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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo July/Dec. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Liberdade e destino: quando o outro é ninguém

 

Freedom and destiny: when the other is nobody

 

 

Eliana da Silveira Cruz Caligiuri

Membro associado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo, ilustrado por uma ficção psicanalítica, aborda tema grave e delicado: as consequências devastadoras das situações traumáticas e da falha na função do escudo protetor sobre o mundo psíquico da criança.

Palavras-chave: Trauma. Abuso. Excesso. Escudo protetor. Subjetividade.


SUMMARY

The article ilustrated by a psychoanalytic fiction, addresses a delicate and serious subject: the devastating consequences of traumatic situations and the failure of the protective shield to function over the psychic world of the child.

Keywords: Trauma. Abuse. Excess. Protective shield. Subjectivity.


 

 

A proteção contra os estímulos é uma fonte
quase mais importante, para o organismo vivo,
que a recepção deles. O escudo protetor dispõe de
seu próprio estoque de energia e deve, antes de
mais nada, esforçar-se por preservar os modos
especiais de transformação de energia que nele
operam contra os efeitos ameaçadores das enormes
energias em ação no mundo externo.

(Freud, 1920)

Em pleno século XXI, a clínica psicanalítica continua diante de situações traumáticas: aqueles acontecimentos reais, externos, inassimiláveis, e seus efeitos patogênicos, como Freud já revelara em Estudos sobre a histeria, retomando mais tarde nos textos Mais além do princípio do prazer, de 1920, e Esboço da psicanálise, de 1939.

Seguindo o tema do trauma e suas consequências, foi o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi quem, inicialmente e mais detalhadamente, descreveu, no fundamental artigo "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (1933/2011), que o estabelecimento, com uma criança, de tipos de relação e de privação de amor ou de "terrorismo do sofrimento" conduz a personalidade em formação a fixar-se às experiências carregadas excessivamente de paixão e culpa, que invadem o mundo psíquico em formação, perturbando a espontaneidade ante a vida e levando a criança a identificar-se com o adulto, esquecendo-se de si.

Essa situação pode ser agravada se faltar à criança outro adulto em quem ela possa confiar e que a ajude a se discriminar diante do mundo externo.

No encontro analítico, será fundamental fornecer a atenção e a benevolência materna, que tanto faltaram ao analisando, para promover sentido, ideias, pensamentos e símbolos às experiências traumáticas.

Entre outros autores que, demandados pela clínica, se dedicaram a estudar e escrever sobre o tema, destaco o psicanalista norte-americano Leonard Shengold (1978; 1979), que utilizou a profunda expressão "assassinato de alma" ao atentado que uma criança pode sofrer à sua identidade singular, sua alegria de viver e a capacidade para amar quando um ou mais adultos, de quem a criança depende dos cuidados, submetem-na a um regime de hiperestimulação alternado de privação de amor e de cuidados.

Para esse autor, podemos encontrar, em nossos consultórios, pacientes que sofrem não por suas fantasias inconscientes de pais excessivamente amorosos ou cruéis, e sim por agressões, tormentos e até abuso sexual cometidos pelo pai ou pais.

Só a oportunidade de uma "decente relação humana" pode transformar a compulsão a repetir os traumáticos eventos. Até porque essas pessoas tendem à repetição porque parecem cultivar a esperança que o próximo contato trará amor ao invés de excesso e ódio.

Então estamos diante do desafio de continuar tomando em consideração esses graves eventos - ataques à integridade física e psicológica, punições e/ou abusos sexuais e até morte por negligência, maus tratos ou indução ao suicídio - e suas consequências, muitas vezes devastadoras, e cuidar das crianças, famílias e até do agressor.

Inspirada na minha experiência clínica, segue uma ficção psicanalítica que interroga os caminhos do destino de uma personagem cuja liberdade foi muito constrangida.

 

Ana

Durante o encontro com a assustada mãe da adolescente Ana, a terapeuta foi invadida por relatos em série: bulimia, evasão escolar, arrombamento de portas e agressões físicas - um campo de batalha instalado na família nos últimos meses, cujos protagonistas eram a garota e seu pai.

