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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Somos artífices de nossa existência?

 

Are we the artisans of our own existence?

 

 

Jassanan Amoroso Dias Pastore

Psicanalista. Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Instituto Sedes Sapientiae. Autora do livro O trágico: Schopenhauer e Freud (Primavera Ed., 2015)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Um dos temas centrais da história da filosofia e da psicanálise, a complexa relação entre determinismo e liberdade assumiu diferentes formas ao longo dos tempos. Este texto pretende levantar uma possível discussão sobre essa questão, a partir de algumas ideias acerca da concepção trágica do homem.

Palavras-chave: Psicanálise. Liberdade. Determinismo. Filosofia. Trágico.


SUMMARY

One of the central themes in the history of philosophy and psychoanalysis, the complex relationship between determinism and freedom, has taken different forms over time. This text intends to raise a possible discussion of this issue, starting from some ideas about the tragic concept of man (the human being).

Keywords: Psychoanalysis. Freedom. Determinism. Philosophy. Tragic.


 

 

Os fados guiam a quem se deixar levar,
e arrastam quem resiste.
(Sêneca)

Um dos temas centrais da história da filosofia e da psicanálise, a complexa relação entre determinismo e liberdade, assumiu diferentes formas ao longo dos tempos.

O ser humano é livre em suas escolhas ou é determinado por sua configuração genética, sua pertinência histórica e seus mecanismos inconscientes? E o que significa fazer escolhas? É possível prever os desdobramentos de nossas decisões? Entre o útero e o túmulo, momentos opostos e cruciais que não decidimos, estaremos livres para escolher e nos tornarmos seres singulares? A clínica psicanalítica teria algum papel frente à possibilidade de o sujeito obter certa autonomia e liberdade no governo de si? Somos autores de nossos projetos? E o destino como qualquer condição que ocorra em nós que não podemos evitar? Qual o alcance da liberdade humana? Liberdade é ter consciência de nossa prisão? Ou ainda, seguindo nossa epígrafe, pode o homem ser ao mesmo tempo livre e determinado. Este texto pretende apresentar um recorte sobre essas questões a partir de umaconcepção trágica do homem.

Somos herdeiros da civilização grega. A passagem da epopeia e da tragédia à filosofia na Grécia Antiga é um combate entre uma vida nas mãos dos deuses e uma vida que busca ter seu destino nas próprias mãos. Homero, na epopeia Ilíada, elucida que o destino dos homens, criaturas efêmeras que surgem para desaparecer, se encontra nas mãos dos deuses, imortais, que sempre se encarregam da decisão a ser tomada. Assim, "o agente, em sua dimensão humana, não é causa e razão suficiente de seus atos", por depender menos das próprias intenções do que "da ordem geral do mundo à qual os deuses presidem" (Vernant & Vidal-Naquet, 2008, p. 49). São os deuses que motivam os homens nas suas deliberações. O homem homérico vive naturalmente com o divino, sendo impossível interpretar a existência humana sem as intervenções divinas. E é graças a elas que a vida recebe seu sentido. Para que possamos compreender o modo como essa interferência se dá, é preciso conhecer algumas características dos deuses gregos. A primeira delas é que eles estão subordinados às moiras, que estão acima deles. Nas epopeias e tragédias, as moiras representam uma lei que paira soberana não somente sobre os homens, mas também sobre os deuses, pois nem mesmo Zeus, deus dos deuses e dos homens, está autorizado a transgredir a lei das moiras sem interferir na harmonia cósmica. Essas forças, quando personificadas, são representadas por três divindades do destino, as Moirai, que são as filhas de Ananke, a Necessidade: Cloto, Láquesis e a Átropos: "Fiar, tecer a sorte de alguém equivale a 'atá-lo', ou seja, a imobilizá-lo numa 'situação' impossível de modificar" (Eliade, 2010, p. 250). A palavra destino se origina do termo heimarméne (Reale, 1994, p. 316), que significa a parte, meros, da duração da vida e seu quinhão de sofrimentos que as moiras atribuem a cada mortal, por meio da fiação "desordenada" de belas tapeçarias. Heimarméne deriva:

Do particípio passado "passivo" do verbo meíromai, no qual encontramos a raiz mer, que aparece na palavra meros (parte). [...] Desse mesmo verbo deriva-se Moirai, as Moiras, as filhas de Ananke, a Necessidade, que fiam, tecem e cortam o fio das nossas vidas, isto é, nosso destino. (Chaui, 2010, p. 346)

Ananke é, portanto, o destino inelutável determinado pelas moiras. Necessidade aqui é a ordem das coisas estabelecidas pela divindade como lei; a lei da natureza. Coisas e humanos "são forçados ou constrangidos a ser como são e a agir como agem por força da necessidade (divina, natural). Opõe-se ao acaso" (ibidem, p. 344). E Homero nos diz que "homem nenhum, porém, foge à moira, mau ou bom, desde o dia em que nasce" (séc. viii/2003, vv. 488-489, p. 261). Assim, o homem grego antigo sabe que sua vida já está decidida pelas moiras, que designam o destino.

