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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Do Easy rider ao Sem destino

 

From Easy rider to Without destiny

 

 

Felípe F. De Nichile

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicólogo clínico, psicanalista, docente e supervisor clínico do curso de Formação em Psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos. Mestre em psicologia clínica pelo núcleo Formações da Cultura e Subjetividade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP). Autor do livro Paciente-limite: entre Winnicott e Green (2015)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Por meio deste artigo, o autor tenta utilizar os modelos apresentados no filme Easy rider para pensar as possibilidades, ou não, da criação de aberturas para que o psiquismo possa entrar em contato com o imponderável. O modelo privilegiado para abordar o abismo que existe entre a possibilidade, ou não, de entrar em contato com o desconhecido leva em conta a tradução do título do filme em inglês Easy rider para o título em português Sem destino.

Palavras-chave: Easy rider. Psicanálise. Imponderável. Finalidade. Bion.


SUMMARY

Through this article the author tries to use the models presented in the film Easy rider to think about the possibilities, or not, of creating apertures so that the psyche can come into contact with the imponderable. The model privileged to approach the abyss that exists between the possibility or not of contacting the unknown takes into account the translation of the title of the film in English Easy rider for the title in Portuguese Without destiny.

Keywords: Easy rider. Psychoanalysis. Imponderable. Purpose. Bion.


 

 

O horizonte me pede para ir tão longe...
Será que eu vou?

(Moana, 2016)

 

Introdução

Quando recebi o edital da revista Ide nos convidando a enviar possíveis textos para sua edição de número 66 e informando-nos que o estímulo seria Easy rider (1969), um filme cujo espírito adolescente (e que neste ano, coincidentemente, torna-se quinquagenário) fez dele uma espécie de ícone da geração da contracultura norte-americana proveniente dos anos 1970, fiquei imediatamente tentado a contribuir para a revista com algum material. Apesar do clima emocional dessa época, que em terras brasilis remete ao auge do "atualmente festejado" regime militar, não ter sido algo muito familiar nem a mim, nem aos meus pais (sou de 1979, aniversário de dez de anos do lançamento do filme nos cinemas), isso, todavia, não impediu que esse longa-metragem tenha causado em mim um profundo impacto.

Como pesquisador, confesso que a catexia responsável pela excitação em escrever sobre um tema determinado é algo extremamente gratificante e motivador, sabemos que o vínculo amoroso é inebriante e que a força deste arrebatamento, principalmente quando ornamentada com as cores do apaixonamento, costuma ser o arauto da promessa de (re) encontro com ideais narcísicos apoiados em modelos alucinatórios de gratificação; an easy ride1! Contudo, se a reflexão almejada estiver de fato contida no campo da psicanálise, será sempre aconselhável ao autor que viaje com o pisca-alerta aceso, afinal, embora muitas vezes não procure, não é raro que acabe vendo surgir diante de si a incômoda face do inquietante e, consequentemente, com a necessidade de se resituar diante de seus próprios posicionamentos. Deveras, a psicanálise tende a comprovar que para o ser humano somente a experiência de dor envolvida no fenômeno da frustração é capaz de desorientar as defesas e gerar crescimento psíquico e, portanto, mudanças no pensamento: cupido costuma mesmo ser tomado por um deus traiçoeiro!

Antes de assistir ou mesmo conhecer o filme de Dennis Hopper e Peter Fonda, um dos fatores que sempre chamou a minha atenção foi a sua fascinante trilha sonora, com a qual entrei em contato muitos anos antes de sequer saber da existência do filme. Nesse sentido, poderíamos até enveredar nosso texto na direção de uma reflexão sobre até que ponto um ouvido musical (tal qual o ouvido do analista) pode ou não ser treinado, tema ao qual sinto que meu testemunho talvez pudesse ter algo a acrescentar. Minha relação com a música (e com a psicanálise) pode ser descrita como um romance, repleto de cenas de ruptura e conciliação, cujo trajeto já me fez passar por conservatórios, professores de música, além de grupos musicais de diversos tipos e gêneros, afinal, somos eternos candidatos quando a tarefa que nos propomos é encontrar nossa música. Todavia o som que primeiro cativou minha alma foi o rock n'roll dos anos 1970, e foi tão forte esse afeto que, quando uma memória de algum antigo show meu surge teimosamente em minha mente, a música de fundo que experimento é algo do gênero "Born to be wild", canção que, inclusive, durante muitos anos abriu o repertório de uma das bandas que integrei.

