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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

A angústia impensável da liberdade

 

The unthinkable anguish of freedom

 

 

Alda R. D. de Oliveira

Psicanalista membro associado à Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Entre as inquietações humanas, a equação liberdade versus segurança desafia todas as relações travadas ao longo da vida. A capacidade de simbolização é solicitada para criar artes possíveis em socorro dos estados extremos, buscando o equilíbrio dinâmico sempre ameaçado por um e outro lado. Nesse malabarismo está situado este artigo, no qual a autora pretende cotejar as vidas de duas personagens que se fundem em uma só no território da alma e entrelaçar com as ideias de Winnicott, Bollas, Quinodoz e Roussillon. Busca na literatura de Kundera uma Tereza que ilumine a vida real de outra Teresa do consultório, no empenho de transformar seu fado em destino.

Palavras-chave: Liberdade. Destino. Angústia de separação. Simbolização.


SUMMARY

Among human concerns, the equation of freedom versus safety defies all lifelong relationships. The capacity of symbolization is required to create possible artifices in aid of extreme states, seeking for dynamic balance, which is always threatened on both sides. In this juggling abides this article, where the author intends to compare the lives of two characters that merge into one in the territory of the soul, intertwining with the ideas of Winnicott, Bollas, Quinodoz and Roussillon. It searches in the literature of Kundera, a Tereza that illuminates the real life of another Teresa in the office, in an effort to transform her fate into destiny.

Keywords: Freedom. Destiny. Separation anguish. Symbolization.


 

 

 

O que me disseste ontem

Desaninhou pássaros no meu peito...

Quando conheci Teresa, dois acontecimentos imediatos desencadearam em mim a sensação de estar presa. Primeiro, o magnetismo de seus imensos olhos escuros cravados nos meus associado à fala incessante; segundo, a necessidade imperiosa de se despedir de mim duas vezes - ao abrir a primeira porta e ao fechar a segunda porta, sendo que esta última os demais pacientes naturalmente abrem e fecham sozinhos. O olhar fixo e penetrante comunicava sua necessidade de estar bem colada e, por isso, a despedida precisava ser duas vezes. Estabelecemos ali um rito de separação que continha a angústia nesse instante derradeiro. Sem ainda saber por que, eu precisava estar atenta e ser delicada em especial nesse momento da sessão.

Nesse sentido, Quinodoz, em seu livro A solidão domesticada - A angústia de separação em psicanálise, apresenta um amplo e sensível trabalho sobre angústia de separação e a possibilidade de a solidão evoluir de hostil a domesticada com o auxílio de um tratamento analítico. Observa cada momento do desenvolvimento como uma separação e perda, vividas num misto de perseguição e tristeza em misturas singulares. A experiência de viver, das chegadas e partidas, é o que permite uma acomodação razoável dessa condição própria dos seres humanos, na medida em que um tecido simbólico faz malabarismos como interface entre os dois momentos.

Com Teresa, eu me empenhava em construir bases para viabilizar um maior contato e percebi que, justamente por ser muito sensível às emoções despertadas no juntar/separar, ela pretendia vir uma vez na semana. Durante as primeiras sessões houve sintonia e combinamos dois encontros semanais. Nessas condições, sentiu-se segura, conforme logo demonstrou. Através de sua fala, aos poucos, começou a jorrar uma dor imensa. Sentia-se abandonada num estado de dolorosa solidão, magoada e com ciúmes - que me geravam suspeita de serem delirantes -, ao sentir-se rejeitada pelo marido, acreditando que estava sendo traída. Minhas suspeitas deixavam um alerta no teste de realidade para ser acompanhado ao longo do tempo, aspecto que mais tarde vou esclarecer utilizando ideias de Roussillon (2013a; 2013b).

Teresa traz à lembrança outra Tereza, personagem de Kundera em A insustentável leveza do ser (1984). Entre outros personagens interessantes, Tereza vai aqui iluminar esse estado de equilíbrio precário entre o eu e o outro; permanente e sempre ameaçando não resistir. Ela instala-se na vida de Tomas à sua revelia, provocando nesse homem, aparentemente tão avesso à dependência, um questionamento: se conseguiria viver caso ela morresse. Vê nela uma criança que chegou a seus braços despertando sentimentos perturbadores, aos quais não consegue facilmente dar significado. Não sabe se deseja que ela fique ou vá embora. Encontram-se como dois lados de uma mesma moeda. Assim, a Teresa do consultório buscava um lugar/analista para, em princípio, ser acolhida (aprisionada/aprisionar?), e motivou-me a descobrir com ela qual seria a sua, a nossa liberdade possível. Teresa e Tereza se confundem na busca urgente de completude através do outro, no medo constante de serem abandonadas à própria sorte sem encontrar em si mesmas as condições necessárias para fazer frente às complexidades da vida.