Outra importante característica dos deuses gregos é a antropomorfização. Eles possuem traços humanos e seus atos são ditados pelo pathos, de modo a interferirem de forma passional, tanto para o bem quanto para o mal, nas ações e no destino dos homens; os deuses são temperamentais, se casam com os humanos, têm filhos conosco, disputam poderes com a gente, nos amam apaixonadamente ou nos detestam, nos traem, nos perseguem, escolhem alguns para serem corajosos e outros para carregarem a covardia, explodem em sentimentos de amor e ódio por nós, nos destroem sem pena, enfim, "sem nenhum regime moral que faça da vida humana uma 'máquina de sentido'" (Pondé, 2010, p. 118). Somos objetos de desejo de deusas/deuses sem fins pedagógicos ou morais. Isso, no entanto, não livra o homem de ser responsável por suas ações. O homem grego pressente que "o fundamento de tudo é a livre vontade divina" (ibidem, p. 119), isto é, "nosso destino e o destino dos deuses e das deusas são predeterminados, não há liberdade real" (Ibidem, p. 119):

As moiras, aquelas senhoras quase cegas, tecem o tecido do destino, do qual jamais ninguém escapa. Muitas vezes, pensando estar fugindo do destino (Édipo Rei), estamos sempre indo em direção a ele. A hybris (desmedida) é a marca humana que realiza o destino na sua forma mais dramática, o passo em falso que fará da vítima humana (cuja origem é o desejo sem fundamento moral de um deus cheio de libido - Zeus) um bode a ser sacrificado sem nenhuma razão moral maior, a não ser um destino tecido pelas moiras. (Ibidem, p. 119)

A hybris, fonte das paixões, é a marca humana, o desejo desmedido. O pathos grego é esse "desordenamento" do cosmo que invade os mortais, e o cosmo grego é o conflito insolúvel, combate constante. O autor ainda acrescenta que o destino humano "é, sobretudo, fisiológico. Carregamos moiras em nossas células" (ibidem, p. 132).

Em síntese, deuses/deusas gregos/as não detêm pleno poder nem sobre a própria vida, nem sobre a dos humanos, pois estão todos submetidos a regras desconhecidas e imponderáveis das moiras. É o acaso, o caráter contingente da existência.

Vale ressaltar que o período que transcorre entre Homero e a tragédia, no século v a.C, apresenta uma mudança significativa no sentimento religioso, que se manifestará na tragédia. Os tragediógrafos começam a problematizar a posição do homem como agente, surgindo então uma tensão entre os desejos humanos e os caprichos e desígnios divinos. É o momento em que o homem já toma para si mesmo, de forma mais clara, a responsabilidade de suas escolhas e ações, isto é, de seu destino, embora ainda entregue para os deuses alguns momentos decisivos desse destino. A reflexão do homem sobre si, mesmo que independente do recurso aos deuses, só se dará com o advento da filosofia. Os poetas trágicos ainda não prescindem dos deuses, porém não mais os aceitam incondicionalmente, como acontecia na epopeia homérica. Assim procedendo, o homem deixa de ser joguete do destino e começa a se fazer autor, construtor de sua própria existência, tendo que assumir as consequências de sua decisão pessoal. O trágico é que o homem é levado a tomar decisões nas situações extremas e difíceis. Na tragédia, agir ése comprometer com o futuro. E este, como possibilidade, é uma oportunidade cuja realização nada garante. Daí a angústia existencial do homem que passa a se comprometer com os seus próprios rumos. O desamparo na tragédia é terrível porque o homem trágico começa a não olharmais para os deuses como antes. Sem a proteção divina e o amparo dos deuses, o homem pode ser esmagado pelo peso de suas decisões:

A ação humana é, pois, uma espécie de desafio ao futuro, ao destino e a si mesma, finalmente um desafio aos deuses [...]. Nesse jogo, do qual não é senhor, o homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas próprias decisões. Para ele, os deuses são incompreensíveis. (Vernant & Vidal-Naquet, 2008, p. 21).

O conflito, agon, é o coração da dinâmica da tragédia. É o momento histórico em que o homem começa e tem que conviver com o confronto. A existência trágica implica um desejo, uma luta do herói em conduzir seu próprio destino, ao mesmo tempo que esse destino está determinado pelos deuses; o homemtrágico é responsável por suas ações, embora submetido à natureza, ao destino:

A tragédia antiga como sensibilidade religiosa não responde à agonia da razão de modo satisfatório porque nega a suficiência moral última do mundo, negando assim qualquer regime moral para a vida humana. (Pondé, 2010, p. 118).

