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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dic. 2018

 

RESENHAS

 

Pontes, arte-vida: poemas de Lucila de Jesus

 

 

Fernanda Sofio

Psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Endereço para correspondência

 

 

De Jesus, Lucila. Ponte. São Paulo: Patuá, 2018. 87 páginas.

Reunidos no livro Ponte, os poemas de Lucila de Jesus apresentam "pontes" de sua vida: o convívio com os índios, o percurso psicanalítico pessoal e com pacientes, os amores, ser mãe e ser mulher. Espécie de teia de representações em histórias, a conduzir seu pensamento ou, como disse Shakespeare (1623/ 1998), "such stuff as dreams are made of": a matéria de que são feitos os sonhos, aquela que nos torna humanos e com a qual alguns produzem poesia. As pontes nesse livro são inúmeras; têm vida fora dele e nele se recriam, sempre em um movimento. São pontes da autora, de suas vozes literárias e também do leitor.

Não por acaso, a imagem da capa - uma ponte que ao mesmo tempo não pode ser - é como que uma condensação ou metáfora plástica, unificadora do todo. Imagem visual e signo - uma ponte rabiscada -, o desenho assinado por Macê Vilela substitui a ideia de continuidade. Ela é possível num desenho, assim como seria num sonho, numa música, numa estória, num poema... Ei-la:

 

 

A ponte do desenho não está definitivamente interrompida. Restam frágeis fios conectores. E, assim, a pergunta se impõe: poderá ela ainda levar de um lugar a outro qualquer? O que acontece quando o rabisco é atravessado? Minha primeira ideia preliminar é dizer que, tal como a ponte rabiscada, eis a força da ficção: cada leitor dirá no que implica para si essa passagem (ou sua impossibilidade). Nem o ponto de partida, nem o de chegada são fixos. Muito menos o caminho.

Também podemos pensar que o livro de Lucila é autobiográfico; mas a biografia de quem escreve, do narrador e das personagens confunde-se com a de quem lê. Autor de ficção - ou de poesia - é quem universaliza uma história particular. Não porque produz uma mesma narrativa, igual para todos, ao contrário: porque, sendo única, sua criação torna-se plural.

Os poemas de Lucila funcionam como sonhos compartilhados, disparadores do pensamento interpretativo. Se conhecemos a autora, como é o meu caso, podemos vê-la e nos vermos nos seus poemas. Mas esta já é nossa ficção, nascida em alguma medida do encontro com a dela.

Para "compartilhar do sonho", pensemos juntos. Poetemos com Lucila. Eis cinco pontes-poemas escolhidas para tanto. Todas estão na primeira parte do livro, intitulada "Para atravessar", nome quase idêntico àquele do primeiro poema da obra, aqui reproduzido. Só muda a letra minúscula:

Para atravessar
Poesia
o meio de transporte mais seguro do mundo.
(p. 9)

Palavras cheias de ironia. Só assim consigo ler. Ora, se há pouco comparei poema e sonho, poema e "ponte rabiscada" - que não se pode achar entre as coisas do mundo -, é claro que poesia não é um meio de transporte seguro. E afinal transporta o quê? Quem de nós? A poesia aparenta, isto sim, ser uma trilha incerta, um percurso possível para a mente inquieta, que é trilhado sem que se saiba onde vai dar. Em suma, apesar das primeiras palavras do livro, depreendemos dos poemas de Lucila - principalmente na primeira parte - que escrever, poetar, é arriscar-se.

A forma das linhas de "Para atravessar" reflete sua ideia: é como um pedaço de pensamento inacabado, inexplicado, esse o nosso primeiro contato enquanto leitores com o mundo dessa narrativa. Cria-se um entre, estabelecido pela relação do leitor com a poesia de Lucila; uma espécie de mundo outro, que brota do que ela produziu a partir da nossa leitura.

sobrecarga
dia e noite
dor no lombo
formiga na trilha
(p. 14)

A formiga se movimenta devagar e sempre, previsível. Como se fora uma antítese do primeiro poema citado, no sentido de não falar, de ter um meio de transporte terreno. E é seu complemento, no sentido da segurança, da previsibilidade da rotina da formiga. Formiga não produz versos, apenas trabalha sem descanso, cumprindo seu dever. Nesse sentido, estamos diante de um poema sobre a rotina de quem faz muito e não se queixa. Seria a primeira formiga a fazê-lo.

Porém essa formiga está sobrecarregada. Personificada, portanto. Até onde sei, sobrecarga de formiga é projeção humana, de quem descreve a cena, que não se queixa porque não quer, ou porque não pode. Novamente a ironia, e o poema não apresenta apenas o que se supõe de início. Não apenas a rotina da formiga está sendo tematizada - afinal, a maioria de nós nem a vê -, mas também é veiculada esta ideia de uma identificação com o lugar da formiga.

Tal como o recebo, esse poema trata da força e de certa dor gratificante de ser membro de um grupo não ouvido: uma formiga, uma mulher, um índio. Um poema verde e feminista, eu diria. Veremos a seguir que feminismo é este: um estar no mundo. A narradora-formiga se mistura com a psicóloga mãe, que cuida e que também põe comida na mesa, como fazem tantas mães não ouvidas no nosso querido Brasil.