Uma voz em mim diz que seria mais fácil encerrar essa questão simplesmente reafirmando uma frase que um analisando costuma citar ao se lembrar de um de seus professores: "Psicanálise é como rock n'roll, quando bate, fica"! Isto, porém, se não estou enganado, somente acabaria servindo para reafirmar uma posição saturada em uma tentativa de, assim, me esquivar de experimentar certas angústias, algo que, quer como músico, quer como analista, contribuiria muito pouco para aprofundar o conhecimento que tenho do meu objeto.

Fato é que ter sido cativado por esse tipo de som também não deixa de ter seu tom irônico, dado que nasci em uma casa onde meus famíliares escutavam muito pouca música (minha mãe gostava um pouco do iê, iê iê dos Beatles e de Roberto Carlos, e meu pai, de velhas canções brasileiras, como Nelson Gonçalves e Lupicínio Rodrigues), e a apreciação da leitura silenciosa fazia com que apenas muito raramente alguém ligasse um rádio ou cantarolasse uma canção. As primeiras transmissões radiofônicas das quais me lembro vinham do rádio de minha "babá", algum programa policial, a leitura de uma carta: "Que saudades de você!", ou um pagode "do Gago".

Passados alguns anos, nessa já não tão silenciosa casa, as primeiras vezes que o som do Woodstock conseguiu transpor os portões e alcançar meus ouvidos foram clandestinamente, principalmente através dos filmes, estes, sim, objetos de amor de todo conjunto familiar. Como ressalta Freud, e os mitos, quando falamos de escolhas, amorosas ou não, o "eu não é senhor de sua própria casa", ou seja, não escolhemos aquilo que amamos, simplesmente amamos. Enfim, nem a falta de incentivo de meus pais, nem a ausência de familiaridade com essa linguagem foram capazes de impedir que eu acabasse me apaixonando cada vez mais por essas canções, ao mesmo tempo que o walkman ia se tornando um item a cada dia mais presente e valioso em minha vida. Logo estaria imitando os gestos de meus guitarristas preferidos com uma raquete de tênis e, alguns anos depois, me dedicando para aprender a tocar e a ensinar o instrumento: as fronteiras que separam liberdade de destino são sempre uma questão. Estão em constante tensão.

 

Traindo e traduzindo

Ainda pensando nessa problemática, mas entrando especificamente na seara que dá nome ao texto, o meu ensonhamento da tradução do título original do filme para a nossa língua-mãe: Easy rider, algo que aqui no Brasil a licença poética do tradutor poderia muito bem ter feito com que o filme acabasse sendo batizado de Passeio brutal: uma dupla do barulho!2 ou algum outro pastiche de gênero bizarro. Todavia quis o destino que recebesse um título bastante intrigante: Sem destino, que, apesar de distorcer significativamente seu nome original, cria uma abertura, pelo menos ao meu ver, em face a sua penumbra de associações, para que a audiência (se munida de alguma boa vontade) possa entrar em contato com uma das mais ricas ideias que me parece implícita nesse supostamente despretensioso filme, ainda que talvez, devo admitir, à revelia de seus autores:3 o "flanar" ou flanêur4, como um deslocar-se, desprovido de propósito, como uma possível abertura para o abarcamento do imponderável.