Na dimensão trágica, portanto, a escolha e o agir têm um duplo caráter. De um lado, "é deliberar consigo mesmo, pesar o pró e o contra, prever, o melhor possível, a ordem dos meios e dos fins" (Vernant & Vidal-Naquet, 2008, p. 21). De outro, "é contar com o desconhecido e incompreensível, aventurar num terreno que nos é inacessível, entrar num jogo de forças sobrenaturais sobre as quais não sabemos se, colaborando conosco, preparam nosso sucesso ou nossa perda" (ibidem, p. 21). O "paradoxo moral" (Vorsatz, 2013, p. 84), a tensão entre a determinação divina e a responsabilidade humana, é constitutivo do destino trágico. No mesmo ponto em que se encontra submetido à ordem dos deuses, o herói deve se responsabilizar por uma decisão que é em si mesma uma ação. Nesse combate, o homem se torna: "[Uma] criatura ambígua e enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo" (Vernant & Vidal-Naquet, 2008, p. 73 - grifo nosso).

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"O velho estoico conservou o controle de sua vida até o fim" (Gay, 1989, p. 587). Essa frase foi escrita por Peter Gay ao encerrar a biografia de Freud. A partir dela indagamos: o que é o estoicismo? Como os estoicos pensam que podemos controlar nossas vidas? Tomaremos inicialmente um trecho da carta escrita por Freud no dia 6 de março de 1910, em que ele faz um pedido a Oscar Pfister:

Que se pode fazer num dia ou num tempo em que os pensamentos falham e as palavras não querem fluir? Não consigo livrar-me de um tremor diante dessa possibilidade. Por isso, mesmo rendendo-me inteiramente ao destino como convém a uma pessoa honesta, tenho um desejo secreto: de modo algum uma enfermidade prolongada, nenhuma paralisia da capacidade produtiva por um sofrimento corporal. Morramos em nosso posto, como diz o rei Macbeth. (1909-1939/2003, p. 49 - grifo nosso)

Freud mostra sua reverência perante o destino, ao mesmo tempo que enfrenta a doença com dignidade e sem autopiedade. Ele se mantém em seu "posto", trabalhando, lutando e enfrentando inúmeras cirurgias até a queda derradeira. Como Édipo em Colono, que ao ser abraçado pela Terra encontra na morte a reconciliação consigo mesmo e com as forças da Natureza, sendo libertado de toda a dor e sofrimento.

Os estoicos se ocuparam da reflexão sobre a problemática combinação entre o acaso e a necessidade. Para a escola estoica, fundada em Atenas no início do século III a.C., o destino é a razão (logos, do grego), que tem o poder de controlar o universo: "A constituição natural do homem inclui a razão, que vem modelar nossos impulsos "como um artesão, conferir-lhes uma certa ordem" (Gourinat & Barnes, 2013, p. 119). E a verdadeira liberdade seria apreciar e seguir o destino, viver segundo as leis da natureza.

A noção de logos é um conceito central na filosofia grega e pode significar igualmente "palavra", "discurso" e "razão" (Hadot, 2004). E, "muito especialmente, os estoicos imaginavam que o lo gos, concebido como força racional, era imanente ao mundo, à natureza humana e a cada indivíduo" (ibidem, p. 334). Cabe ainda distinguir que na Antiguidade "a philosophia designa não uma teoria ou maneira de conhecer, mas uma sabedoria vivida, uma maneira de viver segundo a razão, isto é, segundo o logos" (ibidem, p. 338).

A ética estoica é uma tentativa "digna de atenção para usar a grande prerrogativa do homem, a razão, em favor de um fim importante e salutar, a saber, elevá-lo acima dos sofrimentos e dores aos quais cada vida está exposta" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 146); e "não é originária e essencialmente uma doutrina da virtude (no sentido kantiano), mas mera instrução para uma vida racional" (ibidem, p. 142), cujo objetivo é alcançar certa tranquilidade de ânimo, ou seja, a ataraxia. A conduta virtuosa pode ser encontrada per accidens, mas não é propriamente o fim. Por "'viver feliz' deve-se entender 'viver menos infeliz', ou seja, de modo suportável" (Schopenhauer, 1851/2006, p. 141). Em sua vivência prática, o estoico pode escolher, após reflexão, por uma ou outra ação, mas está sempre "sujeito às tempestades da realidade efetiva" (Schopenhauer, 1819/2005, p. 140). A capacidade de reflexão tornaria as pessoas "conhecedoras da ilusão das impressões momentâneas, da inconstância de todas as coisas, da brevidade da vida, da vacuidade dos prazeres, da alternância da sorte e das grandes e pequenas insídias creditáveis ao acaso" (ibidem, p. 645). É uma proposta para que o homem enfrente as adversidades com coragem e serenidade: "Não cedas à adversidade, mas marcha audaz contra ela" (Virgílio, citado por Schopenhauer, 1851/2006, p. 244).

