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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo jan./jun. 2018

 

RESENHAS

 

Psicanalisarium

 

 

Neyla Regina de Avila F. França

Endereço para correspondência

 

 

Melícias, A. B. (Org.) et al. Psicanalisarium - quatro crianças no divã. Lisboa: Freud & Companhia, 2017. 148 p.

Começamos a resenha desse livro pelo seu título, que chama a atenção para além de seu conteúdo. Na quarta capa, a organizadora Ana Belchior Melícias nos conta como surgiu o nome:

Inventada e nascida da própria concepção do livro, a palavra "psicanalisarium" parece condensar, insaturadamente, ofício, espaço, tempo, movimento, sonho, criatividade, reverie e fantasia, remetendo tanto à sala analítica propriamente dita como ao setting mental do analista, mas também ao espaço potencial criado pela dupla, e, ainda, ao dinamismo estético do processo analítico a desenrolar-se.

Aqui temos a essência desse livro, no qual as quatro autoras trazem a público o quotidiano de sua clínica, possibilitando olharmos dentro da sala de atendimento. É, portanto, uma importante contribuição para aqueles que trabalham ou se iniciam na psicanálise de criança.

A apresentação é quase um capítulo, na qual a organizadora Ana Melícias faz um rico histórico da psicanálise de criança desde os primórdios, iniciando com Freud, passando por diversos autores e se detendo em Klein, que sistematizou a técnica desse atendimento, privilegiando o jogo e o desenho.

Nesta resenha quero salientar alguns aspectos de cada capítulo, principalmente aqueles que considero serem mais relevantes em cada caso.

 

Capítulo I - O caso de Rita

Rita, menina bonita, delicada, com expressão triste, é trazida para a consulta pela avó materna. Assim a analista nos apresenta sua pequena paciente.

Nesse primeiro contato vemos o olhar atento e perspicaz da analista. Somos impactados, como ela também foi, pela primeira questão técnica: Rita é trazida pela avó, sem concordância dos pais. Isabel, a analista, impõe um limite: só pode atender a paciente, para a análise, com aquiescência dos pais. Esse fato causa estranheza e nos indica uma dinâmica familiar, na qual os limites entre as gerações não são respeitados.

Diante da negativa da analista a família marca uma consulta. Dessa forma, inicia-se o tratamento de Rita, agora com os pais incluídos. No contato com os pais e a criança vamos conhecendo a dinâmica interna e também a do meio.

As primeiras consultas com os pais mostram como foram construídas as relações iniciais de Rita. Seu nascimento se dá num contexto de dificuldades dos pais, depressão pós-parto, interferências dos avós, dificuldades da mãe em desenvolver sua maternagem etc.

A entrada na escola trás à tona as dificuldades de separação e de adaptação a novas situações. O nascimento de irmãos também não foi elaborado.

Ressaltamos a importância de conhecermos o trajeto vivido pela criança até o momento em que chega ao nosso consultório, para que tenhamos noção das dinâmicas familiares e possamos compreender os sintomas que são trazidos, principalmente pelos pais. Acompanhamos a seguir os diversos momentos desse atendimento, no qual Rita vai apresentando suas preocupações e angústias e a analista, receptiva e continente, vai lhe dando condições para que se desenvolva, capacitando-a para lidar melhor com seu mundo interno e o meio externo em que vive.

 

Capítulo II - Flora

Flora é uma menina de três anos e meio que apresenta oscilações de humor, agride os colegas e sente-se incomodada com o olhar do outro. O episódio que leva Flora à consulta é um acontecimento na escola em que, sentada no chão e de costas para os colegas, balança-se batendo a cabeça na parede e não responde à voz da professora, parecendo estar alheia à realidade externa. Tal fato chamou a atenção da professora e dos pais, que decidiram levá-la à consulta com uma psicanalista.

Examinando sua estória, vemos várias tentativas de ajuda, sem sucesso. Por exemplo, avaliação neuropsicológica, psicomotricidade e psicoterapia.

Para estes pais, descrentes e desconfiados, foi importante um trabalho com eles para que a análise tivesse continuidade.

A terapeuta relata as dificuldades enfrentadas no início dessa análise, tais como, não poder falar, tinha que permanecer de costas sem olhar para o que se passava. Os brinquedos eram atirados pelos ares, acompanhado de gritos, como se fosse uma luta com mortos e feridos.