Uma recusa radical pareceu ter sido o disparador do conflito: ela deixara de frequentar todos os lugares e encontros sociais com a alegação de que estava tão feia e gorda que ninguém poderia vê-la.

Se o adolescente aceita conhecer um terapeuta, torna-se urgente estabelecer um ambiente acolhedor para alguém que restringira a vida ao ponto dramático de estar "internada" em seu quarto.

 

O refúgio

Este é um salão de feiura,
não um salão de beleza,
Ruth disse.
(Clement, 2015, p. 33)

No belíssimo livro Reze pelas mulheres roubadas, a poeta e romancista mexicana Jennifer Clement, após dez anos de entrevistas com mulheres mexicanas, narra a vida das meninas da cidade de Guerreiro, que são criadas como meninos por suas mães para protegê-las e impedir de serem sequestradas pelos narcotraficantes. Quando os primeiros sinais da puberdade despontam nos corpos das garotas, suas mães cavam buracos no quintal das casas para esconder suas filhas.

O que teria acontecido com aquela linda menina que se apresentou à terapeuta, vestida com roupas folgadas e nada femininas? Que corpo ela escondia debaixo daqueles panos? E de quem ela escondia com a queixa de se sentir tão feia?

Na cidade de Guerreiro, as mães cavam os buracos para esconder e proteger suas filhas, mas nesse caso foi Ana quem cavou o seu próprio "buraco": seu quarto onde passou a viver seus dias.

O movimento de ir às sessões de terapia foi um grande ganho para o início de um contato com a garota, tornando indispensável a disponibilidade do psicanalista de escutar as inúmeras queixas e teorias a seu respeito e a respeito da vida, algumas aprendidas com o pai e outras, na mídia que ela "engolia" compulsivamente.

Não havia livros, filmes ou músicas ampliando seu dia a dia, ela se limitava a um convívio com a mãe, que não identificava o seu sofrimento e que só tentava fazê-la seguir as infindáveis dietas.

Não havia uma mãe, como aquela da personagem Ladydi Garcia Martinez, do livro acima citado, que assistisse a documentários históricos e usasse metáforas sobre Troia, Império Romano, entre outras, para sustentar emocionalmente a filha e colorir seu cotidiano.

 

Travessia

Quando voltei ao salão de beleza, todo mundo já havia tirado o esmalte das unhas. Era óbvio que ninguém ia se arriscar a sair para um mundo em que os homens acham que podem roubar você só porque suas unhas estão pintadas de vermelho.
(Clement, 2015, p. 34)

Durante a inquietante travessia, algumas peças do quebra-cabeça foram surgindo. Uma experiência sexual foi a ponta do iceberg.

Nessas vivências, uma adolescente pode ser assaltada pelo medo e a culpa, o pavor da gravidez, a paranoia das doenças e uma vergonha de seu corpo. Se não confiar em ninguém à sua volta, resta-lhe viver essa dor solitariamente, e diversos sintomas tendem a surgir, como a anorexia e a bulimia.

E foi num cenário como esse que se acentuou a recusa de Ana a quase tudo de sua vida, destacando-se a rejeição em relação ao pai, que, por sua vez, reagiu violentamente.

Quando uma figura paterna poderosa, autoritária, impositiva e invasiva vai tomando forma e o adolescente sente tal relação como insuportável, a análise pode ser o espaço de surgimento de lembranças de situações conflitivas anteriores ainda não reveladas, não ditas. É através da palavra que experiências reprimidas podem surgir.

Ana, em uma das primeiras manifestações de sua subjetividade, passou a trancar a porta de seu quarto, e o pai, não aceitando sua atitude, impediu brutalmente tal tentativa de defender sua privacidade. Não são raros os casos nos quais uma mãe, diante de um pai violento, omite-se e abandona o filho aos maus tratos do adulto.E esta foi uma outra situação traumática vivida pela garota: sua mãe não atendeu aos seus pedidos de acolhimento e ajuda.

Ressentida e desamparada, a adolescente inicialmente desistiu, mas, quando a crise eclodiu, arrumou uma forma de bloquear o seu quarto.

