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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo July/Dec. 2018

 

CONTRAPONTO: FOTOGRAFIA E PSICANÁLISE

 

Francesca Woodman: figurações da angústia e o ponto ausente da perspectiva

 

Francesca Woodman: figurations of anguish and the missing point of perspective

 

 

Ricardo T. Trinca

Psicanalista. Membro filiado ao Instituto Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutor em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor apresenta algumas imagens produzidas pela fotógrafa norte-americana Francesca Woodman com o propósito de discutir até que ponto certas figurações ou representações revelam-se justamente naquilo que elas mesmas são impossibilitadas de mostrar. Por outro lado, as imagens são descritas como expressões de aspectos masoquistas e femininos da mente humana, bem como narrativas implícitas de desamparo, desastre e de desintegração; figurações de "morrimento". Por fim, pensa-se na estetização da angústia e em como ela apontaria para a dimensão do Real, inabarcável e irrepresentável.

Palavras-chave: Psicanálise. Francesca Woodman. Real. Fotografia. Desamparo.


SUMMARY

The author presents some images shot by the American photographer Francesca Woodman, willing to bring up for discussion how far certain images or representations stumble precisely upon what them themselves are incapable of showing. These images are described, on the other hand, as prints of masochist and feminine aspects in the human mind, as much as implicit narratives of helplessness, disaster and of disintegration; "dyingness" figures. Lastly, thinking of the anguish sterilization and how it would point to the dimension of the Real, unboardable and unrepresentable.

Keywords: Psychoanalysis. Francesca Woodman. Real. Photography. Abandonment.


 

 

Cenas vistas e ações inaparentes

À primeira vista não se sabe bem se são retratos pessoais de cenas íntimas, imagens fotográficas cuidadosamente elaboradas ou registros fotografados de performances, na forma de autorretratos. Essa diferenciação, no entanto, parece pouco importante. Isso porque o espectador fica inevitavelmente capturado por suas imagens e, do seu ponto de vista, podem significar simultaneamente ambas as coisas, além de suscitar dúvidas e incompreensão. Descreveremos neste trabalho algumas dessas imagens e procuraremos formular ideias psicanalíticas que poderão bordear ou mapear seus significados, mas com o intuito de manter um campo insaturado sobre elas. Sugiro que o leitor acompanhe tais imagens por meio de seus dispositivos eletrônicos (celular, tablet, computador etc.), fazendo uma pesquisa pessoal sobre cada imagem.

Assim, vejamos sem demora uma delas: nela há um corpo nu deitado sobre uma cama (fig. 1). Não se vê nem os pés, nem o rosto da modelo. Os seios também estão escondidos, ou melhor, cortados, postos para fora da fotografia preta e branca, na qual uma cama, com seu lençol também branco e levemente listrado, parece flutuar acima de uma base negra. Apenas uma presilha e algum outro objeto, também negro, são dispostos sobre ela - além desse corpo - em uma espécie de limpeza ou de vazio; pois se a fotografia, por um lado, possui alguns poucos elementos, por outro, aqueles usualmente procurados por nós, espectadores, estão ausentes, como o rosto da modelo ou algo que justificasse tal ação ser fotografada. Portanto inicialmente não encontramos o seu sentido.

Permanecemos envolvidos com essa imagem, enquanto investigamos intuitivamente o que ela comunica. Algo chama-nos imediatamente a atenção: se o erotismo é sugerido levemente presente, alguma coisa talvez antagônica também esteja ali em sua base (negra) e sustenta essa imagem. Aparecem contrastes entre o claro e o escuro e entre o erotismo e a sua ausência.

