). São Paulo: Companhia da Letras.         [ Links ]

Kafka, F. (2011). Essencial. (M. Carone, trad., 1ª ed.). São Paulo: Penguin Companhia.         [ Links ]

Ramos, G. (2013). Vidas secas. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Santos, N. P. (1963). Vidas secas. Rio de Janeiro: Herbert Richers. Filme recuperado em 10 mai. 2018: https://www.you-tube.com/watch?v=do-ZTroCt-Y.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
CARLA OL ÉA
Rua Cai çara, 45
17502-620 – Marília – SP
tel.: 14 3454-0038
carla.olea@hotmail.com

Recebido 10.05.2018
Aceito 16.06.2018

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