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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo An./June 2018

 

RESENHAS

 

Em sintonia com a natureza humana: Educação para a morte, de Luciana Saddi1

 

 

Edival Antonio Lessnau Perrini

Membro fundador e efetivo com função didática do Grupo Psicanalítico de Curitiba, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autor de Armazém de ecos e achados, O olho das águas, entre outros livros de poesia

Endereço para correspondência

 

 

Saddi, Luciana. Educação para a morte. São Paulo: Editora Patuá, 2017. 132 p.

Porque estou vivo posso ler Educação para a morte, e sonhá-lo. Porque estou vivo posso dizer morte e vida. Porque estou vivo posso me emocionar com o desejo de realizar em mim, e partilhar com vocês, essa verdade que somente existe, e me toca criativamente, se posso integrá-la: morte e vida, a partir das histórias contadas por esse narrador que habita a ficção de Luciana Saddi.

Quando algo não existe sozinho e pede companhia, temos um par. Se há fertilidade nas partes desse par, temos um casal. E o casal tem a possibilidade mágica de inaugurar na mente, e concretizar na vida, um terceiro. É o mistério da trindade: pais, filho e o milagre do espírito. A alma nasce do par que pode se transformar em casal. No início era a Luciana. Depois nasceu seu livro. O terceiro é o livro da Luciana e a Luciana mesma vestida de poiesis reverberando em nós. Sonhar é a educação para a vida que contém a educação para a morte: nós em sintonia com a natureza.

O mistério aparece logo no primeiro conto de Educação para a morte: nada melhor do que uma avó para ensinar os meandros da fertilidade: "No mundo sempre teve parreira que dava folha de uva e parreira que dava uva" (p. 13). Folha de uva não é uva, é parreira. Há pares que não produzem frutos. Nem certo nem errado. Faz parte da natureza. Há pares que evoluem para casal: a uva é a possibilidade-fruto do dois que pode ser três.

A morte da avó traz a verdade da morte embrulhada na verdade da vida ou na ojeriza desagregadora da mentira: "Fiquei furiosa com minha mãe: como teve coragem de mentir e de me enganar numa hora dessas?" (p. 14). Educação é algo que não existe longe da verdade. A verdade é a vida que contém, naturalmente, a morte. A verdade é a vida ativa que agrega e se movimenta dentro de outro movimento, a morte, que busca paralisação.

Um livro é bom quando ele pode ser simples sem ser superficial. Os contos de Luciana, em Educação para a morte, são assim. Eles tecem naturalmente uma interligação entre as coisas simples, aparentemente "ações inúteis": integram a complexidade do viver como o oxigênio nos alimenta e nos energiza sem precisarmos perceber que isso está acontecendo: "Para aguentar a escola era preciso um saco de balas por semana" (p. 17) ou "Toda a maldade do mundo por causa de balas de framboesa que já nem eram tão boas" (pp. 19-20).

A dor é crônica na criança diante de questões complexas que são violentamente desdenhadas pelo adulto insensível. Se ele é incapaz de fazer empatia com essa complexidade, menospreza e se afasta da criança e, em sua vivência anestesiada, sente-se certo de que "coisas simples" não merecem nenhuma consideração.

Ficamos perplexos diante da ironia de uma realidade cruel: sem mente para dar conta de emoções que ainda não cabem nela, gera-se o impotente grito de seres que anunciam, desesperados, a morte do sentimento e o precipício na vida que vai se configurando sem lugar para a alma.

As primeiras cores da sexualidade e seus pesados ares de tormenta também contemplam a manhã da consciência da menina. Ela precisa deixar de ser menina para que seja possível caber nela a mulher. E esse movimento, e essa agonia, o narrador criado por Luciana desenvolve com perspicácia e traços precisos: como desconstruir tantas experiências que, rapidamente, vão deixando de fazer sentido na novíssima mulher? A avalanche de ideias a partir do beijo de línguas é antológica em tensão, dor e aproximação de ares perigosíssimos de prazer:

Não era verdade, não podia ser verdade, onde já se viu que beijo na boca era uma coisa daquelas, duas línguas se encostando? Uma entrando dentro da boca da outra. Onde inventaram uma coisa tão nojenta? Já era difícil viver num mundo onde o coelhinho da Páscoa era uma invenção cretina de adultos tentando convencer crianças estúpidas que um coelho bota ovos, e ainda por cima de chocolate, como? [...]. (p. 27)

