SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número66Contra o pai e a pátria: o “Uivo” libertário de Allen GinsbergPsicanálise, formação de massa e democracia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Deslocamentos humanos: a Odisseia de Ai Weiwei

 

Human displacements: Ai Weiwei's Odyssey

 

 

Sara Müller

Artista plástica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O foco principal do texto é relatar o envolvimento de Weiwei com a tragédia humana desencadeada pelos deslocamentos dos refugiados. A partir da obra intitulada Odisseia, mostramos, como depois de uma longa pesquisa e viagens, ele narra em uma linguagem artística os deslocamentos atuais no estilo dos desenhos da Grécia e do Egito antigos, justapondo tempos e espaços. Na sequência, abordamos seu processo de trabalho, a diversidade de temas e os materiais que utiliza e sua capacidade de interferir e se comunicar com os diferentes meios que hoje estão disponíveis. Concluindo o texto, enfatiza-se Weiwei como ativista.

Palavras-chave: Ai Weiwei. Deslocamentos. Odisseia. Tempo/ espaço. Multiplicidade.


SUMMARY

The main focus of the text is to report Weiwei's involvement with the human crisis triggered by refugee displacements. From the work titled Odyssey we show as, after long research and travels, he narrates in an artistic language the current dislocations in the style of the ancient Greek and Egyptian drawings, juxtaposing times and spaces. Then we approach his work process, the diversity of themes and materials he uses, and his ability to interfere and communicate via different media that are available today. Concluding the text it is emphasized Weiwei as an activist.

Keywords: Ai Weiwei. Displacements. Odyssey. Time/ space. Multiplicity.


 

 

 

Passar 45 anos na China me fez artista.
Seu território e sua cultura me inspiram,
assim como as dificuldades, a alegria,
a sabedoria e a estupidez do meu país.

(Ai Weiwei)1

A série de desenhos que compõe a Odisseia, obra de Weiwei sobre refugiados, vem de uma pesquisa que começa com os primeiros deslocamentos humanos descritos no Antigo Testamento e continua até os dias de hoje. Imagens da internet, mídia social e registros feitos pelo artista em campos de refugiados na África, Ásia, Europa se configuram em preto e branco no estilo inspirado nos baixo-relevos, cerâmicas e pinturas de parede da antiga Grécia e Egito. A sequência das várias cenas de fuga, migração, destruição, repressão e militarização foram impressas em papel de parede como um pergaminho, o que reforça a sensação de estarmos diante de uma odisseia contínua.

A justaposição de referências de tempo e de espaço, do passado e do presente, constrói com traços precisos uma narrativa da imensa tragédia humana. Intercalam-se camadas da história, da mitologia e da realidade atual: figuras de soldados gregos e exércitos modernos, Pietà entre escombros e ruínas, tocadoras de harpa da antiga Grécia e cercas de arame farpado. Segundo Weiwei, o desenho do papel de parede se relaciona com seis temas: guerra, ruínas, jornada feita pelos refugiados, travessia do mar, campos de refugiados, manifestações e protestos.

Em uma conversa com a revista SeLecT 2, foi-lhe perguntado: "Para você a arte tem a função de denunciar e monitorar o poder de uma forma que outras instituições, como a imprensa, não se comprometem a fazer por questões de censura, por exemplo?". Responde Weiwei: "Em alguns eventos acho que fui jornalista, fui advogado, fui alguém que batalhou por justiça social". Weiwei acrescenta: "Gosto de discutir, argumentar, gosto de encontrar detalhes da vida que criam fortes argumentos, e isso não apenas a respeito de uma pessoa, mas a respeito de sociedades onde falta esse tipo de argumento".

Weiwei chama nossa atenção para o fato de que cada refugiado é um Odisseu, um Ulisses numa longa e perigosa viagem em busca de uma morada.

Na Oca3 a Odisseia ficou tímida, colocada nas paredes de uma ilha retangular que devíamos circundar.