Nessa fábula moderna, será cantada a saga de Bill e Wyatt, dois motoqueiros dos quais a única coisa que se sabe é que partiram de Los Angeles em busca da realização do sonho norte-americano: ganhar uma bolada de dinheiro em uma única operação, que consistiria em trazer uma grande quantidade de cocaína para vender dentro dos Estados Unidos; a finalidade dessa operação seria obter com isso um lucro considerável, condição para dar materialidade ao ideal de uma "vida fácil"5, desprovida de preocupações mundanas. Até aí, nenhuma novidade, mais uma dupla de foras da lei repetindo a mesma lenga-lenga dos antigos filmes de "bang-bang" com seus assaltos a banco e roubos de diligências. As situações que vivenciam, porém, afastam-se bastante da antiga ladainha do mocinho e bandido, afinal, nesse mundo em transição que Easy rider nos auxilia a dar figurabilidade, os estereótipos começam a se confundir, impedindo que o telespectador simplesmente seja sugestionado a se identificar ou tomar partido. Liberdade ou destino, a questão passa, a partir desse viés, a ser passível de problematização.

Cumprida a missão, algo cujo êxtase, em nosso repertório tupiniquim, talvez pudesse ser transposto pelo modelo análogo do "ganhar na loteria", ressuscita-se com isso a esperança de um retorno ao Éden, trazendo consigo a possibilidade de dinamitar as paredes que separam o Eu do Eu ideal dos personagens. Essa realização é sutilmente apresentada ao espectador na forma da troca das duas invisíveis "lambretas" com as quais os personagens iniciam o filme, para fazer surgir na tela as duas magníficas motocicletas Harley Davidson, uma delas, inclusive, estampada com a bandeira estadunidense, que irão dividir com os atores o protagonismo do filme.

Wyatt, ao se metamorfosear no Capitão América, livra-se dos grilhões que acorrentam seus pés ao princípio da realidade, atirando longe seu relógio de pulso, em uma metáfora que ilustra que seu tempo interno e o seu tempo externo já não estão mais cindidos. O semblante do pai da horda primeva ressurge na figura de seus filhos, anunciando o início de uma nova dinastia, esta sob a égide do princípio do prazer. Nos tanques de combustível das motos, seu recém-adquirido tesouro; uma segurança que, a partir dali, o que quer que fosse preciso para transformar qualquer entrevero em tristeza banal, fora finalmente conquistada: o destino da dupla é a folia do Mardi Gras6.

Entra a música "Born to be wild", que abre o filme como expressão de um grito de liberdade, saudando o "falo" restituído mediante um retorno ao narcisismo primordial; a possibilidade hedonista da realização de todas as metas pulsionais até outrora inibidas. A liberdade transpõe o destino, os homens comuns da idade do ferro novamente se tornam heróis, ao mesmo tempo que se desenrolam os créditos do filme. Paradoxalmente, assim que a música para e os créditos baixam, a dura face da realidade não irá tardar em dar as caras na figura de seu primeiro revés: mesmo pilotando a moto dos sonhos e com o bolso cheio de dinheiro, seu encontro com a fada madrinha é posto em xeque: em razão de sua aparência inusual, não são aceitos nem mesmo em um pequeno hotelzinho de beira de estrada, o que os obriga a pousar no relento da estrada. O que teria sucedido aos nossos heróis? Não estavam eles em posse da lâmpada maravilhosa? Capazes de transformar em fato a sonhada realização alucinatória de desejos?

Em menos de dez minutos, apresenta-se o ponto de virada do filme: "o rei está nu"! O pragmatismo determinista dos personagens mostra seu furo, melando com as cores do real aquela que deveria ser uma experiência de puro prazer. Cria-se uma lacuna entre a almejada - e supostamente recém-conquistada - onipotência e a face traumática da realidade. Será que essa cratera poderá se tornar um espaço potencial fértil? Permitir-se ser penetrada para dar continência ao desconhecido? Estaria o público norte-americano tão acostumado com as vicissitudes da sugestão, com as armadilhas do darwinismo social e dos modelos preformados, pronto para encarar o imponderável Sem destino? Freud uma vez mais desembarca em águas norte-americanas, trazendo consigo a peste!

