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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Psicanálise, formação de massa e democracia

 

Psychoanalysis, mass formation and democracy

 

 

José Martins Canelas Neto

Psiquiatra e psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor desenvolve uma reflexão a partir do conceito de "formação de massa" de Sigmund Freud sobre o papel político do ciberespaço e suas mídias sociais como criador de obstáculos ao pensamento crítico, o qual trabalha com pequenas quantidades de energia.

Palavras-chave: Formação de massa. Ciberespaço. Fascismo. Pensamento crítico.


SUMMARY

This paper utilizes Sigmund Freud's concept of "mass formation" to discuss the political role of the Cyberspace and its different types of social digital medias as obstacles to critical thinking which employs small quantities of energy.

Keywords: Mass formation. Cyberspace. Fascism. Critical thinking.


 

 

A meu ver a questão decisiva para a espécie
humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural
poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum
pelas pulsões humanas de agressão e autodestruição.

(Freud, 1930/2010)

Diante da preocupante onda de ódio e violência que estamos vivendo no Brasil atualmente, proponho trazer algumas reflexões psicanalíticas que podem nos ajudar a compreender esse sombrio momento em que vivemos.

Freud foi um importante pensador da cultura humana e publicou muitos livros e textos sobre o assunto. O mais famoso deles é O mal-estar na civilização, de 1930. Nessa obra, o inventor da psicanálise se pergunta: "como os homens, em suas condutas, revelam algo sobre a finalidade da vida?". Para ele, a resposta é simples: "Eles buscam a felicidade". No entanto é bem mais comum experimentarmos a infelicidade. Esta é proveniente de três fontes: do próprio corpo, do mundo externo e das relações com outros humanos. O sofrimento provocado por essa última fonte de infelicidade é, para Freud, aquele que experimentamos mais dolorosamente. Isso tem sido verificado por vários psicanalistas hoje em dia, devido ao clima de ódio e horror que se instalou no país.

Em 1921, numa obra quase premonitória quanto à ascensão do nazismo na Alemanha, Psicologia das massas e análise do eu, Freud mostra que a psicologia individual e a psicologia social não se opõem na medida em que, "na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde o início, uma psicologia social" (1921/2011). A psicanálise provocou uma ferida no amor próprio do homem, ao mostrar que o Eu não é mais o senhor em sua própria casa. A questão da alteridade, assim como a do diferente, faz parte da essência do ser humano. Um outro interno, constituído pelo nosso inconsciente e nosso corpo (que é um outro para nós), e o outro externo, o semelhante. Nesse texto, Freud estuda o que chamou de formação de massa, que pode aparecer com diferentes formas e durações em diversos tipos de grupo. No fascismo, o papel do líder, para o qual é transferida toda a autoridade, é fundamental para instigar a formação de massa. A massa assim formada é impulsiva, volúvel e excitável. Freud enumera algumas características da formação de massa:

a massa não tolera qualquer demora entre seu desejo e sua realização, tem o sentimento da onipotência, a noção do impossível desaparece para o indivíduo na massa. A massa é extraordinariamente crédula e influenciável, é acrítica, pensa em imagens que evocam umas às outras associativamente... e não têm sua coincidência com a realidade por uma instância razoável. Ao se reunirem os indivíduos numa massa, todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos, que dormitam no ser humano, como vestígio dos primórdios do tempo, são despertados para a livre satisfação instintiva. (Freud, 1921/2011, pp. 25-26)

Vemos nessa descrição um modelo para pensarmos a disseminação do ódio por meio de notícias falsas (fake news), em geral violentas, que se estabelecem como verdades absolutas. O indivíduo dentro da formação de massa não consegue ter um trabalho de pensamento crítico. Vimos nas eleições de 2018 no Brasil o papel proeminente das redes sociais no ciberespaço. Este favorece o fracasso do trabalho de pensamento crítico das pessoas, na medida em que se trata de um mundo real, embora virtual, no qual não existe temporalidade nem espacialidade. O trabalho de pensamento se faz numa temporalidade, com pequenas quantidades de energia, e é muito diferente das concepções passionais, nas quais é o afeto de ódio, trabalhando com grandes quantidades de energia, que conduz o pensamento.

