SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número66Freud, um liberal à moda antiga. Um ser humano demasiadamente humanoPontes, arte-vida: poemas de Lucila de Jesus índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dic. 2018

 

RESENHAS

 

Sobre fantasmas e assombrações

 

 

Belinda Mandelbaum

Psicanalista e professora associada no Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Endereço para correspondência

 

 

Frosh, Stephen. Assombrações: psicanálise e transmissões fantasmagóricas (C. I. Nakagawa, trad.). São Paulo: Benjamin Editorial, 2018. 208 páginas

Stephen Frosh traz com esse livro uma contribuição singular para os estudos psicanalíticos e para a psicologia social, que se irradia também com interesse para o campo das ciências humanas. Ele joga luz sobre as assombrações ou fantasmas que nos assediam pessoal e coletivamente - essas entidades psíquicas que carregam e presentificam reminiscências mais ou menos brutas, mais ou menos elaboradas, inteiras ou em pedaços, de nossas histórias pessoais, familiares e grupais. E, da forma como trabalha com esses fenômenos, o autor permite que transitemos entre a compreensão de experiências individuais e coletivas, ou seja, as mesmas dinâmicas e enigmas que permitem entrar em contato e pensar sobre nossos fantasmas pessoais, auxiliam-nos a compreender também o destino de memórias coletivas. Por isso essa é uma obra de interesse para a psicanálise, os estudos psicossociais, a história e os estudos culturais. Sua publicação em português pela Benjamin Editorial também é mais do que oportuna neste momento da história brasileira, em que somos assombrados por fantasmas que novamente nos ameaçam com o retorno de um governo ditatorial e os horrores da tortura e da morte.

Com Freud aprendemos que tudo o que se vive, individual ou coletivamente, deixa traços na memória - bem-aventurados ou traumáticos - que em momentos apropriados vêm à luz, impondo-nos o contato com eles. Podem ser como as madeleines proustianas, trazidas à lembrança inesperadamente, desde a infância do autor, muitos anos depois, ao degustar certa tarde uma madeleine com chá. Mas Stephen Frosh está interessado em se debruçar sobre aqueles traços de memória que foram inscritos pelos eventos traumáticos - acontecimentos que, dada a sua intensidade e violência, excedem nossa capacidade psíquica de contê-los num registro simbólico, seja como lembrança, narrativa pessoal ou evocação. Tais eventos se inscrevem na forma do registro bruto da história e da memória, obrigando-nos ao convívio íntimo com a estranheza e o incômodo, como presenças cuja concretude nos atordoa. Diferentes das evocações e lembranças, esses registros têm uma qualidade peculiar, material, que se manifesta em formas que hibridizam o psíquico e o não psíquico, tais como somatizações, conversões, alucinações e projeções, parecendo extrapolar o que circunscreveríamos como o campo do propriamente mental. As assombrações e fantasmas, dada essa bizarra materialidade, questionam os limites do psiquismo, sem nunca deixarem de ser fenômenos psicológicos, ainda que compostos, como toda psicologia, de elementos da história e da cultura.

Na origem das assombrações e fantasmas estão memórias opacas, resistentes à decifração. Essas memórias fazem parte do que não queremos ou não toleramos lembrar, apresentando-se por isso criptografadas, isto é, numa linguagem não apenas não compartilhada com os outros, mas de difícil compartilhamento com nós mesmos. De formas enigmáticas, no entanto, essas memórias forçam sua presença à nossa consciência, repetindo-se infinitamente e exigindo, assim, seu reconhecimento e elaboração. Elas irrompem à revelia, demandam atenção e produzem sofrimento. Porque o que irrompe é da ordem da estranheza, do inquietante, do não compartilhável, deixando-nos sós com nossa dor psíquica, sem compreender. Ao mesmo tempo, como significantes enigmáticos, convocam-nos ao trabalho psíquico e nos abrem forçosamente o caminho a um conhecimento mais amplo, ainda que sempre em vislumbres parciais, de nós mesmos e de nossa história.

Sua compreensão é difícil por diversos motivos. Um deles é a forma como se apresentam, resistentes à elucidação. Mas também porque falam de uma história pessoal, familiar e coletiva que conhecemos sempre em fragmentos. Não é apenas da nossa história individual, do tempo das nossas vidas que se trata. Os fantasmas carregam também sofrimentos de outros, de gerações anteriores, de outro tempo do grupo social, que herdamos e carregamos muitas vezes como um peso maior do que podem aguentar nossos frágeis corpos e mentes, mas com o qual convivemos em profunda intimidade - talvez no mais íntimo de nós -, sem no entanto saber ao certo do que se trata, tendo poucas e vagas informações. São como pacotes fechados que recebemos sem pedir e dos quais nos tornamos responsáveis por seu cuidado e transmissão. Temos pouca ou nenhuma informação do que vem no embrulho que, no caso das transmissões fantasmagóricas, nos forçam a transportar, como elos numa cadeia geracional. Pesam o silêncio, o vazio, os traços e o pacote embrulhado. E os lutos que não podem ser elaborados, porque nem há, como Freud sugere em Luto e melancolia, aquelas lembranças das quais vamos nos separando uma a uma ao recordá-las, para no fim deixar o objeto partir e podermos voltar ao mundo. Mas ainda que esses traços de memória se apresentem embrulhados, na forma do inquietante e do criptografado, aprendemos, ao acompanhar Stephen Frosh pelas páginas desse livro, que eles são linguagem, pedindo esperançosamente a sua decifração. Ao reconhecer esses elementos bizarros no campo da linguagem, nós os humanizamos. Sua decifração, se são marcas do passado no presente, demanda o conhecimento da história, que sempre entrelaça o pessoal, o familiar e o coletivo. O autor humaniza os fantasmas ao sugerir que eles não apenas incomodam. Eles também solicitam que não esqueçamos de sua história e que, ao conhecê-la, possamos realizar os lutos devidos, os lutos que nunca puderam ser realizados, porque seu próprio acontecimento foi negado. Ou seja, ao conviver com pedaços brutos e inquietantes de nosso passado, que é a forma como o desconhecido se faz conhecer, nós também o mantemos vivo no presente, ainda que em sua condição inquietante e incômoda. É necessário olhar para os fantasmas do passado e enxergá-los em sua monstruosidade, em sua bizarrice, para nos humanizar, questionar a nossa onipotência, lembrar-nos de que somos feitos também de monstruosidades e que estamos presos à nossa história e temos deveres com ela. Os fantasmas teimam em não apagar a história. Se somos dotados de uma singularidade, esta advém da convivência com os restos de nossa história pessoal, familiar e coletiva.