Na minha hipótese, aqui passa a ser possível vislumbrar o abismo que separa o Easy rider, título original do longa-metragem, da sua boa/má tradução para o português: Sem destino. Ao longo da viagem, o sinistro irá surgir pela rota na figura das mais diversas situações e personagens, todas elas repletas de contradições e vazios de significação; um grupo de jovens, belos, criativos e esperançosos, passam fome: suas ideias germinam, porém, estão arando o deserto. Em outra passagem, a dupla é recolhida à cadeia por perturbar a ordem em uma cidadezinha - é lá que Bill e Wyatt irão se encontrar com o filho do dono dali, um advogado, exilado, meio que por vontade própria, protegido de si mesmo; liberta as três figuras desse apuro, abre-se a porta da gaiola, contudo não fica muito claro quem liberta quem, uma vez que o advogado se une à dupla nessa heroica jornada. O inexorável destino, porém, não irá permitir que seu voo libertário dure além de algumas batidas de asas, sua vida encontrará seu termo em uma cova rasa a alguns quilômetros dali, em uma tortaria, o mais familiar dos estabelecimentos estadunidenses. Quem poderia suspeitar que esse local poderia ser mais mortífero do que qualquer saloon saído dos filmes de Clint Eastwood?

Os cavalos, então, tornam-se motocicletas, os heroicos e incansáveis cowboys dos antigos filmes de "velho oeste" cedem lugar a personagens indolentes, que já não estão mais interessados em honra, desafios ou aventuras, muito pelo contrário, a ordem do dia é evitar qualquer envolvimento, ser durão, manter-se incólume e seguir em frente. O Easy rider, diante do enigma da esfinge, almeja evadir-se, salvar sua própria pele, quer seja na realidade, acelerando sua moto, quer na fantasia, por meio de muitos tipos de drogas que o devolve aos objetos de seu mundo interno: o novo Édipo se torna Narciso!

O slogan do filme é "A man went looking for America. And couldn't find it anywhere..."7: da luta pelos direitos civis e protestos contra a Guerra do Vietnã à revolução de 1968, na França, a maior parte de nós acaba ficando no meio do caminho entre a recusa e a repetição compulsiva, mecanismos de defesa da posição esquizoparanoide, assim como também são a negação e a arrogância, que caracterizam o pensamento mágico, como uma estratégia para resistir ao contato com a ambivalência afetiva que marca a posição depressiva. Essas características podem facilmente encontrar guarida na onda sedutora que alimenta a eterna juventude do Easy rider: sexo, drogas e rock n'roll.

Nesse sentido, tanto o ponto final no meio da frase que caracterizaria o live fast, die young!, quanto as eternas reticências da suspensão blasé que caracteriza a nouvelle vague podem ambas ser primeiramente utilizadas como estratégias de evasão, porém, dependendo do referencial, poderiam também ser usadas como estratégias para buscar crescimento. Todavia essa intuição não será aqui desenvolvida.

Outro caminho, este talvez impossível de ser sugerido àqueles cuja musculatura psíquica não permite sustentar a ausência de destino como um possível abarcamento do imponderável: quando o psiquismo propicia que ao longo de sua trajetória o indivíduo desenvolva um campo de possibilidades para suportar a frustração e a perda, isso o motivará a atravessar os duros períodos de enlutamento, bem como a abdicar de relações idealizadas com um outro que o determine.

Cria-se, assim, a dessaturação necessária à abertura de um espaço potencial, com capacidade de dar continência àquilo que é surpreendente e criativo. Contudo vale lembrar que a estrada que nos leva da posição esquizoparanoide à posição depressiva é sempre uma via de mão dupla, que está em constante processo de construção e que as possibilidades de seguir viajando por ela advém do modo através do qual o constitutivo força em nós sua passagem pelo acidental, drama que, em uma sala de análise, poderá ser vivido, momento a momento, junto ao analista. O tratamento psicanalítico surge como um valioso aliado, desenvolvendo ferramentas para tornar mais robusto o psiquismo, diante de um funcionamento mental que está permanentemente lidando com conflitos que envolvem experiências de amor e ódio, de pensamentos e não pensamentos, além de descobertas e repetições (Frochtengarten, s/d).