A contaminação do pensamento pelo ódio perturba a possibilidade de se desenvolver um verdadeiro trabalho do pensar, para o qual necessitamos que as palavras não sejam banalizadas. Trabalho do pensar que é fundamental na sustentação da democracia num sentido amplo. A democracia não se limita à existência de eleições livres por voto secreto de todos os cidadãos, ela necessita que haja um clima de tolerância ao outro e às diferenças para que o debate possa ocorrer entre as forças políticas que estão em jogo num determinado momento. Quando afirmações homofóbicas, racistas, de incentivo à violência e à tortura, proferidas pelo líder, são banalizadas, abrimos a porta para o que Hanna Arendt chamou de "banalidade do mal". As palavras perdem seu valor e seu papel de único meio para evitarmos o confronto violento. Não há mais espaço algum para o debate de ideias e propostas, uma vez que incitações ao mal não são levadas a sério.

O psicanalista francês Charles Melman, em seu livro O homem sem gravidade, considera que atualmente vivemos numa cultura que sofreu importante mutação em sua economia psíquica, passando de uma economia organizada pelo recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo. Essa lógica do gozo tem relação profunda com um além do prazer e com a pulsão de morte e nela impera o imediatismo da necessidade e não do desejo.

Freud admite que há no ser humano um fator hostil à civilização. Supõe que uma profunda insatisfação com a civilização existente, em determinadas situações históricas, origina uma condenação desta última.

A cultura, conclui Freud, é edificada sobre a renúncia pulsional, pressupõe a não satisfação de poderosas pulsões. Esse fato leva à frustração causada pela cultura. Essa frustração é "causa de todas as hostilidades que a cultura tem de combater" (1921/2011, p. 60).

O sentido da evolução cultural é que ela

nos apresenta a luta entre Éros e morte, pulsão de vida e pulsão de destruição, tal como se desenrola na espécie humana. Essa luta é o conteúdo essencial da vida e, por isso, a evolução cultural pode ser designada brevemente como a luta vital da espécie humana. (Freud, 1930/2010, pp. 90-91)

Freud introduz a noção de narcisismo das pequenas diferenças. O mal-estar na civilização mostra de maneira detalhada como a agressividade primária e o narcisismo das pequenas diferenças (diferenças de cor da pele, de orientação sexual, de classes etc.) se opõem à identificação mútua: por que preferiria um estrangeiro aos meus próximos, por que amaria um estrangeiro que está prestes a me detestar e a me maltratar? Esse é o pressuposto que sustenta esse narcisismo das pequenas diferenças, que se exprime na intolerância com o outro diferente de mim.

A limitação do narcisismo é produzida apenas por um fator, pela ligação libidinal a outras pessoas. "O amor a si encontra limite apenas no amor ao outro, amor aos objetos" (Freud, 1921/2011, p. 58). Essa condição é necessária para a evolução cultural e do trabalho em comum. Esse é o papel das pulsões de vida e do amor num sentido ampliado.

O escritor Elias Canetti, prêmio Nobel de Literatura, escreveu um livro - Massa e poder (1960) - para pensar as diferentes formações de massa numa época posterior ao nazismo, no qual expõe um tipo extremo de formação de massa que denomina malta, em que a lógica da sobrevivência pura é que impera:

O momento do sobreviver é o momento do poder. O horror ante a visão da morte desfaz-se em satisfação pelo fato de não se ser o morto. Este jaz, ao passo que o sobrevivente permanece em pé. [...] A forma mais baixa do sobreviver é o matar. (Canetti, 1960, p.227)

Será preciso sempre um grande esforço daqueles que acreditam nas pulsões de vida, na tolerância, na democracia para lutarmos contra as tendências maléficas da alma humana. Cito, para terminar, um poema de Schiller:

Que se alegre,
Aquele que respira no alto na rósea luz!
Porque embaixo, é o horror,
E o homem não deve tentar os deuses
Nem nunca, para um sempre nunca, desejar ver
O que eles se dignam cobrir de noite e de terror.
(Schiller, citado por Freud, 1994/1930, p. 259)

 

REFERÊNCIAS

Canetti, E. (2008). Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1960).         [ Links ]

Freud, S. (1994). Oeuvres Complètes (Vol. 18). Paris: p.u.f.         [ Links ]

______. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921).         [ Links ]

______. (2010). O mal-estar na civilização. (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Melman, C. (2005). L'homme sans gravité. Paris: Éditions Denoël.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
JOSÉ MARTINS CANELAS NETO
Rua Baltazar da Veiga, 24
04510-000 - São Paulo-SP
tel.: 11 3842-4769
josecanelas@uol.com.br

Recebido 19.02.2018
Aceito 06.04.2018

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