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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo An./June 2018

 

LITERÁRIAS

 

Escarlate sob o Cinza

 

 

Vera Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata do GEPCampinas e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 

Alguns vivem sob a marca de um forte sentimento de nostalgia, de um sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retorno. Desejo de retorno do passado, da pátria distante, da infância perdida. Sofrem de um agudo sentimento de desterro, de ter sido banido do lugar a que pertencem e da tristeza provocada por uma desesperança de retorno.

Os que vivem imersos em nostalgia ficam seduzidos por ecos, ressonâncias, pequenas correspondências entre aquilo que era e tinha e aquilo que já foi e poderia ter continuado. Como quem sofre da perda de um amante, esforçam-se por reviver imagens, obrigam a memória a redesenhá-las e, quando conseguem, tornam-se dono absoluto de um sentimento de beleza e plenitude.

Ela até conseguia entender esses sentimentos, mas não era desse mal que sofria.

Na vida desta mulher, já não existia o belo. Nada parecia lhe causar qualquer inspiração. Escapava-lhe qualquer concepção de beleza ou prazer em imprimir algum pensamento a respeito do que lhe acontecia. Padecia de um desalento tão profundo que transformava qualquer acontecimento em desvalia.

Não havia naquela mulher nenhum indício de luta com a natureza.

O desejo de inventar uma linguagem para lutar com seus dilemas, para dominá-los e encontrar aí algum tipo de salvação, tinha desaparecido quase por completo do cotidiano dessa mulher.

Parecia ter desenvolvido dentro de si uma película protetora cinzenta para cada um de seus sentidos, uma película de morte para cada momento de vida dentro de si. Para esta mulher, reconhecer fonte de vida era tão doloroso que a removia implacavelmente de sua existência, tornando-se, ela mesma, toda cinza.

Rotineiramente chegava do trabalho e jogava-se no sofá.

- Não tenho forças pra mais nada.

Pouco lhe importava se iriam ouvi-la ou não. Despencava no sofá e destrinchava uma lista de aborrecimentos ocorridos durante o dia. Queixava-se da incompetência dos colegas, do trânsito pesado, do sapato apertado demais, do telefonema não respondido, da sobrecarga no trabalho, da conta de luz, do salário congelado. Ora era porque estava quente demais, ora era o frio exagerado.

- Não deixaram sobrar mais nada de mim.

As reclamações podiam variar, mas o "não deixaram sobrar mais nada de mim" era uma constância. Não se confortava com nada, nada parecia ser capaz de provocar a inspiração de um viver. Por mais que pudesse reconhecer algo de especial que teria vivido ou conquistado, ainda percebendo isso, não conseguia usufruir de qualquer sentimento de satisfação.

Vivia em eterno desgosto e insatisfação. Desaprovava tudo o que lhe acontecia, o fato mais corriqueiro era irremediavelmente tratado como um abuso ao seu ser, visto que implicava desqualificação, humilhação e inferioridade.

- Fazer terapia? Nem pensar, ninguém sabe mais de mim do que eu mesma. Yoga? Já estou esticada o suficiente.

A imutável insatisfação desta mulher foi tornando o seu mundo cinza, mas debaixo do cinzento havia também o vermelho, expressão de ardor, beleza, saúde, generosidade. No entanto, inundado de ódio, inveja e vingança, o vermelho diurno, solar, vital, foi se tornando cada vez mais escarlate: o aniquilador do bom e do belo.

Não perdoava ter perdido um bem, um privilégio, um favorecimento que desejava ter, porque era legítimo tê-lo, mas lhe foi negado. Não conseguia qualquer outro jeito de deglutir a falta. E o que lhe faltava alguém mais possuía. O que lhe faltava era repartido com outros.

Lá onde nenhuma palavra vaga conseguia alcançar alívio, ela poderia ter se tornado uma artesã do oitavo dia, inventado algo que pudesse dar justas férias de irrealidade ao seu inconformismo e indignação. Poderia ter se transformado numa pintora, desenhista, escultora e assim depositar seu desaponto em momentos engenhosos e apaixonados. Poderia ter tido filhos, plantado uma árvore, criado histórias.

Mas não: para ela, bastava notificar, momento a momento, sua brutal situação de privação injuriosa, guardada, dia após dia, num saquinho de veneno, o veneno da insuficiência que sempre sentia. Uma espécie de delícia sustentada num único e último prazer terreno.

Essa mulher não fazia qualquer negociação. Qualquer.

 

 

Endereço para correspondência:
VERA LAMANNO-ADAMO
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-141 – Campinas – SP
tel.: 19 3254-0824
vlamannoadamo@gmail.com

Recebido 22.03.2018
Aceito 12.05.2018

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