Observemos outra fotografia (fig. 2). Agora uma mulher está parada de pé. Ela está encostada em uma coluna, parte de uma parede que está descascada. Restos de pintura estão todos caídos pelo chão; caem também sobre uma cadeira escura que se encontra ao lado da modelo. O ambiente é sombrio. A fotografia preta e branca ressalta a sua saia branca, como se a vestimenta fosse mais importante do que a própria modelo. Podemos reparar que seus seios estão à mostra, mas são quase destituídos de interesse, indiferentes, como parte de uma mancha na parede, tom sobre tom. O rosto, por sua vez, está escondido; parece pouco importante, ou melhor, ensombrecido. Portanto não é a sua fisionomia ou sua expressão que nos revela algo. Talvez a sua ausência sim. Como um corpo que poderia ter sido, em algum momento, também reconhecido como sensual ou sexual, esses elementos estão na foto, mas simultaneamente ausentes dela. A parede descascada parece ser, assim, a parte central (figurada) da fotografia, com seus restos caídos pelo chão. A mulher que nela se encosta parece apenas uma parte desimportante dela. Muito embora essencial. Restos de tinta e um pedaço de madeira, talvez um rodapé, estão ao seu lado, como se fossem coisas irrelevantes, mas que parecem estar exatamente no lugar certo, dando equilíbrio e organização para a fotografia. Por outro lado são pedaços de coisas que antes deveriam ser algo. São realmente restos, mas não apenas restos de uma parede pintada ou de um rodapé, são resquícios de uma ação inaparente que os fez ficarem em pedaços - são vestígios de acontecimentos. Estaria o sexual também caído pelo chão, como os restos da pintura? Ou isso seria algo que poderia ser descrito como a força de um tempo corrosivo, de uma erosão destruidora ou de alguma outra ação inaparente que corrói as paredes, a madeira, o ambiente, a sexualidade e a modelo... e nosso olhar flutua sobre esses vestígios, sem apreender os acontecimentos. O olhar não se detém em nada. É tudo fluido e fugidio. O espectador novamente fica sobressaltado: para onde olhar? Nossos olhos perdidos fazem com que tenhamos que sair de uma espécie de instabilidade e tentar encontrar em algum lugar, ou melhor, em algum outro lugar o seu ponto de apoio, a sua compreensão. O olhar pede algum lugar de repouso, de firmeza, de consolidação, de segurança; principalmente de compreensão. Mas para onde olhar? Ou melhor: que teoria se precipitará em nossa mente? Quais teorias interpretarão o nosso olhar? Haverá um fato selecionado possível que organize e dê coerência para essa experiência?

 

Para além da biografia: a obra

Diante da instabilidade da incompreensão, nossa mente recupera algo da memória. Talvez isso nos afaste da paciência necessária para apreender algo que ainda (por alguma razão) não se mostrou ou que não pode se mostrar ou essa memória (sonho) traga elementos necessários para uma experiência mais ampla com essas imagens. Serão memórias daquilo que li sobre ela. Francesca Woodman (1958-1981) foi uma fotógrafa norte-americana (fig. 3). Sua obra consiste principalmente de autorretratos tirados incessante e incansavelmente até sua morte prematura, aos 22 anos, quando atira-se da janela do seu estúdio, cometendo suicídio. Outra boa parte de sua produção, que conta com aproximadamente 800 imagens - embora apenas cerca de 120 delas sejam conhecidas ou estejam disponíveis -, retrata também jovens mulheres, quase todas em preto e branco, por meio de imagens que as misturam ao ambiente. A sua potência criativa é algo que logo salta aos olhos, pois com objetos pouco significativos, ou talvez considerados desprezíveis, e por meio de ângulos pouco usuais, esses objetos, na composição da imagem, assinalam preciosas questões sobre morte, fragmentação e beleza.

Suas imagens escondem cenas, deixando-nos apenas com uma parcela daquilo que parece ter de fato ocorrido. Elas aludem a situações não registradas. Não é possível saber se elas escondem ao mostrar. Nelas, ficamos com a impressão de que os objetos ou partes dos corpos se misturam com os lugares, com as cores e as suas formas e se destituem dos seus significados usuais, tornando-se parte dos outros. Um lençol, por exemplo, torna-se o sinal da aparição de um espectro fantasmagórico, que encobre - mas também revela - o caráter apagado da modelo que, assim, tem apenas os pés visíveis, entre árvores inóspitas, frias e fantasmagóricas (fig. 4). Esse caráter apagado realmente se assemelha com a ação de uma borracha, que apagou deliberadamente parte da fotografia: a parte da figuração da modelo. Parece, assim, um anti-selfie. E, desse modo, um objeto perde seu aspecto prioritário ou seu sentido habitual. Não sabemos nessa imagem se o fantasmagórico revela-se no lençol, nas árvores, no estranho da imagem branca ou em algum outro elemento ausente.