Flora convida a analista para ver a "Flora morrida". Esse comportamento se repete por um tempo e a analista é tomada durante as sessões de muito sono, decorrente das intensas identificações projetivas. A analista faz a hipótese de um intenso sofrimento interno que não é simbolizado.

Flora instituiu, na sessão, momentos em que as duas deviam dormir (dormidas).

A analista capta a existência de um mundo interno terrorífico e, após a sessão de ataques em que a paciente fica "machucada", ela introduz remédios, que visam limpar e curar feridas, desinfetá-las etc. Penso que essa comunicação pela ação, num momento em que não há possibilidade do uso de interpretações verbais, abriu a possiblidade de acessar a mente dessa criança tão comprometida.

A partir de então é possível observar os progressos desse trabalho, sendo nomeados seus terrores, ataques e medos.

 

Capítulo III - Pedro

Pedro, 4 anos, é descrito como muito possesivo com o pai, com quem tinha uma relação preferencial e com quem dormia frequentemente. Dominador, agressivo com os irmãos e intolerante às frustrações, tinha medo de elevadores, pesadelos e enurese noturna.

Um início de análise difícil, em que Raquel, a analista, depara-se com uma criança pouco colaboradora e que não brinca.

Pedro era uma criança que não sabia brincar. Tinha tido um início de vida em que recebera pouca atenção da mãe, que permaneceu deprimida por dois anos após seu nascimento. O pai tentou suprir essa falta, porém nem sempre conseguia. Era habituado a ficar ao lado do pai, contudo, no computador.

Raquel nos oferece o relato de muitas passagens dessa análise nas quais podemos acompanhar o desenvolvimento dessa criança. Paralelamente ao atendimento de Pedro, a analista realizou um trabalho com os pais que foi de suma importância para que estes construíssem e desenvolvessem suas funções materna e paterna. O trabalho analítico permitiu que Pedro lidasse melhor com seus aspectos agressivos e se adaptasse à escola, melhorando seu contato com os colegas e com os irmãos em casa.

 

Capítulo IV - Enzo

Enzo, com 6 anos, ao ingressar na escola, entra em grande sofrimento, pois não consegue se separar dos pais. Os pais relatam que, diante de situações novas, ele já apresentava dificuldades de se integrar ou ficava num quadro de excitação. Enzo é praticamente um latente e como tal deveria ter percorrido um trajeto que o capacitaria estar mais preparado para a entrada na escola sem problemas, o que não ocorreu. É uma criança com dificuldade de separação e de se adaptar a novas situações.

Salientamos aqui a capacidade empática da analista com o sofrimento dessa criança, que não tem recursos para expressar sua dor.

No início da primeira sessão Enzo se recusa a se separar da mãe e, diante desse impasse, vemos uma analista sensível e criativa que propõe um jogo de adivinhação, como possibilidade de comunicação e vencer as resistências.

Apesar de um sucesso nesse primeiro contato, ele não se mantém, e na segunda sessão Enzo retorna bastante regredido e resistente.

A analista suporta o choro e os gritos de Enzo, "bebê-cocô", como ele se denomina, e sua intervenção é dada por uma postura de acolhimento e paciência, permitindo que, no final da sessão, apareçam aspectos mais evoluídos de sua personalidade.

Esta clivagem entre aspectos mais regredidos, "bebê-cocô" e o menino mais crescido, de 6 anos, é sabiamente lidada com poucas intervenções interpretativas, mas principalmente por uma atitude interna da analista de compreensão, acolhimento e contenção. No decorrer desse capítulo, é apresentada a evolução dessa análise, que possibilita a elaboração de angústias muito primitivas, a partir de seus desenhos e de momentos de maior integração.

É um livro iminentemente clínico, no qual a elaboração teórica, dentro do referencial de cada autora, é bastante pertinente e elucidativa para a compreensão dos casos clínicos aqui descritos.

 

 

Endereço para correspondência:
NEYLA REGINA DE AVILA F. FRA ÇA
Rua João Moura, 647/82
05412-911 – São Paulo – SP
tel.: 11 97283-6030
nrfranca@uol.com.br

Recebido 19.04.2018
Aceito 12.05.2018

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