Em Aprendiendo de la experiencia (1962/ 1987), Bion escreve que, diante de uma angústia, o ser humano se vê frente a um duplo destino, o primeiro deles, mais comum, é se evadir, buscando assim o mínimo de contato com o estímulo aversivo, lembrando novamente que isso, muito mais do que uma escolha individual, é uma condição de possibilidade do indivíduo e que irá se basear no modo como ele pode perceber a sua realidade e nos recursos que possui para lidar com esta. Quando a angústia, contudo, não é imobilizadora, surge a possibilidade da segunda opção: transformar. Dar continência ao sinistro, buscando, assim, digeri-lo, elaborá-lo, processá-lo e, se tudo correr bem, criar possibilidades de transformá-lo em conhecimento e finalmente em crescimento. Essa é a operação que torna possível fazer com que algo frustrante, e que a priori pareceria um flagrante mal negócio, em algo potencialmente vantajoso.

Nesse sentido, como ilustra o modelo do filme (e o drama edípico), as categorias éticas do bom e do mau, do certo e do errado, via de regra, são insuficientes para lidar com a complexidade sem destino da vida cotidiana. Para isso será preciso um funcionamento mental diferenciado, que possa produzir categorias de pensamento referenciados em modelos não dicotômicos.

 

Do empoderamento ao imponderável

Como não escolhemos as nossas musas, minha intenção de trazer ao leitor uma experiência da clínica que pudesse contribuir com o clima emocional que aqui tento colocar em palavras fez com que surgisse em minha mente o desejo de compartilhar esta situação: durante quase dez anos, sempre que recebi um candidato à análise em meu consultório, um dos modos que encontrara, logo nas primeiras entrevistas, de dar boas-vindas ao nosso trabalho, bem como de lhe contar sobre o que eu achava que seria produzido em nossos encontros, era apresentar as premissas freudianas acerca das três feridas narcísicas que assolam o ser humano a partir do advento da ciência, descritas pelo pai da psicanálise no texto Uma dificuldade da psicanálise. Nesse texto, Freud (1917/ 2000) ressalta, mediante a sua descoberta do determinismo psíquico, o seu lugar como legítimo herdeiro de Darwin e de Copérnico, em uma cruzada contra o obscurantismo decorrente dos anos de trevas em que o conhecimento era ditado por autoridades religiosas. Com isso, procurava alçar-se ao mesmo patamar iluminado que essas outras duas figuras históricas teriam alcançado no campo do conhecimento ao deslocarem os pilares paradigmáticos que sustentavam a antiga verdade revelada, dando vazão, assim, à noção que hoje temos de verdade científica. Curiosamente, alguns anos depois, revendo Freud - Além da alma (1967), pude verificar, com algum incômodo, que o filme também se iniciava exatamente com o mesmo epílogo8, o que aliás não me impediu de o continuar utilizando.

Contudo, depois de algum tempo repetindo aquelas palavras, começou a surgir em minha mente uma inquietação acerca dos termos dessa proposta: o que significaria superar o narcisismo? Não que o determinismo psíquico tenha se tornado para mim menos verdadeiro ou enigmático, muito pelo contrário, foi a descoberta de que eu não tinha dimensão do amplo e complexo podia ser aquele objeto sobre o qual eu costumava me vangloriar de conhecer. Isto ampliou os meus horizontes, denunciando assim o tamanho de minha inocência. Então, a nova formatação da tarefa que se impunha transformou também a minha proposta, perdendo aquelas poucas linhas a sua verossimilhança, que passaram a ter outro sentido.