Nessas fotografias, que recolho aleatoriamente, entre as centenas que estão disponíveis na internet, parece haver uma enorme ambiguidade. Como pode algo belo resguardar um clima tão desastroso ou, ainda, tão funesto e com ares tão destrutivos e sombrios? Que espécie de beleza é essa que se nutre de uma verdadeira aliança com o sombrio? Essa pergunta, a pergunta do observador, poderia ser aquilo que nos deixa ao mesmo tempo comovidos, interessados e tristes. Elas se aparentam com autorretratos nos quais a morte seria anunciada numa espécie de jogo de contraste com a leveza e a beleza da modelo retratada; no caso, a própria fotógrafa, que foi modelo de si mesma e da figuração de algo que fica em vias de um apagamento ou de uma fragmentação; de algo, diríamos, mortífero. A sua morte figura inicialmente como o ponto fugidio das próprias fotografias: por possuírem significados tão pouco apreensíveis, a sua morte conduz o nosso olhar para essa perspectiva, a partir da qual as fotografias parecem fazer não apenas sentido, mas terem organização. Embora isso seja uma saturação de sentido, ela revela aquilo que não estava nítido nas fotos. Seu suicídio, nesse sentido, passaria a fazer parte de sua obra fotográfica. Com essa lembrança, preenchemos o ponto ausente de nossa perspectiva, por meio da compreensão da destrutividade e de sua morte, como um horizonte narrativo que parece tornar as fotografias replenas de sentido.

Mas, se as fotografias apontam para a morte, seria para sua morte biográfica que elas apontam? A obra, ao que tudo indica, vai além das notícias de uma única vida. São registros ou representações da própria angústia, que, como tal, atravessa uma vida particular e se estende para além dela.

 

O masoquismo é feminino?

Quando lemos a "Conferência XXXIII", de Freud (1933/2006), ficamos com a impressão de que ele formula uma espécie de síntese pessoal sobre o tema da sexualidade feminina, assunto que se mantém complexo e intrigante. Em seu início, Freud fala de sua dificuldade interna de estabelecer aquilo que seria permitido dizer a respeito desse assunto, aquilo que a sexualidade feminina teria de estrutural, além dos aspectos culturais que podem interferir na sua compreensão. A questão do feminino e sua relação com o masoquismo já haviam sido discutidos anteriormente por Freud (1925/2006, 1924/2006 e 1931/2006), mas na "Conferência XXXIII" há uma tentativa de estabelecer um panorama mais amplo sobre a sexualidade feminina com a compreensão do masoquismo como um aspecto da pulsão de morte, e em como a supressão da agressividade poderia favorecer tendências masoquistas presentes no aparelho psíquico.

Em seu artigo anterior, "O problema econômico do masoquismo" (1924/2006), Freud procurou demonstrar que a volta do sadismo contra a própria pessoa acontece regularmente na repressão das pulsões. E esse seria um aspecto produzido pela cultura, portanto relacionado mais às mulheres do que aos homens. A porção refreada surgiria no ego como uma intensificação de um masoquismo já estruturalmente existente. Essa porção seria acolhida pelo superego, elevando o sadismo deste para com o ego. O sadismo do superego e o masoquismo do ego estariam associados, complementando-se.

Em 1933, Freud novamente diria que o masoquismo seria um modo de ligar eroticamente tendências destrutivas voltadas para o interior do psiquismo, de modo que aquilo que seria naturalmente silencioso, não representável, poderia ser ligado eroticamente e, desse modo, tornar-se-ia passível de ser representado e dominado psiquicamente. E isso parece ser a própria fonte a partir da qual Francesca Woodman pôde se nutrir para criar suas imagens. Essa possibilidade de ligar tendências destrutivas, fazendo delas arte, parece ser a transformação do masoquismo primário em uma forma de processo secundário, ou de elaboração.