A experiência estoica "consiste em uma tomada de consciência aguda da situação trágica do homem condicionado pelo destino" (Hadot, 2004, p. 188). O estoicismo funda na própria natureza a possibilidade de escolha existencial. No domínio moral se localiza o que depende de nós; na esfera indiferente se encontra o que não depende de nós, isto é, o destino, o curso da natureza e as ações dos outros homens. E "a indiferença consiste em não fazer diferença" (ibidem, p. 196), ou seja, aceitar o destino, viver conforme a natureza. Somente a intenção moral não é indiferente. Trata-se menos de uma indiferença que possa conduzir à insensibilidade e à inação e mais da condição de uma sensibilidade racional. O estoicismo é "coragem para suportar a dor, a infelicidade, as privações, sob aparência de indiferença" (Gourinat & Barnes, 2013, p. 16). E aqui podemos contar com a clínica psicanalítica como uma experiência propiciadora, tanto quanto possível, de uma atitude existencial de resistência à dor, à moderação dos prazeres e à aceitação da natureza, principalmente, a inevitabilidade da morte (Pastore, 2015).

Para o estoicismo grego, precisamos nos habilitar para a contenção, para a aceitação dos limites da vida, para a busca de uma vida comedida. Para sermos livres é preciso não se deixar dominar pela paixão, porque esta é efêmera. Uma vida entregue às paixões emocionais pode causar sofrimento a nós e aos outros. Podemos controlar e orientar nossos afetos ou a razão é impotente diante da paixão? Seria "existir emocionalmente" num universo afetivo sem altos e baixos, claros e escuros? O estoico responderia que ter domínio sobre as emoções não significa extirpá-las, até porque ele considera que, por meio da razão, só conseguimos atingir "algum" poder sobre as paixões,e de forma alguma esse poder é "absoluto". Freud reconhece a escolha amorosa, ao lado do trabalho, como um dos fundamentos da civilização: "Eros e Ananke (amor e necessidade) se tornaram os pais da civilização" (Freud, 1930/1976e, p. 121). Semelhante aos estoicos, Freud distingue o amor-paixão como produtor de maior prisão e sofrimento do que liberdade e satisfação, sendo estas últimas mais companheiras do amor terno, do amor sublimado, do amor inibido em sua finalidade. Mas todo amor é uma escolha e, como toda escolha, é risco.

O pensamento trágico, ao migrar do universo religioso-literário para a filosofia na Antiguidade grega, irá se estabelecer, principalmente, a partir da ideia de acaso. Lucrécio, filósofo- -poeta latino do século i a.C., é o primeiro a introduzir a presença do acaso na filosofia antiga. Para Lucrécio, radicalmente trágico, o fundamento do mundo não é Deus nem a Natureza. É o acaso. O sentido do mundo é não ter sentido algum:

a realidade última das coisas é o acaso, a "natureza das coisas" (nome de seu poema filosófico) é não ter natureza alguma. Não há uma ordem (uma natureza) que produziria algum sentido esperado no mundo e na vida. Nada está indo para lugar algum. O acaso desarticula qualquer esperança no sentido das coisas. (Ibidem, p. 120)

Uma dada escolha pode arruinar nossa vida, mas a escolha oposta também, sem garantias,"porque 'quem' arruma os dados do jogo é cego e não 'é' propriamente ninguém, mas apenas o acaso" (ibidem, p. 120). Essa concepção de acaso é encontrada também em Darwin:

Tudo que existe é fruto da combinação cega e contingente dos átomos formando os corpos, inclusive o "vento", que é nossa alma ou espírito (aqui como sinônimos). Essa mesma visão do acaso aparece na cosmologia darwinista profunda: um universo cego e mecânico. Uma dança de sonâmbulos que se devoram uns aos outros. (Ibidem, p. 120)

Vemos que aqui não há um destino tecido pelas moiras, logo há, sim, liberdade. Por que então seria trágico? Porque se refere a uma liberdade pensada segundo a chave sartriana de que estamos condenados a ser livres, responde o autor:

Trata-se de uma liberdade que anula o valor dela mesma, como a anunciada por Sartre e pelos exis tencialistas contemporâneos de que estamos condenados a ser livres. A liberdade é uma maldição, não um ganho moral, existencial ou político. A liberdade é trágica na medida em que é pura contingência que desarticula o valor da própria liberdade moral (ou seja, a liberdade de escolha). O medo de sermos escravos de um destino cego reaparece na face de uma contingência absoluta: liberdade (ou contingência) aqui é nome de cegueira cósmica, da indiferença do ser para conosco, da solidão sem fim que nos envolve, das pedras mudas como nossa origem e nossa herança. (Ibidem, pp. 120-121 - grifo nosso)

Sartre considera o pensamento "Se Deus não existe, tudo é permitido" (1946/2014, p. 24), de Fiódor Dostoiévski, o ponto de partida do existencialismo, o que coloca o homem numa condição de desamparo:

o homem se encontra desamparado, pois não encontra nem dentro, nem fora de si uma possibilidade de agarrar-se a algo. Sobretudo, ele não tem mais escusas. Se, com efeito, a existência precede a essência, nunca se poderá recorrer a uma natureza humana dada e definida para explicar alguma coisa: dizendo de outro modo, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe não encontraremos à nossa disposição valores ou ordens que legitimem nosso comportamento. Assim, nem atrás, nem à nossa frente, ou no domínio numinoso dos valores, dispomos de justificativas ou escusas. É o que exprimirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, pois ele não se criou a si mesmo, e por outro lado, contudo, é livre, já que, uma vez lançado no mundo, é o responsável por tudo o que faz. (Ibidem, p. 24 - grifo nosso)