Num texto publicado na revista Ide em 2015, "Incesto: o corpo roubado", Juan Eduardo Tesone ressalta a frequência dos transtornos de alimentação - bulimia e anorexia -, dos repetidos acidentes e de francas tentativas de suicídio em crianças que viveram relações incestuosas. Acrescenta ainda outra hipótese, levantada por Ferenczi (1933/2011), de uma amnésia consecutiva a esse tipo de trauma, "uma psicose passageira", como uma primeira reação ao choque, mantendo secreta uma parte da personalidade, condenando a criança a um sofrimento mudo.

 

O sofrimento de Ana

Acontecimentos excessivos podem gerar no sujeito um distanciamento afetivo como forma de sobrevivência psíquica, aparecendo no processo terapêutico oscilações entre sentimentos de estranheza, mal-estar raivoso e momentos de indiferença em relação à situação traumática e ao agressor.

À medida que a confiança de Ana no trabalho se constituía, o conteúdo das conversas foi se modificando, emergindo questionamentos sobre a dinâmica familiar, especialmente a submissão da mãe e a soberania paterna.

Os medos, aquilo que é extremamente assustador, revelaram-se em pesadelos perturbadores, as vias de acesso no processo analítico para o trabalho no campo do simbólico. Em uma das dramáticas imagens, surgiu a perseguição do pai invadindo o quarto, e ela, acuada, vê a janela aberta e corre nessa direção.

Tornou-se urgente conversar com Ana sobre sua falta de privacidade, a invasão de seu espaço, que no sonho se expressava como um desespero sem saída. Esse movimento na dupla analítica provocou emoção, choro e foi a manifestação de seu desalento e desamparo.

No processo, desencadeou-se um período de tristeza que se intensificava a cada lembrança, quando o despotismo do pai se apresentava com tintas carregadas.

Havia um excesso na exposição do corpo do pai e era possível desenhar o campo minado que a dupla iria atravessar.

Circunstâncias como essa exigem muita cautela de um analista quando, em alguns momentos do trabalho analítico, levanta-se mais um véu encobridor de experiências excessivas, que podem trazer vivências intensas de sofrimento psíquico. E podem, também, criar condições para um fluxo de lembranças que precisam ser nomeadas como forma de cura da dor.

E foi num percurso com as características acima destacadas que surgiu a imagem de Ana, menininha, sentada na cama do casal, fazendo companhia a seu pai enquanto a mãe estava ausente. E, em uma sequência associativa, ela lembrou o momento em que começou a estranhar e se incomodar com a inadequação paterna, que foi ao frequentar a casa das amigas e conhecer os pais delas, vestidos. Essa foi uma de suas primeiras reivindicações, não atendida, de modificações na dinâmica familiar. Compreendeu, então, o porquê de nunca ter convidado suas amigas para irem à sua casa.

Um sofrimento que inicialmente fora vivido como algo de seu próprio corpo e do fracasso de um ideal pode ganhar outros sentidos: a dominação tirânica e a exposição excessiva de um pai em um comportamento exibicionista e erotizado, acompanhadas pela falta de amparo materno, mesmo diante de queixas e pedidos de socorro de uma filha.

Momento doloroso: o despertar de uma alma confusa e atormentada, aprisionada no próprio corpo e no corpo do pai, conscientizando-se de que, no início da adolescência, quando tentou esconder e proteger seu corpo em transformação, foi invadida pelo voyeurismo e pela possessividade de um pai.

No livro de Clement, Paula, uma das personagens, é sequestrada pelos narcotraficantes no início da puberdade. Sua mãe tinha vários cachorros como soldados, que latiam quando as suvs dos violentos homens se aproximavam. No dia do rapto, os cães foram mortos e a mãe não conseguiu esconder sua filha no buraco. Quando Paula retorna para casa seu corpo está marcado com queimaduras de cigarro, num desenho típico que simboliza quem é o seu dono.

 

O outro

Ana, durante a terapia, apresentou-se: uma garota que foi submetida a duras condições perturbadoras desde a infância.

De um lado o adulto - pai, erotizado, exibicionista e violento - que, com essa postura carregada de estímulos visuais e verbais, sequestrou a infância de sua filha e deixou sua marca com seu próprio corpo.