 

Desamparo, desastre e desintegração: figurações do "morrimento"

Um corpo feminino está caído no chão (fig. 5). Um belo tapete forra o corpo estendido, e seu rosto é novamente irreconhecível, como em outras imagens. Podemos observar apenas parte de seu vestido e um braço que se estende do lado esquerdo da fotografia até o centro, tornando-se realmente o ponto central de nosso olhar. Um braço. Sobre ele observamos uma serpente negra, que atravessa sua pele aparentemente macia, suave e pueril. É a fotografia da simulação de uma jovem morta. Morta pela presença de uma serpente negra. Como espectadores, sabemos que a modelo não está morta e que não foi essa serpente que a matou. Por que, então, a imagem é tão impactante? Uma possibilidade é de que ela revele algo transitório, efêmero, de uma experiência com a qual podemos nos demorar apenas um breve instante: há algo que se passou, mas não sem antes tentar ser congelado. Somos convencidos de que essa representação revela ou apresenta algo real: uma morte que não ocorreu, mas ainda assim estava por lá, em algum lugar.

Em outra fotografia (fig. 6), também preta e branca, ficamos absortos com o fato de a fragmentação ter se figurado tão belamente, com um corpo de pé e novamente encostado em uma parede, mas com pedaços rasgados de um papel de parede encobrindo-lhe parcialmente, de modo que o próprio corpo pareça estar rasgado. E esse corpo rasgado é visto apenas parcialmente. E, talvez simbolicamente, apenas a barriga, o umbigo da modelo, seu braço esquerdo e os pés são claramente visíveis. O restante do corpo está escondido ou se encontra atrás do papel de parede - ou está misturado com as cores do fundo. O corpo erótico é quase desfeito, recortado em fragmentos, dilacerado ou fundido com algo que está envolvendo esse mesmo corpo: um fundo de uma sala no qual sentimos principalmente o clima de ausência, de pobreza ou de ruína. Aspectos - sem dúvida - expressivos de alguma catástrofe ou, quiçá, do anúncio de uma tensão entre a vida (que ainda se conserva) e a morte. A beleza aparece aqui como resultado inexorável dessa tensão das forças de morte que dilaceram o corpo erótico sobrevivente.

É conhecida a assertiva freudiana de que não há uma representação psíquica inconsciente da morte, pelo fato de não serem possíveis representações negativas. Freud (1915/2006) afirma isso dizendo que não haveria uma representação direta da morte, pois não existe uma experiência ou memória acerca dela. Em Francesca Woodman, percebemos que, mesmo ao retratar a morte, representamos, na verdade, a angústia. Mas quais são as "faces" da angústia que podemos apreender nessas imagens? Essa pergunta (que mais vale como questão do que como produtora de uma boa paramnésia) levanta uma pluralidade de formulações, e o leitor deste artigo possivelmente poderá formular suas próprias respostas, mas gostaríamos de destacar os aspectos da desintegração, do desastre e do desamparo como registros da pulsão de morte em sua passagem pelo psiquismo.

Em seu trabalho, Francesca Woodman retrata as faces da angústia, como representações pictóricas daquilo que, para a mente humana, é da ordem do impossível: a representação psíquica da morte. Contudo, se a morte não é possível como representação, o que as fotografias de Francesca nos revelam? Desvelam que a angústia, como uma apropriação da pulsão de morte pelo psiquismo, faz nos sentirmos como um ser-para-a-morte, um ser "morrendo", em "morrimento". Trata-se da apreensão psíquica de uma experiência emocional associada ao desamparo e à desgraça, mas é um gerúndio, um movimento, uma circunstância, uma experiência viva. Significa um assinalamento daquilo que está nas bordas de um território possível, porém em face de outro território estrangeiro ou impossível de ser apreendido pelo psiquismo. Suas imagens assinalam os estados emocionais dos quais naturalmente nos evadimos ou nos defendemos, por conta de uma ideia culturalmente aceita, a de que dessa desgraça, dessa desintegração ou desamparo, oriunda da ação da pulsão de morte, nada poderia surgir de riqueza ou de acréscimo para a mente humana.

