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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dic. 2018

 

LITERÁRIAS

 

Aurora

 

 

Clarice Niskier

Atriz, dramaturga e diretora de teatro

Endereço para correspondência

 

 

Amar a si, amar assim mesmo. Amar o outro que você se torna ao envelhecer. Amar o que entorna. Amar o entorno que ignora você. Amar é o quê? Alvorecer, outono, outrora. Perder o que vai lá fora. Se o sol vai nascer, manhã, melhora, melhor esquecer. Se o novo implora, é mesmo por quê? A natureza não chega a ser morta, as frutas suplicam prazer, mordida, memória. Chega você, me olha, me molha, um deus a me proteger. Carambola, amar a essa altura da vida? Se você se tornar meu rei, fará o meu sangue correr. Melhor cair fora, me espera a degola, meu medo te amola, fazer o quê? Sou quantos anos mais velha, uns dez, uns vinte, uns cem? As amigas na cola. Querem saber, rola ou não rola? Virou carola? Isola. Então, não pira, piora, se não dá pé, vai de trem. A vida é uma ordem, gozar um dever. Se todo mundo te quer, como não te querer? Serei sua senhora, Aurora, prazer. Os nervos de aço viram palhaços, palha, palhoça. O fogo se espalha. A teia incendeia. Vomito, grito, a juventude já era, me enterra, admito: está sendo lindo te conhecer. Livrar-me das penas, das ancas, rir das pelancas, das rugas, das zangas, da bunda caída, das falsas saídas, das pernas bambas; ver Bambi no dvd. Sair dos bueiros, cueiros, recreios, brincar sem receios, vencer sem rodeios, com as plumas no meio dos seios, a guerra de travesseiros - viu no espelho como fiquei bonita de estola e argola? Adormecida, adormecer. E vingada, abatida, babaca, babada, fudida, encalhada, abandono você. O sexo é complexo. Remei sem coleira. Mijei na soleira. Aos vinte sabia, atraía, agora, o que fez você me escolher? Emburrado, ferrado, encolhido, travado, tramado, traído, cê berra o veredicto. Mulheres, vidão, carrão, não importa se moro com a mãe ou não, contanto que eu tenha dinheiro no bolso e lounge exclusivo no aeroporto de Tóquio, Japão. Os aplicativos, cardápio. Um ou outro larápio encontra o sabor preferido, o mundo é ridículo, estou exaurido. Vi o cupido caído junto comigo no solo sofrido da minha geração. Escuta, querido, desculpa te interromper, sai do meu colo. Preciso seguir minha vida. A solidão, a minha, a sua, coisa antiga, não há solução. Há de existir uma garota que queira crescer, puro ardor, sem pudor. Quem não gosta de um petisco, de um risco, um furor? Preciso envelhecer. Isso não é um castigo. Nem sei o que digo. Preciso completar o que comecei a fazer, plena do que entendo, entendi, meu intento é entregar-te a ti. Chega uma hora em que o gozo é ser cabra, cabrita, bode, só quem pode comigo sou eu mais ninguém. Topo ser a vertigem. A virgem do meu horóscopo. Ser o abismo sem ego pernóstico; sem idealismo. Deus é agnóstico, portanto, se quiser vir comigo, faz muito bem, mas sem pieguismo, sem nhém nhém nhém. Sou gasta, gaga, difusa, confusa, nem grata nem gata, sem essa de musa, entre as minhas pernas também há cinismo e dívidas de amor e cartão. Venha de olhos abertos, pau, pedra, poesia, as águas de março fechando o verão. A estrada é comprida, desconhecida, há musgo, lodo, limo, labuta. Haja luta, haja culhão. Deprimir não tem nada a ver com as trepadas geniais que você pode dar sobre o colchão ou não. Tem a ver com a pressão que o seu corpo suporta, com a pressão que o seu corpo comporta, com a pressão que entorta ao ver claramente como um vidente que o sentido é ambíguo, oculto, duplo, sacana, a promessa termina na esquina, na curva, sem rima, a cama extermina, a verdade se arrasta, a vontade por si só não basta, cê pasta, o que tanto te ama se afasta, há contraste, desastre, fim. Não devia ter terminado contigo, a paixão é tudo de bom, te espero no abrigo, suporto o perigo, em desacordo comigo, coração na mão.

 

 

Endereço para correspondência:
CLARICE NISKIER
Rua Viúva Lacerda, 249, bloco 03/603
22261-050 – Rio de Janeiro-RJ
tel.: 21 99594.1912
clariceniskier@gmail.com.br

Recebido 21.05.2018
Aceito 06.06.2018

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