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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo enero/jun. 2018

 

LITERÁRIAS

 

Scenarium

 

 

Noemia Davidovitch Fryszman

Professora titular (aposentada) de literatura inglesa e norte-americana da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora de história da arte das Faculdades Integradas Rio Branco. Mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Doutora em artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Participante do Grupo de Estudos "Estética-Arte-Psicanálise" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Víctor acordou naquele dia e se sentiu amarrado por uma corda que fazia espirais dentro dele, quase que o sufocando. Sensação estranha, pois, ao mesmo tempo, sentia-se livre. Foi até o escritório e, ao chegar, ninguém notou coisa alguma. Víctor continuou a trabalhar normalmente, participou da reunião da diretoria e somente ele conseguia perceber algo de miraculoso acontecendo dentro si. Aquelas amarras libertadoras. Como se um turbilhão de emoções e lembranças estivessem lutando para eclodir.

Na hora do almoço, olhou para os pés e uma triste sensação de estranheza apossou-se dele. Um mal-estar, uma nostalgia, um desassossego a espremer o coração. Sentiu-se perdido, aéreo, como que flutuando. Era dois seres numa só memória. Os pés... Os pés... Eles o levavam a lugares longínquos no tempo e no espaço. Viu-se caminhando em direção a uma porta fechada, que o conduzia a um lugar mágico. Abriu a porta bem devagarinho... O fraco ranger da dobradiça se transformou num ruído que o perseguiria para sempre.

A sua presença não foi notada e um mundo surreal abriu-se para os olhos e a alma do menino. Nesse momento, sentiu as cordas apertando os nós pelas pernas em direção à pélvis. Olhou ao redor, o garçom estava colocando o almoço na mesa.

- Mais alguma coisa, senhor?

Ouviu um barulho de pratos e talheres, mas estava tudo muito distante. Fez um gesto maquinal com a cabeça, assentindo que estava certo.

- "O senhor está se sentindo bem?" - a mulher da mesa ao lado perguntou.

- "Sim, tudo bem", conseguiu balbuciar.

Ao pagar a conta e se levantar para sair, sentiu os nós da corda que circundava a região pélvica afrouxarem. Ao chegar ao escritório, fora tomado de uma estranha sensação.

- "E aí, qual o seu palpite para o jogo de hoje à noite?" - o porteiro perguntou.

- "Empate, os times estão equilibrados."

Já dentro de seu gabinete de trabalho, viu-se cercado de memórias que o tempo havia tornado reais. Víctor havia se transportado para detrás da porta do quarto escuro, onde um fiozinho de luz atravessava a janela e se desdobrava em prismas, e grunhidos assustadores esvoaçavam pelo ar.

A fraca luz se refletia em um enorme espelho emoldurado por arabescos entalhados, que o menino conseguia avistar da posição em que se encontrava.

O seu coração parecia que ia saltar do peito. Deve ter havido alguns sinais exteriores, porque o semblante de todos que passavam pela mesa adquiria um ar de preocupação. Foi no reflexo do espelho que ele viu algo aterrador - a massa informe, pareciam dois ogros se engalfinhando -, onde teriam ido seu pai e sua mãe? Não conseguia tirar os olhos daquilo que, aos poucos, ele foi percebendo serem duas pessoas - um homem (cabelos curtos) e uma mulher (cabelos longos e cacheados, como os da sua mãe), nus e emaranhados. Ele não conseguia distinguir as feições, mas estavam sobrepostos e faziam movimentos rítmicos, como se um estivesse penetrando o outro, seguidos de sons animalescos. Era apavorante, estava petrificado, e se seus pais nunca mais retornassem? A cena era interminável e Víctor não entendia por que ele começou a sentir uma sensação estranha e ao mesmo tempo prazerosa e uma compulsão para acariciar os seus genitais. Ele se assustou, mas sabia que não podia fazer barulho e fechou a porta, que estava só entreaberta, com cuidado. Estava ofegante, voltou para sua cama, mas não conseguia dormir. Cedinho, na manhã seguinte, apareceu, como por encanto, a sua mãe de sempre, sorrindo e afagando os seus cabelos.

- "Já está na hora de acordar!"

Ela percebeu o seu sobressalto. Será que ela sabia que dois seres estranhos haviam tomado o lugar dela e do papai na noite anterior? E para onde eles tinham sido levados? Ensaiou uma pergunta:

- "Mamãe..." Mas não conseguiu continuar. Seria ela a sua mamãe ou era uma feiticeira que havia tomado o seu lugar? Sentiu que aquele seria o seu segredo, não contaria a ninguém.

- "E aí, viu o bicho papão?" O riso musical que se seguiu, tão amado até então, tornou-se símbolo de algo que ele não sabia distinguir e lhe provocou um sentimento de náusea. E se essa não fosse a sua mãe, mas uma impostora? Bem cedo na vida teve conhecimento de uma enorme angústia, da qual talvez nunca se libertasse.