A beleza e a força desse trabalho de Francesca, no entanto, vem justamente disto: da possibilidade de associar a pulsão de morte com o erotismo, sem que o masoquismo ou o sadismo sejam suas únicas e possíveis saídas. Com essa afirmação, não deixamos de observar, entretanto, que suas fotografias estejam repletas de figurações dessa natureza masoquista, de modo bastante contundente e expressivo (fig. 7).

Observemos outra imagem. Em um ambiente rústico, empoeirado, empobrecido, talvez sem elementos vivos, uma maravilhosa luz entra por duas janelas, iluminando uma sala abandonada e dois lençóis brancos, alvos, que são transformados - ao lado da modelo que pula - em duas asas de anjo, ou em uma aparição celestial (fig. 8). Uma mulher se assemelha a um anjo, ou melhor, parte de um ser alado; ela salta com os braços levantados para o céu e novamente seu rosto não é identificado. As cortinas ou dois panos brancos são parte de suas asas, emanações de algo etéreo. Há uma enorme leveza no retrato, mas o clima da fotografia também é pesado, vazio, e podemos apreender algo da ordem de um desinvestimento, revelando um lugar empoeirado e escuro. Não seria essa luminosidade, além de um contraste com o escuro, advinda das sombras? Não sabemos bem se os panos são partes de um braço ou se o braço é parte da luz que entra de algum lugar desconhecido, como dois olhos brilhantes que olham, iluminados, uma casa escura e sombria e, assim, um ser alado renasce. Seriam esses olhos os olhos sonhados do espectador ausente, que foi imaginado e que - nesse momento - podem realmente olhar e sonhar a cena fotografada? Mas, como performance inaparente, seria uma narrativa implícita, uma ação invisível, o que a artista sugere existir? Parece, assim, que há uma presença resguardada de mistério. E nessa escassez de elementos resta esse mistério que provoca a nossa generosidade simbólica, essa atividade de criar sentidos em que experimentamos uma carência de significados. E, paradoxalmente, podemos dizer que aí se encontra grande parte do valor dessas imagens: serem suficientemente insaturadas para que nosso olhar participe de sua realização, fazendo delas arte.

 

4 O centro fugidio da catacrese

As figurações descritas e apresentadas neste trabalho relacionam-se com o tema da representação. Figurar ou representar significa reapresentar impressões e experiências perdidas. Mas, nesse contexto, pensamos que a representação pode manter um aspecto importante, que é a impossibilidade de apresentar o seu verdadeiro núcleo, a sua verdadeira impressão, que é o representado. Nesse sentido, a re-apresentação careceria de centralidade, ela teria um centro vazio, a sua referência última, que continuaria ausente.

Miller (1955), ao analisar o poema de Wallace Stevens "A primitive like an orbe",1 descreve que o poeta, diante da impossibilidade de figurar aquilo que pretendia falar, cria vários tipos de imagens que vão se combinando entre si com uma profusão e diversidade arrebatadoras, na tentativa de aproximar o leitor da experiência a partir da qual o poema se originou, mesmo sabendo que não será bem-sucedido. Esse ato - de bordear a experiência com inúmeras figurações possíveis, mas todas elas representações sabidamente insuficientes - é chamado pelo autor de uma catacrese.2 Stevens, nesse belo poema, parece demonstrar que as palavras (ou imagens) podem ser enganosas e nos iludir em relação a sua capacidade de representar uma experiência (no caso com o Sol). O poema tenta figurar termos para nos aproximar daquilo que não tem possibilidade de nomeação, ou seja, da própria experiência emocional, da realização, quando se mantém aberta ou não saturada; ou melhor, como uma realização com qualidade de ser uma pré-concepção. Trata-se de uma qualidade inefável, jamais apreensível em sua totalidade e, destarte, inominável.