Aponto duas exposições onde esse trabalho ganhou presença e se impôs: Palermo e Istambul. Na primeira, mil metros quadrados de chão onde foram colocadas as tiras com as imagens impressas como um enorme tapete: o "papel-parede" se torna "papel-chão". Na segunda, as paredes de uma sala são revestidas inteiramente com as imagens da Odisseia. No centro da sala, colunas feitas com os vasos de porcelana pintados com o mesmo tema.4

Arte e vida se tornam inseparáveis. Sua necessidade do registro é constante: selfies, fotos, filmes.

"Rembrandt pintou 30, 40 vezes seu autorretrato [...] assim também o fez Van Gogh, mas eu posso fazer 50 ou 100 selfies facilmente [...] eu adoro fazê-las, eu sou o melhor selfie artist."5 Weiwei chega a passar oito horas por dia na internet. Coisas banais e não banais são captadas pelo olhar atento de Weiwei, que não se desconecta do seu entorno.

A abundância de ideias, conceitos e registros resulta numa multiplicidade de pontos de partida e chegada. A diversidade de meios de comunicação resulta numa presença em vários lugares ao mesmo tempo.

Weiwei vai atrás do que lhe desperta interesse, curiosidade e provoca o desejo de se envolver. Questões humanas de cunho político, social, cultural e mesmo casos individuais com os quais se envolve na China nos 45 anos que lá viveu e depois em outros países e continentes, especialmente a partir da crise dos refugiados.

Weiwei não se satisfaz com explicações supérfluas. Vai ao local, questiona, conversa, pesquisa, registra, monta equipes de trabalho não se importando com a duração do processo. Um grande número de pessoas é mobilizado para trabalhar nas diversas etapas. Precisa conhecer a fundo, se emocionar, observar os detalhes, captar o máximo de informação, participar, intervir. Toda essa vivência, dados levantados, filmagens, fotografias, conversas, objetos significativos coletados vão se configurando em uma linguagem artística. Uma obra que vai se construindo desde o começo do processo. O resultado não é conhecido de antemão, é fruto de cada percurso, da análise e escolha do material e dos meios que viabilizem a execução do seu projeto. O desafio continua na montagem das inúmeras exposições que realiza a cada ano em diferentes museus, galerias, espaços abertos etc. Um longo percurso até finalizar o trabalho, nomeá-lo, expor.

Cada exposição trará uma nova configuração, criará novos impactos. Como constatamos nas diferentes montagens da Odisseia. Tudo é grande, numeroso, impactante: 400 exposições até 2016, 150 viagens nos últimos três anos, 1.000 horas de filmagem para Human flow6, milhões de sementes de girassol em porcelana pintadas à mão ocupando o Turbine Hall da Tate Modern, em Londres7, 14.000 coletes salva-vidas coletados em Lesbos8, 164 toneladas de barras de ferro resgatados dos escombros das escolas de Sichuan, na China9, 1.254 bicicletas.10 Bicicletas, porcelana, ferro, coletes salva-vidas, mochilas escolares, fibra de vidro... Instalação, site-specific, filmes, fotos, ready-made...

Weiwei, artista controverso, em meio ao seu turbilhão produtivo, não poupa esforços para fazer o que acha que tem que ser feito. Num gesto de inconformismo diante das duras condições da vida dos refugiados nos acampamentos, engendra uma intervenção que mostra ser possível o improvável:

Doze de março de 2016. Campo de refugiados na fronteira da Grécia com a Macedônia. Sobre uma grama rala entremeada de pequenas poças de água e partes de terra, pousa uma prancha retangular de madeira, não muito espessa, forrada com um grosso tecido verde. Em cima, um piano de cauda branco, um banquinho com rodinhas e um tripé segurando uma câmera. A jovem síria, Nour Al Khizam, vestindo calças pretas, um agasalho cinza, um lenço envolvendo sua cabeça, está sentada no banquinho e toca o piano. Ao seu lado, duas crianças assistem em pé. Três homens adultos também com roupas de inverno seguram um plástico transparente, aberto, que protege o piano e a pianista. O céu está cinza, porém luminoso, uma fina névoa branca percorre o ar. O homem à direita, ereto, os dois braços levantados acima de sua cabeça segura com as duas mãos, uma das pontas do plástico. Esse homem é Ai Weiwei.11