O existencialismo, segundo Sartre, não acredita que o homem possa encontrar auxílio em algum sinal na Terra que o oriente, pois considera que é o próprio homem quem decifra o sinal como melhor lhe parecer. Portanto é dele toda a responsabilidade pela forma de decifrar, ou seja, "pensa que o homem, sem nenhum tipo de apoio nem auxílio, está condenado a inventar a cada instante o homem" (ibidem, p. 25). O futuro não está inscrito nas estrelas. Não existe nenhuma natureza humana sobre a qual possamos nos fundamentar. Existe apenas a condição humana com seus limites. Todavia Sartre acrescenta que isso não significa que devamos nos abandonar ao quietismo, ao repouso ou esperar ausência de tensão. Pelo contrário, temos que refletir, decidir e agir conforme o que estiver ao nosso alcance. É a dura realidade, mas nem por isso, vale frisar, o autor considera o existencialista pessimista, desesperançado, pois é um pensamento que coloca o destino do homem em suas próprias mãos. A subjetividade humana está no centro das escolhas e das ações.

Nietzsche, filósofo trágico, irá se ocupar dos nossos sentimentos de medo e ressentimento diante do acaso. Não sofremos apenas com o acaso em si, mas com a relação afetiva que temos com ele:

temos medo da violência cega que ele implica ao anular todo o valor de nossa agonia em busca de um mundo suficiente. Esse medo e essa busca nos fazem adoecer (o que Nietzsche chama de "adoecimento do Eros") e perder a chance que é dançar (metáfora forte no esquema nietzschiano e que implica sempre a noção de saúde espiritual) em meio a esse infinito processo de criação e descriação dos elementos. (Pondé, 2010, p. 121)

Dançar em meio à falta de sentido da vida nos salvaria desse "adoecimento do Eros"referido por Nietzsche e nos devolveria a possibilidade de escolha da atividade criativa diante da insuficiência do mundo, levando-nos a perceber que somos os criadores de sentido e que este só morre quando morremos:

O Eros em Nietzsche é exatamente esse gozo criativo em meio ao vazio de valor e de sentido. Mas, na calada da noite, penso que muita gente que simpatiza com Nietzsche esquece que por trás desse canto maravilhoso sobre a possibilidade de sermos nós mesmos a fonte de valor (este é o "super-homem", o transvalorado que viu a inexistência de valores eternos), está um olhar trágico, mesmo que "alegre" como ele, Nietzsche, gostava de dizer. (Ibidem, p. 121)

A nossa existência é, antes de tudo, o que podemos ser - vida possível - e é também, e por isso mesmo, escolher entre as possibilidades o que em efeito desejamos ser. De certa forma, consonante com o pensamento sartriano, Ortega y Gasset considera que: "Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade" (1930/2002, p. 78). Se tivéssemos diante de nós apenas uma possibilidade, seria a pura necessidade. Mas, ao contrário, a vida nos impõe várias trajetórias, o que nos obriga a escolher o que desejamos ser e a exercer nossa liberdade. Esse estranho fato de nossa existência designa a condição radical de sempre encontrarmos inúmeras saídas, que adquirem o caráter de possibilidades entre as quais temos que decidir. Assim podemos dizer: "que nos encontramos num ambiente de 'possibilidades determinadas'. A esse âmbito costumamos chamar 'as circunstâncias'", e, daí decorre, que "eu sou eu e minha circunstância" (ibidem, p. 70). Essa circunstância envolve a maneira de cada sujeito lidar com as exigências e possibilidades coletivas formuladas pelo tempo e por um contexto específico. Circunstância e decisão são, portanto, os dois elementos fundamentais de que se compõe a nossa vida: "A circunstância - as possibilidades - é o que nos é dado e imposto em nossa vida. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não escolhe seu mundo, mas viver é encontrar-se, de início, num mundo determinado que não pode ser trocado: neste de agora" (ibidem, p. 77), em vez de criarmos outros mundos, "além-mundos" (Nietzsche, 1883/s/d, p. 24), concebidos como supostamente melhores e mais verdadeiros.

Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas, esta fatalidade vital não é semelhante à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente determinada. A fatalidade com que nos deparamos ao cair neste mundo consiste no inverso. Em vez de nos ser imposta uma trajetória, nos são impostas várias o que, consequentemente, nos força a escolher. É surpreendente a condição de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir. Portanto, na vida não são as circunstâncias que decidem, ao contrário, as circunstâncias são o dilema, sempre novo, perante o qual temos que decidir. Mas o que decide é o nosso caráter. (Ortega y Gasset, 1930/2002, pp. 77-78 - grifo nosso)

Ortega y Gasset ainda acrescenta que as nossas decisões expressam o nosso caráter. Na Antiguidade grega, Heráclito já havia introduzido este pensamento: "O caráter, ethos, de um homem é o seu destino", ethos antropo daimon, ou seja, há uma relação indissociável entre caráter e destino. O que acomete o personagem trágico está ligado ao seu caráter. O ethos de Édipo o leva a cumprir o seu destino. Édipo faz uma escolha pessoal e se engaja em atos que correspondem ao que ele é - o desejo de Édipo pertence a ele e o constitui - e, ao mesmo tempo, os deuses preparam tudo, de forma que o homem é empurrado, atravessado pelas potências divinas, não compreendendo direito o que está acontecendo porque existem forças acima dele que se divertem manobrando-o. Enredados em certas circunstâncias, nossas escolhas e o nosso agir diante do imponderável são compatíveis com o que somos, com o nosso caráter.

A imagem moderna do homem é fortemente marcada pelo cogito de Descartes, ou seja, por uma matriz pensante, racional. Descartes quer caminhar pela vida com segurança, quer a certeza, quer capturar a dimensão errante da subjetividade, alienando-a em um eu que pensa, que sabe. Porém, no fim do século xviii e início do xix, temos, a partir da reflexão estética idealista alemã, a constituição de um pensamento trágico em sua concepção filosófica moderna. É um momento cultural turbulento, pleno de debates sobre as paixões terrenas (amor erótico) e elevadas (amor sublime). Surge com todo vigor o Romantismo, movimento que traz a concepção de que nossas vidas não seriam ditadas somente pela razão, mas também pelo nosso estado d'alma. Os filósofos Schopenhauer, mais tarde Nietzsche e o pai da psicanálise emergem como pensadores que enfatizam a preponderância das determinações pulsionais inconscientes, em detrimento da razão, sobre as escolhas e ações humanas. Suas posturas são essencialmente trágicas, pois ressaltam a fragilidade do ser humano na condução de seu destino. E o inconsciente psicanalítico virá contrariar a concepção de que o sujeito da modernidade faz de si mesmo um ser de autoconsciência e de autodeterminação.

A tragédia, quando retirada de sua dimensão mítico-religiosa imediata, se transforma numa indagação acerca do que fazer com o fato de que somos atravessados pela contingência. Muitas são as possibilidades de analogia entre a tragédia grega e a psicanálise. Entre elas podemos pensar que aquilo que na tragédia irrompe como destino é análogo à noção de determinação inconsciente em Freud. A problemática constitutiva da tragédia é homóloga, sem no entanto se embaralhar àquela encontrada na psicanálise: a complexa relação do homem com sua ação e sua responsabilidade. A tragédia coloca questões sobre a natureza do homem, sobre a hybris; de forma análoga, a psicanálise se ocupa da relação entre a ação do sujeito e o desejo inconsciente que a habita. A ética da psicanálise se refere, penso eu, à dimensão trágica do desejo.

Freud escolhe a tragédia Édipo Rei porque ela contém as marcas parentais da infância que impregnam nossos desejos e, consequentemente, os possíveis (des)caminhos de nossa existência. O destino de Édipo é universalizado pelo coro: "Com teu destino por paradigma..." (Kury, 1997, vv. 1398-1401, p. 83). Numa carta enviada a Fliess em 1897, Freud explicita, a partir de sua própria experiência,esse conteúdo edipiano universal. O destino de Édipo nos comove porque também pode ser o nosso - a nossa neurose: "podemos entender o poder de atração de Édipo Rei, a despeito de todas as objeções que a razão levanta contra o desti no inexorável" (Masson, 1986, p. 273). É a poderosa influência das circunstâncias acidentais de nossa constelação parental sobre nosso destino, acrescida da dimensão inconsciente do desejo como motor de interferência determinante em nossas escolhas. E é na clínica psicanalítica que essas imagos prenhes de desejos inconscientes, que se formam primitivamente a partir do complexo de Édipo, podem se expressar e alcançar algum grau de domínio.

Seguindo na linha das analogias, se o herói trágico não é o centro de suas decisões, por estar submetido aos desígnios dos deuses e ser responsável por seus atos, o homem freudiano, de modo semelhante, é agido por forças pulsionais desconhecidas e indomáveis, que lhe roubam a tranquilidade de ser dono absoluto de seu destino, e não menos responsável pelas suas ações, conscientes ou não, conforme a tão conhecida máxima "trágica" freudiana - terceira ferida narcísica da humanidade - sobre nossa precariedade psíquica: "O ego não é o senhor da sua própria casa" (Freud, 1917/1976b, p. 178), visto que "uma parte do ego, sabe Deus quão importante parte do ego, também pode ser inconsciente, é certamente inconsciente" (Freud, 1924/1976c, p. 32), e que "o ego está sujeito também à influência das pulsões, tal como o id" (ibidem, p. 30). O inconsciente sequestra a possibilidade de tomarmos, integralmente, em nossas próprias mãos o leme de nossa vida, já que as pulsões sexuais não se deixam ser domesticadas de forma completa. Se, na tragédia, a peripécia aponta que as coisas não são exatamente como aparentam ser de início e que, além disso, o homem não está no comando de sua vida, não sendo, portanto, senhor de seu destino, na psicanálise, a terceira ferida no orgulho da humanidade também rouba do homem a ilusão do domínio de si pela razão e o confronta com o fato de que, sem sabê-lo, ele age movido por seus desejos mais vergonhosos e incivilizados, seja pelo seu caráter erótico, seja pelo seu conteúdo destrutivo. Ortega y Gasset aqui nos acompanha ao considerar que a vida "individual ou coletiva, pessoal ou histórica, é a única entidade do universo cuja substância é perigo. Compõem-se de peripécias. É, rigorosamente falando, drama" (1930/2002, p. 112).