As imagens de Francesca Woodman parecem assinalar essa mesma questão; pois nessa enorme produção de imagens disponíveis podemos sentir a presença desse ponto ausente, que pode ser compreendido como um algo a mais que não cessa de não ser pensado e se mantém como o horizonte impossível de toda representação, ou o Real (Trinca, 2016). Se a angústia é o afeto da questão trazida pela artista, o Real é o seu núcleo não representável.

 

Um pouco mais, para além

No trabalho fotográfico disponível de Francesca Woodman, podemos dizer que há uma estetização da angústia, na qual o silêncio da pulsão de morte se fez estética, como uma peculiar beleza.

Essa estetização tem a finalidade de torná-la apreensível para o psiquismo como representação e ser também fonte de prazer e indagação para o observador. A angústia, como um elemento afetivo impreciso e indeterminável, aponta para a morte sem, no entanto, apreendê-la. Trata-se de um elemento insaturado que põe o pensar em constante atividade. As figurações possíveis a partir dele são apenas modos imprecisos de criar bordeamentos de um centro inapreensível, formas de arborizações diante de um ser-para-a-morte. Essas imagens parecem assim abrir esse caminho, associando intuitivamente a graça com a desgraça, o fragmentado com o reorganizado e o vivo com aspectos do mortífero da mente humana.

As imagens de Francesca Woodman mostram que o aspecto primordial em uma representação não seria o que ela iluminaria, mas justamente aquilo para o qual ela aponta e que está impossibilitada de revelar. Como na cena final de Morte em Veneza de Thomas Mann, transposta para o cinema por Luchino Visconti, na qual Gustav, antes de morrer, contempla Tadzio, o rapaz por quem se apaixonara, no mar, apontando para o pôr do sol. Ao apontar para o acaso, Tadzio revela que o lugar da beleza não estava ainda nele, mas além, na forma de um apontamento, num lugar inapreensível, Real. A beleza que Francesca Woodman nos oferece parece ser da forma esse apontamento.

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (2006). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 19). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925).         [ Links ]

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Miller, J. H. (1995). A ética da leitura. Ensaios 1979-1989. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Tellgren, A. (2016). Francesca Woodman: on being an angel. Nova York: Moderna Museet.         [ Links ]

Townsend, C. (2006). Francesca Woodman. Nova York: Phaidon Press.         [ Links ]

Trinca, R. T. (2016). A visitação do real nos fatos clínicos psicanalíticos. São Paulo: Edusp.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
RICARDO TRAPÉ TRINCA
Rua João Moura, 627/61
05412-001 – São Paulo-SP
tel.: 11 3085-9176
ricardotrinca@hotmail.com

Recebido 02.08.2018
Aceito 05.10.2018

 

 

Fig. 1 - Untitled, New York, 1979-80. https://ocula.com/art-galleries/victoria-miro-gallery/artworks/francesca-woodman/untitled-new-york-(4)/
Fig. 2 - Untitled, New York, 1979. https://brooklynrail-web.imgix.net/article_image/image/14894/Christoph-web3.jpg?w=440&q=80&fit=max
Fig. 3 - Untitled, 1977. https://pt.wikipedia.org/wiki/Francesca_Woodman#/media/File:FrancescaWoodmanRetrato.jpg
Fig. 4 - Untitled, Italy, 1977-1978.http://www.artnet.com/artists/francesca-woodman/untitled-italy-a-Kx2m29tiZLviCC2FOKK0xA2
Fig. 5 - Untitled, Rhode Island, 1975-78. https://artpil.com/news/francesca-woodman-italian-works/
Fig. 6 - Space2, Providence, Rhode Is land 1976. https://www.phillips.com/detail/FRANCESCA-WOODMAN/UK040218/99
Fig. 7 - Early, 1972-1975. https://www.huma3-archive.com/repository/reviews/FW369_2011.jpg
Fig. 8 - Untitled (from Angel Series, Rome), 1977-1978. https://www.theparisreview.org/blog/wp-content/uploads/2012/05/Untitled_From-Angels-Series.jpg
1 Primitivo como um orbe. Presente no livro The auroras of autumn (1950).
2 A catacrese é comumente descrita como uma metáfora que serve para suprimir a falta de uma palavra específica para designar determinada coisa.

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