O autor parte da consideração da própria psicanálise como um sistema fantasmagórico, assombrado pelos determinantes de seu contexto de origem - entre eles, as noções de civilização e primitivismo próprias do fim do século XIX e início do século XX; as relações ambivalentes e atormentadas de Freud com seu judaísmo; a moral sexual de sua época; e as duas grandes guerras que assolaram de forma catastrófica a Europa no período em que Freud e a primeira geração de psicanalistas compunham as suas obras. Todas essas marcas de origem assombram a psicanálise até os nossos dias, constituindo a própria matéria que as sucessivas gerações de psicanalistas elaboram sem cessar. E é a própria psicanálise que, a partir de seus fantasmas, pode oferecer instrumentos para que possamos reconhecer, nas palavras do autor, que "cada um de nós é habitado pelo espectro da alteridade - por um conjunto de 'mensagens' que vêm de fora de nós e que são objeto de um esforço de decifração ao longo da vida... Outros nos ocupam" (p. 22).

O que se realiza em cada um como sujeito individual, Stephen Frosh mostra que também é verdade para os grupos sociais. Nesses casos, o fantasma "é uma figura social que, se seguirmos seu rastro, irá nos conduzir a 'um denso local' da vida social", lá onde "uma violência social reprimida pode se fazer conhecida, às vezes de forma direta, às vezes oblíqua" (p. 57). Os fantasmas podem ter sofrido injustiças e exigem do grupo reparação. Se não são reconhecidos, manifestam-se nas formas da repetição em ato, portando toda a sua violência. Ou como a "poeira da opressão histórica; a fumaça e os vapores da destruição do passado [que] se espalham pelo tempo e são inalados por toda geração" (p. 79).

O autor se debruça sobre dois acontecimentos da história judaica - um no campo religioso, o sacrifício de Isaac, outro cultural, a peça The Dybbuk, de S. Ansky (1920). Isaac fica cego depois do sacrifício.

Quando ele está lá deitado, preso ao altar de madeira, olhando para cima enquanto seu pai ergue sua mão e a faca reluz no sol, prestes a cair, a lenda é que "naquele exato momento os céus se abriram, os anjos ministradores viram a cena e choraram, e suas lágrimas correram e caíram sobre os olhos de Isaac que, portanto, tornaram-se embaçados". (Gênesis 27, 1)

A cegueira é efeito tanto da dor da violência traumática como da compaixão dos anjos. Na peça de An-sky, o fantasma do antigo amado que acossa a noiva é expressão a um só tempo da dor de sua perda e da manutenção de sua presença. E para além da preservação do par amoroso, o fantasma, "ocupando o corpo da garota, promove unificação, perdão e resolução da clivagem no social que causou tanto sofrimento" (p. 177). Pois a história de amor é também a narrativa de uma cultura, a do judaísmo dos pequenos povoados do Leste Europeu, ameaçada de extinção nas primeiras décadas do século XX.

"Pode um fantasma curar-se?" (p. 177). Stephen Frosh traz esperanças, desde que possamos lembrar e reparar, isto é, trabalhar no sentido do conhecimento e reconhecimento da história, em nível pessoal, familiar e coletivo, ainda que sempre de modo fragmentário, feito por vislumbres fugidios e expostos a se perder. E perdoar, reconhecendo os danos causados aos outros e a nós mesmos. No Brasil, após as duas décadas da ditadura civil-militar, dos destroços que produziram em mortes, famílias traumatizadas e uma sociedade inteira vivendo sob terror, em 1979 o governo militar decretou a Lei da Anistia, que extinguiu as consequências dos fatos puníveis e quaisquer processos sobre estes, fossem quais fossem suas origens no contexto da luta contra o regime vigente. A volta da democracia foi feita sobre esse chão de ruínas, que deveriam ser apagadas da história. Nunca foram. Os modos de opressão do regime ditatorial, as torturas e assassinatos se espalharam pelas periferias das cidades brasileiras, pelo sertão indígena, pelas lutas por terra, de forma absolutamente concreta, continuando a produzir ruínas sobre ruínas, nunca de fato julgadas ou tendo seus responsáveis assumido as consequências de seus atos. O atlas da violência no Brasil aponta o número de 62.517 mortes violentas no país em 2016 - sete por hora. Tivemos um perdão amplo, geral e irrestrito feito por decreto, que solicitava o desconhecimento da história. Era para virar a página. Só esqueceram de avisar os fantasmas, que agora mais do que nunca, de forma grotesca, horrenda, fortalecidos, estão de volta. Ou melhor, como Stephen Frosh nos ajuda a ver, nunca foram embora.

 

 

Endereço para correspondência:
BELINDA MANDELBAUM
Avenida Professor Mello Moraes, 1721
05508-030 – São Paulo-SP
tel.: 11 3091-4184
belmande@usp.br

Recebido 29.09.2018
Aceito 27.10.2018

Creative Commons License