Freud ressalta que "os homens são pouco acessíveis a motivos racionais, são inteiramente governados por suas paixões e exigências pulsionais" (Freud, 1927/1976d, p. 60), que atuam como força constante. Freud é contundente ao afirmar que "a essência mais profunda da natureza humana consiste em pulsões primitivas" e que, na realidade, "não existe 'erradicação' do mal" (Freud, 1915/1976a, p. 317) porque essas pulsões, como as egoístas e as de crueldade, são imperecíveis e, portanto, mesmo o indivíduo dito "civilizado" pode a elas regredir em determinadas circunstâncias. E complementa que "classificamos essas pulsões, bem como suas expressões, segundo sua relação com as necessidades e as exigências da comunidade humana" (ibidem, pp. 317-318). Freud termina esse texto sugerindo o preceito estoico de aceitação da morte como liberação para a vida: "Se desejas suportar a vida, prepara-te para a morte" (ibidem, p. 339). Desistência do desejo, da diferença, separação de Eros.

A pulsão, diferentemente do instinto, é desmanteladora da ordem natural e constituinte da ordem humana, sendo impossível de ser satisfeita, já que seu objeto não é natural, mas contingente, indeterminado. A pulsão pode ser considerada pura potência indeterminada e daí ser, na psicanálise, "o lugar do acaso" (Garcia-Roza, 1990, p. 127). A corporeidade pulsional do sujeito de carne e osso vem revelar o que há de mais incerto na existência humana. Mas, pelos caminhos do desejo, a pulsão pode ser satisfeita de inúmeras formas, proporcionando-nos momentos de liberdade. Na cultura, novas articulações, não naturais, podem ser constituídas.

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Freud (1927/1976d) é enfático ao dizer que o processo de civilizar-se implica a restrição da nossa própria liberdade de escolha e o sofrimento de um estado de desconforto (ou "mal-estar") psíquico, decorrentes da renúncia à satisfação de certos desejos. O processo civilizatório agride as bases da liberdade humana. Há uma tensão incontornável e um conflito incessante entre as interdições e renúncias, de um lado, e as demandas e pulsões obstinadas da nossa constituição psíquica, de outro. A angústia psíquica provém, em grande parte, da renúncia de uma parte considerável da liberdade em troca de um ganho de segurança e de convívio. Essa perda de liberdade é um dos maiores descontentamentos da vida civilizada.

Como já vimos, a ideia de destino tem uma longa e poderosa tradição na cultura grega. Na psicanálise, mais uma vez inspirado nos gregos, Freud evoca os deuses Logos e Ananke em alguns textos. Assim, Ananke é sinônimo de realidade exterior, de leis da natureza, de necessidade e é também articulada com a morte. Freud concorda com o poeta Multatuli, que substitui a Moira, deusa grega do destino, pelo par divino Logos e Ananke, "razão e necessidade" (1924/1976c, p. 210). Num texto posterior, a expressão deus-logos aparece como dispositivo civilizatório, mas com limitações: "Nosso Deus Logos atenderá aos nossos desejos que a realidade externa, Ananke, a nós permita, mas será de modo muito gradativo, somente num futuro imprevisível e para uma nova geração de homens" (Freud, 1927/1976d, p. 68), e "nosso Deus, Logos, talvez, não seja um deus muito poderoso, e consiga realizar uma pequena parte do que seus antecessores prometiam" (ibidem, p. 69). Assim, podemos distinguir "a esfera pulsional sob a égide da deusa Ananke" e "o campo da representação sob a égide do deus Logos" (Pastore, 2015, p. 351). Se, por um lado, o corpo pulsional é nosso fado, aquilo que nos é dado a viver na nossa contingência, por outro, o corpo simbólico nos possibilita dar à pulsão destinos eróticos e sublimatórios (Azambuja, 2006, p. 157), embora permaneça sempre uma força constante que não pode ser redutível à cadeia simbólica, que escapa à representação.