Um pai com as características e passagens ao ato do adulto abusador, como descreveu Tesone num trecho do artigo já citado, que reproduzo abaixo:

O adulto abusador, em lugar de ser o suporte da lei exogâmica, intenta ser o fazedor da lei, contudo uma lei negativa, endogâmica, em que se apresenta como um ser todo-poderoso e sem falhas, a quem tudo pertence. Nega à menina seu estatuto de sujeito separada do adulto. (2005, p. 107)

Segundo o autor, a devastação no psiquismo da criança será mais grave quando o excesso for exercido por uma das figuras parentais, configurando o incesto. Atos abusivos repetitivos durante um tempo causam traumas cumulativos, impregnando o mundo interno da criança com a pulsão de morte.

Com esse funcionamento psíquico perverso, desvalorizando a existência da realidade psíquica da filha, anexando-a ao seu narcisismo, o pai de Ana provocou um "enxerto prematuro", como descreveu Ferenczi no texto "Confusão de línguas entre os adultos e as crianças" (1933/2011). É o enxerto de uma forma de amor carregada de paixão e posteriormente de culpa, acompanhada por ódio, e esse sentimento tem tal intensidade que surpreende e choca a criança, perturbando sua espontaneidade diante da vida.

E, retornando a Shengold (1978; 1979), somente o surgimento da intensa raiva acompanhada de seu caráter assassino e, nos casos mais felizes, a possibilidade de vivenciá-la pode trazer crescimento emocional e a personalidade "como se", o "falso self", o "autômato obediente e destrutivo", e aqui, entrando no campo ferencziano, pode estar apto a tornar-se um ser humano com a habilidade de tolerar as contradições e conter a ambiguidade emocional, tão necessária para a liberdade e a plena humanidade.

Como via de manifestação do ódio, como elemento libertador, um pesadelo trágico traduz a necessidade de vivenciar o assassinato simbólico: novamente surge a cena da invasão do quarto e, com um revólver, Ana atira matando seu próprio pai.

Por outro lado, a adolescente sofreu a privação de um tipo de cuidado materno - "escudo protetor" -, uma das funções apontadas por Freud em Mais além do princípio do prazer (1920/1993) e destacada por Winnicott como tão fundamental como o holding e o manejo.

Se no livro de Clement as mães das garotas da cidade mexicana de Guerreiro enfeiam suas filhas, pintam seus dentes com carvão, cavam buracos para escondê-las dos violentos narcotraficantes, a mãe de Ana abandonou-a ao seu violento pai.

Diante dessa situação, qual será o destino de Ana? Que liberdade tem ela para tomá-lo em suas mãos?

 

REFERÊNCIAS

Clement, J. (2015). Reze pelas mulheres roubadas. (L. V. de Castro, trad., 1ª ed.). Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Ferenczi, S. (2011). Confusão de língua entre os adultos e as crianças. A linguagem da ternura e da paixão. In Obras completas. Psicanálise iv. São Paulo: Martins Fontes (Trabalho original publicado em 1933 [1932]         [ Links ]).

Freud, S. (1993). Estudios sobre la histeria. In S. Freud. Obras completas. (J. L. Echeverry, trad., vol. 2). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1893-95).         [ Links ]

______. (1993). Más alla del principio del placer. In S. Freud. Obras completas. (J. L. Echeverry, trad., vol. 28, pp. 7-62). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

______. (1993). Esquema del psicoanalisis. In S. Freud. Obras completas. (J. L. Echeverry, trad., vol. 28). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1940[1938]         [ Links ]).

Shengold, L. (1978). Assault on a child's individuality: a kind of a soul murder. Psychoanalytic Quarterly, 47(3),419-424.         [ Links ]

______. (1979). Child abuse and deprivation: soul murder. J. Amer. Psychoanal. Ass., 27,533-59.         [ Links ]

Tesone, J. E. (2005). Incesto: o corpo roubado. Ide, 41,107-114.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ELIANA DA SILVEIRA CRUZ CALIGIURI
Rua Doutor Guilherme Bannitz, 90/34
04532-060 - São Paulo-SP
tel.: 11 3845-5205
elianacali@icloud.com

Recebido 06.06.2018
Aceito 29.06.2018

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