Do feminino
O lixeiro é um negro forte e sorridente e com linda
voz me diz bom dia.
Nos saudamos na cansada e esperançosa manhã.
O sol pondera: brilharei mais uma vez na terra do
esquecimento?
Não consegue decidir e ilumina pálido, hesitante.
Enquanto escrevo a brisa lança folhas pequenas em
meu colo uma maneira de me beijar, como disse o
poeta à atriz carente.

Ali ao lado o marimbondo, sozinho, passeia ao pé
da palmeira, ninguém vê.

O mundo é dos homens.
Mas há também os insetos, os índios e algumas mulheres.
Eu sou uma delas.

Nesse país ninguém precisa ser gari para ser invisível.
(p. 10)

A palavra forte do poema é algumas. Nem todas as mulheres são fortes. Ao menos não sabem que o são, o que dá no mesmo. Há mulheres que não têm voz nem expressão. Mas ela que nos fala de dentro do poema, que se coloca como Eu, é uma das que têm. Ou que por vezes tem. Mesmo quem tem voz, como o gari que diz bom dia, pode ser tomado por mudo. Ter voz não garante ser ouvido. Além de ter voz, o desafio que o poema denuncia é fazer-se ouvir. Assim como o marimbondo que passeia sem ser visto, o feminino, apontado no título do poema, é tomado por silente, passa despercebido pelo outro. Mas sua força, como a do sol, titubeante ou não, lá está. Ironia e paradoxo: duas características que marcam esses poemas de Lucila.

da natureza
é preciso salvar uma vida a cada instante é preciso dar uma palavra à moça que sobe é preciso tocar no ombro do menino para que ele sinta que o ombro é dele é preciso cuidar das plantas é preciso dar atenção àqueles olhos é preciso ter delicadeza para que ele não pense que bocejei de tédio é preciso responder justo à menina é preciso fazer a comida é preciso pedir desculpas é preciso apartar discussões é preciso viver morrendo é preciso correr é preciso não esmagar o tatu-bola é preciso dizer manso coisas difíceis é preciso pedir ao moço que levante para que a grávida possa sentar é preciso esconder as lágrimas de exaustão é preciso não morrer de susto é preciso apagar as luzes na madrugada é preciso não voar é preciso sentir é preciso conviver consigo vinte e quatro horas por dia é preciso não transbordar é preciso ter corpo é preciso escrever é preciso silenciar é preciso ter claro o que é preciso e o que não mas alguém disse que não há clareza nem boniteza na precisão. (p. 37)

Alguns dos poemas refletem a sobrecarga do mundo por meio de palavras ou frases repetidas. Esse é o poema que, a meu ver, melhor mostra a repetição do cotidiano, também tematizada em muitos outros momentos do livro. Tudo "é preciso", frase pronta externa que martiriza o sujeito. São precisas coisas de naturezas tão díspares como pedir ao moço que levante para a grávida sentar e conviver consigo vinte e quatro horas por dia. Algumas são demandas externas, outras emanam do próprio corpo. E, no fim, a "precisão", ou tudo isso que é preciso, não tem "clareza nem boniteza". Paira a dúvida: será que era preciso mesmo? Novamente, um poema-paradoxo: o que é citado pelo narrador tanto "é preciso" quanto, ao mesmo tempo, não é.

eu também tomo conta do mundo
Segurei a menina para que não pisasse na formiga
levava o triplo de si nas costas
alimento para todo formigueiro
a carga escorregava
a pequenina se entortava para equilibrar

ando devagar na faixa de pedestres
para em silêncio acompanhar a senhora
em suas lentas e frágeis pisadas
até o outro lado da rua
se ela escorregar eu escoro

os velhos e
as formigas
são invisíveis

eu
que sobrevivi
fiquei metida.
(p. 25)

Mais uma conversa entre narrador e leitor sobre o contato com uma formiga. Fica ainda mais evidente que a narradora é "como uma formiga", mas que em alguns momentos pode transcender esse lugar. Caminho bonito e árduo ao mesmo tempo. A poesia, o estar no mundo, são, para essa narradora, formas de abertura e paradoxo. É refúgio, convivência com a natureza, relações simples e, por vezes, uma inconclusa transcendência.

Como eu dizia, cada leitor dirá o que o rabisco implica para si. Rabisco que transforma. Para mim, o rabisco é a forma plástica da função transmutadora da ficção. Longe de ser um meio de transporte seguro, poesia é estar no rabisco; ela é uma forma de transporte possível...

 

REFERÊNCIAS

Borges, J. L. (2010). "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius". In J. L. Borges, A. B. Casares & S. Ocampo, (Orgs.). Antología de la literatura fantástica (pp. 106-121). Buenos Aires: Desbolsillo. (Trabalho original publicado em 1965).         [ Links ]

Shakespeare, W. (1998). The tempest. Nova York: Dover Publications. (Trabalho original publicado em 1623).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
FERNANDA SOFIO
Rua Engenheiro Luís Carlos Berrini, 1748/1608
04571-090 – São Paulo-SP
fernanda.sofio@usp.br

Recebido 08.10.2018
Aceito 27.10.2018

 

 

1 A artista autorizou a reprodução da imagem nesta resenha. Fora produzida a pedido de Lucila. Porém é de lamentar que não tenhamos encontrado a imagem que transmite a ideia de imagem mítica, indicando que já estamos no campo da ficção. Ou seja, se por um lado é fato que não encontramos a imagem original, por outro, filosoficamente falando, podemos perguntar: original, antes de virar capa. O efeito disso é curioso: será que ela realmente existiu? Lembra a questão tratada por Borges, por exemplo.

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