Agora, sentado ali, em sua sala de trabalho, enquanto as cordas da pélvis se afrouxavam, refletiu o quanto essa cena tinha permeado sua personalidade. Sentiu-se ainda mais estranho, quando os nós, marchando em direção ao peito, iam se desfazendo.

O coração - ah, o coração! Quando ele viu Silvinha pela primeira vez, ficou petrificado. Foi assaltado da mesma sensação que sentira ao espiar por detrás da porta há tanto tempo. Quase parou de respirar, seria ela real? Estavam na varanda no dia do baile da sua formatura... Estranho, ela parecia coberta por um véu. O mistério... Atrás da porta...

- "Vamos dançar?"

- "Sim, vamos."

Andaram até o salão, a orquestra tocava uma seleção de músicas brasileiras românticas. Tomou-a pela cintura e era como se sentisse pela primeira vez o cheiro de uma mulher.

- "Você está bem?" Ele estava aéreo, como se tudo não fosse real, seria uma fantasia?

- "Não sei o que aconteceu, vamos voltar à varanda tomar

um pouco de ar." Silvinha procurou a mão dele e seus dedos se enlaçaram.

- "Silvinha, Silvinha..." Não conseguiu continuar.

A lembrança daquela noite aparece esfumada, na memória, nos sonhos, nos devaneios. Víctor nunca foi capaz de materializar o amor apesar de ser o seu anseio mais profundo.

- "Tem que ter um espelho e a porta tem que estar ligeiramente aberta. Vamos nos engalfinhar como duas bestas e você terá de fazer uns grunhidos animalescos. Quando eu gozar, você vai se fingir de morta, petrificada, sem respirar."

- "Assim vou cobrar mais caro, mas você não vai se arrepender, sou profissional."

- "Tudo bem, vamos começar." Era sempre assim, ele carregava aquela cena dentro dele, mesclada com o semblante da Silvinha - ah, a Silvinha...

As cordas circundando seu coração pareciam ter chegado ao seu limite máximo, mas somente se afrouxaram, não se romperam, ele ainda se sentia preso. Bateram na porta do escritório.

- "Com licença, o Dr. Arnaldo quer saber se o senhor já terminou os relatórios."

- "Diga a ele que faltam só umas tabelas da importação e

aproveite para levar o relatório dos índices de produtividade." A secretária olhou fixamente para Víctor.

- "Tudo bem, doutor? Precisa de alguma coisa? Posso trazer um café?"

- "Não, obrigado, tudo bem, é só isso."

Mal Beth fechou a porta, ele sentiu umas pontadas assustadoras no peito, pensou que fosse morrer, estava quase sufocando, quando um devaneio se apossou dele. Ele já era adulto e, passando ocasionalmente pela casa de sua infância, viu a placa: aluga-se. Procurou o corretor, conseguiu a chave e resolveu entrar na casa que tantas memórias lhe trazia. Dirigiu-se imediatamente ao quarto espectral. Parou atrás da porta fechada, abriu-a devagarzinho, estava escuro, as janelas estavam cerradas, não havia mais o espelho mágico nem seus pais, nem os sons aterrorizantes. Porém a angústia, o medo, a fantasia ainda estavam lá, eternos espectros a lhe atormentar a alma.

Saiu correndo, transtornado, como um louco. O corretor que esperava lá fora se assustou e, enquanto Víctor devolvia as chaves, perguntou:

- "O senhor viu um fantasma?"

Víctor não respondeu, apenas foi embora. Já na rua, parecia delirar, era como se uma visão impenetrável lutasse por trazer à cena uma memória perdida de ilusões, desejos, afetos distorcidos, que o tempo se esforçava por destruir, porém Víctor sabia que teciam o próprio fio da sua vida.

Sentado na sala, olhando pela janela, pareceu-lhe que todos os nós haviam se rompido e, pela primeira vez em anos, ele vivia uma sensação indefinível de emoções e lembranças se desamarrando.

Levantou-se, pôs-se a deambular pela sala, sentindo cada pedaço do seu corpo de uma forma como nunca havia sentido. Uma vontade avassaladora de tomar um café apoderou-se dele. Ouvia o riso, o riso... Nesse momento percebeu que era inútil, nada poderia desfazer as amarras, era um pesadelo assombroso que ele teria de carregar até o fim.

Sentou-se, levantou-se novamente e um soluço lhe cortou o peito, depois outro e outro mais e surgiu a compreensão epifânica de que as cordas já faziam parte do seu ser em uma integração perfeita, haviam se fundido na sua carne e sangue, indestrutíveis, a vida sem elas esvaziava-se de sentido - eram cordas libertadoras.

Um a um os nós foram recolocados, agora ainda mais apertados, e Víctor sentiu um estranho sentimento de liberdade.

 

 

Endereço para correspondência:
NOEMIA DAVIDOVITCH FRYSZMAN
Rua Ceará, 101/51
01243-000 – São Paulo – SP
noemia.david@outlook.com

Recebido 22.03.2018
Aceito 12.05.2018

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