Há um labirinto entre as tensões da sexualidade e a experiência de amar. Como percorrê-lo? Como não se perder ou se machucar nessa travessia? Como contar com os adultos, tão contraditórios também? Como um cientista em seu laboratório, é preciso experimentar essas coisas primeiro com animais: Triger, "o mais maravilhoso cavalo de todos os tempos", e Sandra, "a cadelinha mais feia do mundo, mas não para mim", são objetos transitórios de um amor que se forma, e precisa ser vivido de forma mais ou menos protegida. Há um enorme vão que separa o amor acomodado do adulto e o amor novo e intenso que se forma em cólicas de excitação e medo:

Meu pai me ensinava como cuidar da cadela. Minha mãe, enciumada, providenciava o necessário - era importante se fazer presente nessas horas - para não ser esquecida nessa ocasião marcante, pois era visível a minha transformação. Sandra era o destino. Sandra não seria um objeto a ser exibido na escola. Sandra, meu primeiro amor. (p. 36)

A leitura de Educação para a morte nos coloca diante da encruzilhada que é a vida, que pode, sutil e distraidamente, tomar o caminho da morte. Se a criança ou o adulto convivem todo o tempo com a dor crônica de um mundo de emoções e sentimentos que neles ainda não cabem, e se não encontram pessoas capazes de responder positivamente ao desafio de construir, com eles, um continente para tantas sensações desencontradas, temos a concretização da educação para a morte. Essa é uma tensão que se apresenta clara e espessa durante todo o livro.

A foz de Educação para a morte é o tríptico de Édipo, apoteose e supremo desafio de nossa condição humana de permitirmos, finalmente, a presença da vida que gera a alma de um terceiro, ou o desembocar irremediavelmente na tragédia.

Os contos finais expressam as tragédias da vida realmente como elas são: sempre três pessoas, sempre uma excluída, sempre a solidão soberana que, feito bandeira desfraldada, comemora a vitória dos desastres, a sina humana da eterna repetição que nos sobra quando não podemos vivenciar o desafio da trindade.

"Ao leite", "Meio Amargo" e "Amargo", por exemplo, são expressões desse desamparo, desse caminho inexorável que nos desafia a viver uma vida que, cada vez mais, nos parece inatingível quando o que temos é a areia movediça da repetição: João, Maria e Zé, ou João, Ana e Zé, somos nós, você e eu, escancarados e, desesperadamente, tentando nos salvar da morte inevitável da exclusão sem volta.

Eis um livro espesso, como a vida que se tortura na solidão, no desamparo e na falta de alma. Por isso a holografia final grita o poema "Torturas", de Szymborska:

Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta. [...]

Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
some, volta, chega perto, voa longe
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora certa de sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.
(Szymborska, 2011, p. 79)

Educação para a morte é um livro denso, compacto, consistente e encorpado. Mas é depois de lê-lo que se percebe o caminho percorrido. A leitura em si é tranquila e prazerosa. Não se apreende, de imediato, que o mar vai ficando agitado e revolto e que vai se formando uma ressaca dentro de nós. Em 1897, Freud escreveu a Fliess, sobre a encenação de Édipo Rei, dizendo que havia, no público que assiste à encenação, "esta compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma". Esse é o maior mérito do livro de Luciana.

A alegria de ler um livro bom, porque espesso, faz-me desaguar em outro poeta maravilhoso porque intenso: João Cabal de Melo Neto. Três estrofes do final de seu poema "Discurso do Capibaribe" me gritam sobre morte e vida, espessura e intensidade, desvitalização e vitalidade, embrulhadas em preciosa estética. Encerro com elas este comentário, minha forma de dizer: evoé, Luciana Saddi!

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas. [...]

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor:
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).
(Melo Neto, 1979, pp. 174-175)

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1969). Carta 71 a Fliess. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. I). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1897).         [ Links ]

Melo Neto, J. C. de (1979). Discurso do Capibaribe. In ______. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio. (Trabalho original publicado em 1965).         [ Links ]

Szymborska, W. (2011). Torturas. In ______. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
EDIVAL ANTONIO LESSNAU PERRINI
Rua da Paz, 195/ 416
80060-160 – Curitiba – PR
tel.: 41 3264-6661
edivalperrini@gmail.com

Recebido 15.11.2017
Aceito 12.05.2018

 

 

1 Comentário apresentado em Diálogos Psicanalíticos, no XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Fortaleza, 1º a 4 de novembro de 2017.

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