O que aqui ressalto é que aquelas premissas haviam se tornado para mim just an Easy ride, uma verdade que eu acabava repetindo automaticamente, simplesmente porque aquilo me confortava ao me deixar confiante de que poderia levar o paciente por vias régias já estabelecidas, me outorgando, arrogantemente, um suposto saber: de que eu seria alguém confiável para guiar o paciente na travessia das trevas de seu mundo interno. Virgílio, certa vez, colocou jocosamente minha analista em uma referência ao inferno dantesco. Uma proposta indecente, dado que sem a parceria constante do analisando que se disponibiliza a dramatizar seu drama na sala de análise, comigo colocado no lugar de continente para seus conteúdos transferenciais, nenhum verdadeiro conhecimento poderá ser ali produzido; aquecido pelo clima emocional da sessão, o caminho é construído ao caminhar.

Conforme ressalta Frochtengarten (s/d), esse também foi o caminho trilhado por Freud, que tanto na primeira como na segunda tópica se viu diante da necessidade de abrir mão de ideias confortáveis como "tornar consciente o inconsciente" ou "onde antes era o isso, o eu deve advir", dado que sua curiosidade, diante dos complexos fenômenos que observava no dia a dia de sua clínica, tivera o condão de exercitar sua humildade diante do não saber e, embora muitas vezes tivesse de enfrentar inúmeras batalhas contra resistências, internas e externas, jamais permitiu que estas deixassem de fomentar o seu incansável espírito investigativo. Nesse sentido, segundo a poetisa polonesa, ganhadora do prêmio Nobel, Wislawa Szymborska: "todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa... Em casos extremos, bem conhecidos desde a antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à sociedade" (citado por Frochtengarten, s/d).

Bion (1962/ 1987) nos presta uma versão análoga com a sua assinatura, ao alertar-nos que numa sala de análise deveria haver no mínimo duas pessoas angustiadas, caso contrário qualquer coisa poderia estar acontecendo ali, menos uma psicanálise. Enfim, devemos cuidar para que nosso furor curandis, que costuma colorir o desejo de consertar o outro, acabe lavrando um atestado de óbito à nossa capacidade de nos mantermos abertos ao desconhecido.

Ademais, pessoalmente, não seria justo com o leitor privá-lo do que minha experiência tem demonstrado: de que para manter uma escuta pouco saturada e a curiosidade catexiada, mesmos nos momentos em que a mais negra escuridão paira sobre nós, algo que se não for essencial é ao menos bastante desejável em um tratamento analítico, é a recomendação para que o analista cuide com afinco de sua análise pessoal, ferramenta esta que, apesar de imperfeita, ainda é a única bússola confiável para que não nos percamos demasiadamente no Sem destino das estradas do intrapsíquico e da intersubjetividade.

 

Uma possível conclusão...

Ainda ponderando sobre Sem destino, vem à minha mente uma provocação que, apesar de conflituosa, considero ser extremamente pertinente. Ainda nos meus primeiros meses no Instituto Durval Marcondes, eu ouvi do experiente colega Cicero Brasiliano, em uma aula de teoria da técnica, uma afirmação que me deixou algo desconcertado: "A psicanálise não tem finalidade!" - frase outorgada a Félix Gimenez, um festejado membro de nossa sociedade, já falecido, e a quem infelizmente não tive a oportunidade de conhecer. Confesso que antes de deitar aqui estas palavras, busquei, sem êxito, referências que pudessem me colocar no encalço dessa provocativa afirmação. Ainda assim, eu me autorizarei a tecer algumas considerações sobre a controversa proposição.