A cena descrita acima aparece nas tiras da Odisseia. Ao trazer um piano para o campo de Idomeni e convidar a jovem aspirante a pianista a tocá-lo, Weiwei reafirma sua condição de eterno refugiado e de ser humano sensível ao destino alheio. Aponta que somos todos iguais, com sonhos, aspirações e necessidades.

Seu compromisso é chamar a atenção aos desvios de nossa atual condição humana: descriminação, ódio, indiferença. É um apelo ao resgate da solidariedade para com o excluído e à mudança de curso desse destino cruel que se apresenta.

O artista, com a liberdade inerente à arte, apresenta num continuum de imagens a complexidade da situação que se repete. O eterno caminhar em direção a um destino fatal. As figuras desenhadas na Odisseia urgem para que acordemos. Weiwei quer com sua arte, como ele mesmo diz, "dar voz aos que não têm como falar". Encontra a forma para ampliar tantas vozes, compartilhando também suas vivencias, expondo uma encruzilhada na qual nos deparamos com "a humanidade tendo que provar seu valor como humanos aos da sua própria espécie".

 

 

Endereço para correspondência:
SARA MÜLLER
Rua Oscar Freire, 57/70
01426-001 - São Paulo-SP
tel.: (11) 99275-8010
e-mail: saramuller@macbbs.com.br

Recebido 24.10.2018
Aceito 03.11.2018

 

 

1 Em entrevista dada a Álex Vicente (2018, 30 de julho). Ai Weiwei: "Não gosto das minhas obras. Fico surpreso que haja quem as compre" [Entrevista com Ai Weiwei]. El País, Caderno Cultura: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/29/cultura/1532900827_379707.html.
2 SeLecT (2018, 18 de outubro). "Comunicação pela raiz" [Entrevista com Ai Weiwei]. Revista SeLecT: https://www.select.art.br/ai-weiwei-comunicacao-pela-raiz.
3 Pavilhão Lucas Nogueira Garcez, localizado no Parque Ibirapuera, na cidade de São Paulo.
4 Links para quem se interessar: "Odyssey": Ai Weiwei a Palermo, no Cantieri Culturali della Zisa zac (Zona de Artes Contemporâneas): https://www.youtube.com/watch?v=ah1rxUFENd4. E Sakip Sabanci Museum, Istambul: https://www.youtube.com/watch?v=55LIxy-nENY.
5 Em entrevista dada a Alastair Sooke (2017, 18 de setembro). Ai Weiwei interview: "I am the best selfie artist" [Entrevista com Ai Weiwei]. bbc Culture: http://www.bbc.com/culture/story/20170918-ai-weiwei-interview-i-am-the-best-selfie-artist.
6 Filme-documentário de 2017.
7 Exibida, pela primeira vez, de outubro de 2010 a maio de 2011. Site do museu Tate Modern: https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/exhibition/unilever-series/unilever-series-ai-weiwei-sunflower-seeds.
8 Exibida 15 de fevereiro de 2016. Site do Colossal: https://www.thisiscolossal.com/2016/02/ai-weiwei-konzerthaus-refugee-life-vests.
9 Exibida, pela primeira vez, como foi originalmente concebido, na Oca, São Paulo, outubro 2018.
10 Artigo publicado em Public Delivery (2018, janeiro de 26). "Ai Weiwei uses thousands of bicycles to create sculpture". Site do Public Delivery: https://publicdelivery.org/ai-weiwei-forever-bicycles.
11 Descrição a partir da foto de Yannis Kolesidis publicada na reportagem de Álex Vicente (ibidem).

Creative Commons License