A psicanálise indica que cada sujeito pode atribuir à realidade diferentes significados e lidar com ela de diferentes maneiras porque, no mundo humano, não existem fatos brutos. Não temos o poder de virar as costas para o infortúnio, mas, uma vez acontecido, podemos enfrentá-lo de diversos modos. O passado não precisa se manter no registro fechado da necessidade imutável - "o passado me condena" -, mas pode se transformar no reino de certa liberdade. Essa liberdade, que está sempre esbarrando na necessidade, faz parte da experiência humana. Assim, nós somos ao mesmo tempo o que desejam por nós e o que desejamos e conseguimos fazer com o que desejam por nós. De certa maneira, somos nossas invenções. Ou construímos o nosso mundo, ou não há como existir. Essa é a aposta freudiana para lidarmos com nossa trágica existência, em que a criatividade ocupa lugar central. Os caminhos que trilhamos são frutos de escolhas, embora muitos possam ser circunstanciais. Escolher implica abdicar de algo. Somos seres da insatisfação porque somos desejantes. Tragicamente desejantes. E o que é ser humano? Não seria justamente a capacidade de ter essa lacuna?! Uma vez preenchida, tornamo-nos desumanizados.

A subjetivação é um processo auto e heteroconstituinte que se dá durante a nossa existência, e então não podemos falar de um sujeito completamente constituído. A subjetividade não é pensada como um dado, um ser, mas como um "vir a ser". Nas nossas escolhas, nem tudo depende exclusivamente de nós porque a existência, como foi dito acima, tem duas faces contraditórias: o sujeito se constitui, ao mesmo tempo que é constituído. É pela adoção de uma perspectiva dialética que o sujeito pode escolher e dar conta da tensão entre o objetivo e o subjetivo, o consciente e o inconsciente e compreender o sentido da sua existência, inseparável da história que também o faz. O sujeito freudiano se constitui porque pode construir a sua história; todavia ele também é constituído pela História. A liberdade de cada pessoa se dá num regime de tensão entre a liberdade subjetiva e os obstáculos postos pelo momento histórico.

Além disso, para obtermos uma imagem sobre nós mesmos, é necessário que passemos pelo olhar do outro. O outro é indispensável para nossa existência. Dependemos do outro para ser. Ao mesmo tempo necessária, a presença do outro, elemento de alteridade na psicanálise, afeta o exercício da liberdade de cada sujeito porque, ao entrarmos em relação com o outro, nos defrontamos com outras liberdades. A intersubjetividade coloca em jogo a visão do outro como outro sujeito de desejo, como outro eu. Trata-se da dimensão problemática da liberdade em que cada sujeito tem que exercê-la diante da liberdade do outro - tarefa nada fácil.

As experiências interiorizadas, isto é, processadas na psique, subjetivadas, retornam ao mundo humano, significativo, como ações do sujeito, efeito de suas representações, complexo das escolhas e deliberações que perfazem a conduta humana, quer esse mundo seja favorável, quer seja adverso aos projetos subjetivos. Essa ação é, portanto, projeção dos desejos do sujeito representados em regime de possibilidades e de acasos que podem fazer com que muitos projetos se percam no caminho da sua realização, ou se tornem outros, ou até mesmo contrários ao que se pretendeu inicialmente. Os desejos correm o risco de serem desviados, pois a vida é uma grande inexatidão. Aristóteles considera a ética uma ciência da prática, imprecisa e inexata, que se dá na contingência, ou seja, a inexatidão da ética nasce das contingências que caracterizam o contexto das decisões humanas. Essas contingências incluem sexo, personalidade, contexto econômico, social e político, caráter pessoal etc. Metapsicologicamente falando, destino é a interação dialética entre acaso e determinismo; entre o objeto encontrado e a maneira pela qual ele foi significado e incorporado à psique.

Em suma, diferenciamos dois reinos da vida. Um deles é o da necessidade: não podemos deixar de fazer aquilo que fazemos senão perecemos, não consiste naquilo que desejamos ser ou fazer, está fora do universo do desejo; e o outro é o da liberdade: a vida é escolha! O desejo visa uma meta muito além da necessidade. O homem é marcado pelas relações de necessidade que são, porém, atravessadas por aquilo que poderia acontecer de outra maneira, ou seja, pelo acaso, pela contingência. E o acaso tem razões que desconhecemos, o acaso não está em nosso poder. Temos que nos habilitar para o encontro com o imprevisível. E para que nossas ações não fiquem totalmente à mercê do acaso precisamos mobilizar recursos, disposições, para que nossos desejos sejam minimamente realizados. Contamos aqui com a psicanálise para nos auxiliar.

O sujeito de desejo é um ser errante e trágico que tropeça numa existência com liberdade limitada: não pode governar a si mesmo plenamente, mas ao mesmo tempo não renuncia a ter um papel ativo. Para Maurice Blanchot (1987), a errância do sujeito é uma prática que desconhece seu ponto de chegada e que não abdica de sua força motora irredutível (ainda que por vezes desconhecida). Ao navegar em nossa existência trágica, é necessário incluir a perda de direção, a disposição para errar sem destino certo ou rota demarcada. Em sua existência trágica, o homem escolhe permanecer no jogo da vida, buscando cada vez mais jogar e apostar, mesmo sabendo que está diante de um jogo de sorte/azar e de erro.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido 21.05.2019
Aceito 29.06.2019

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