O método analítico exige do analisando e do analista um considerável investimento, tanto de tempo quanto de dinheiro, para que aquilo que é possível ocorrer no ambiente analítico possa efetivamente acontecer, daí talvez a dificuldade para um psicanalista em sustentar uma prática que simplesmente se outorgaria sem finalidade. A regra fundamental de nosso método, porém, é a associação livre, o que significa que trabalhamos com as associações do analisando ao requisitarmos que ele transforme em palavras tudo aquilo que, afastada a censura, surgir em sua mente. Em outras palavras, requisitamos que o analisando se mantenha Sem destino, rodando com seu carro na estrada e que tente nos contar tudo aquilo que experimenta nessa rota. A tentativa de se expressar, sem destino e sem destinatário, faz com que o analisando experimente uma sensação de terror, da qual tentará se evadir, isso é o que determina que de modo emergencial sua dinâmica libidinal venha a projetar-se transferencialmente em objetos e destinos de cunho transitório, criando a possibilidade de que esses fatores possam ser sonhados e quiçá interpretados pela função analítica.

Sua contraparte é a escuta flutuante do analista, a quem Bion (1962/ 1987) sugere que, visando uma escuta com um grau mínimo de saturação, possa se manter sem memória, sem desejo e sem compreensão: proposta igualmente impossível, a não ser que possamos abrir mão das ideias de finalidade, de destino e de tempo. Essa atitude, de conseguir manter-se numa posição de reserva, ao mesmo tempo que o aparelho psíquico permanece catexiado na emergência do fato selecionado, poderá criar as condições necessárias para que o analista possa operar a experiência emocional a partir de uma visão binocular. Nesse sentido, a ausência de finalidade não significa que aquilo que se obtém em um tratamento analítico não seja palpável ou passível de utilização, muito pelo contrário, a questão é que a relação entre aquilo que se deseja e aquilo que se obtém transcende a lógica determinista que costuma ser vigente em um ideal naturalista de ciência. A complexidade exige do analista uma outra atitude: a escuta.

Uma última associação sobre a abertura para o imponderável e Sem destino. Conta-se que em um dos seus seminários Bion foi questionado por alguém da plateia sobre o que, ao seu ver, faria o psicanalista durante as sessões quando não estava interpretando. Bion foi enfático: psicanálise! Enfim, a invejada profissão do analista bonachão, que ganha dinheiro sentado e sem muito esforço, simplesmente não é uma opção: it's not an easy ride! 9 Como diria uma estimada colega: "A psicanálise é o caminho das pedras!".

 

REFERÊNCIAS

Bion, W. R. (1987). Aprendiendo de la experiência. México: Paidós. (Trabalho original publicado em 1962).         [ Links ]

Freud, S. (2000). Uma dificuldade da psicanálise. In ______. Obras completas (Vol. 14). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917).         [ Links ]

Frochtengarten, J. (s/d). Os veios de ouro da formação analítica. Aula na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a ser publicada no Jornal de Psicanálise.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
FELÍPE FERREIRA DE NICHILE
Rua São Carlos do Pinhal, 124
01333-000 - São Paulo-SP
tel.: 11 99915-8400
felipenichile@gmail.com

Recebido 06.06.2018
Aceito 29.06.2018

 

 

1 Uma viagem tranquila!
2 Uma referências ao cartoon de Juliano Enrico, "O irmão do Jorel", que, se o leitor não concordar comigo que é uma valiosa obra de arte, que contribui para tornar nossas vidas um pouco mais ricas, pelo menos serviu para tornar a minha um pouco mais doce!
3 Ressalto essa questão, pois alguns de meus críticos sustentam que o material do filme não daria margem a essas interpretações.
4 Para uma maior apropriação desse termo, remeto o leitor à excelente aula realizada da sbpsp de Júlio Frochtengarten: "Os veios de ouro da formação analítica", ainda inédita, que será publicada no Jornal de Psicanálise, em 2019.
5 Easy life.
6 Carnaval tradicional de New Orleans.
7 "Um homem foi procurar pela América. Mas não conseguiu encontrá-la em lugar algum..."
8 Àqueles que tiverem interesse em se aprofundar nessa questão sugiro o excelente capítulo final do livro Introdução à epistemologia freudiana, de Paul-Laurent Assoun, no qual o autor descreve com bastante propriedade a construção dessa formação discursiva, denunciando, inclusive, sua faceta publicitária.
9 Não é um passeio tranquilo!

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