Para dar sentido à Teresa do consultório e à Tereza de Kundera (1984), vale aqui recordar Winnicott (1945/2000) em seus escritos sobre "desenvolvimento emocional primitivo". Ele observa a necessidade vital do bebê em relação à mãe/ambiente, justificando sua possessividade a ponto de se tornar uma cruel desconsideração - não pode esperar, ela precisa estar ali e atender suas necessidades. No entanto, se encontrar nessa mãe/ambiente as qualidades e quantidades de que precisa, tem chance de amadurecer e alcançar a capacidade de consideração pelo outro. O relato de Teresa sobre seu relacionamento com o atual marido me fazia lembrar esse começo da vida dos bebês e também servia para nós duas sob esse ponto de vista. Ela pressionava para que o casal fizesse tudo junto; não tinha uma ideia clara a respeito de individualidade. Ele atendia em parte: não tinha vida social, lá fora dedicava-se somente à sua profissão. Porém era justamente daí que decorriam as queixas de Teresa, porque dentro de casa ele acabava fazendo o mesmo: dedicava-se muito ao trabalho. Imaginei-o escondido, defendendo-se da invasão; ideia que, aos poucos, fez sentido para ela. Resultou empobrecerem juntos ao longo do tempo. Nesse sentido, vou trazer mais tarde as reflexões da outra Tereza (Kundera, 1984).

No mundo interno, ainda segundo Winnicott em seu artigo "Libertad", a liberdade está associada a saúde e criatividade; saúde essa que depende da flexibilidade na organização das defesas durante a constituição da personalidade. Ele observa a escassez de liberdade surgindo como consequência de falta no ambiente ou talvez de uma falha hereditária. Esta última possibilidade, envolvendo o verdadeiro self - as potencialidades herdadas -, Bollas, em seu livro Forças do destino, considera que poderia ter sido ampliada por Winnicott. Para ele, "esse self-essência é a presença singular do ser que cada um de nós é; o idioma da nossa personalidade" (Bollas, 1992, p. 21). No entanto esse potencial necessita dos cuidados maternos para revelar-se e sofre influências dessa interpretação; no contato com a cultura humana vai se realizar ou reagir com defesas.

Teresa chegou ao segundo casamento já com um casal de filhos. Muito apegada a eles, estava guardando um medo ainda maior do que ser traída pelo atual marido: uma certeza paralisante de que a filha, se saísse sozinha, sofreria algum tipo de violência ou desapareceria. Alegando proteção, tornara-se sua acompanhante permanente. Esse medo foi assumido pela filha, aparentemente sem questionamento, e, penso eu, baniu qualquer desejo de liberdade que pudesse ter tido. Todo esse cuidado/prisão, desde a infância até a vida adulta - Teresa justificava a si mesma e a mim inúmeras vezes -, era realizado para evitar que a filha se sentisse abandonada. O tanto que necessitava deles, a densidade de seus sentimentos, a dependência quase absoluta eram, para Teresa, provas concretas e irrefutáveis de seu amor.

A necessidade concreta que Tereza (Kundera, 1984) tinha de sua presença revelava-se a Tomas principalmente na hora do sono. Ela o prendia com firmeza em alguma parte, fosse num dedo ou no calcanhar, exigindo astúcia de sua parte para soltar-se: precisava colocar algo em seu lugar para que segurasse como se fosse seu corpo.

Caminhando em direção ao passado, Teresa derramava emoções de sua infância ligadas às lembranças de episódios em que a mãe saía sem se despedir, sinalizando seu abandono em meio a vivências emocionais intensas num estado mental com precários recursos para dar conta daquele desaparecimento. Com isso eu dimensionava suas condições de elaborar um luto, mais precisamente lidar com o que faltou, com o que poderia ter sido e não foi. Estar colada era garantia de não perder o outro, que é sua prótese, e sobreviver. Contaram a ela que tinha crises quando a mãe saía. Os adultos reagiam achando graça e, consultado o médico da família, recebeu diagnóstico e tratamento clínico. Agora, enquanto revivia essa dor, podia pensar e falar sobre o sentimento de rejeição gerado pela falta de acolhimento materno. Pensa que suas crises poderiam ter mostrado à mãe a necessidade de sua presença, porém a tradução feita por ela foi outra. As consequências não param; acredita que esse mal-entendido entre elas ajudou a criar em si uma interpretação falsa de que não teria tantas condições de dedicar-se aos estudos por ser doente, sendo por isso estimulada ao casamento, garantindo sua subsistência e segurança. Nesse sentido,

se uma mãe impede o self verdadeiro de seu bebê de se desenvolver, prejudicando a dialética do self e do outro, o bebê terá uma capacidade psíquica diminuída, já que as representações psíquicas devem muito à liberdade de expressão, garantida pela mãe e pelo pai. (Bollas, 1992, p. 21)

 

Qual a liberdade possível?

Voam livres, senda infinita

Quando Teresa lembrava as falas de sua mãe designando seu jeito de ser ao invés de incentivar sua descoberta de si mesma, eu imaginava um oráculo. "Se fado surge das palavras dos deuses, destino é então um caminho pré-ordenado que o homem pode preencher" (Bollas, 1992, p. 47). Essa interessante distinção entre fado e destino é ilustrada pelos relatos de Teresa, nos quais ela se debatia com mágoa e raiva às profecias da mãe-oráculo: - é muito lenta, faz um balanço estranho quando se move, escolhe roupas que não combinam, não vai conseguir estudar. E a pequena Teresa foi se deixando afetar em intensidades diferentes a cada profecia, a cada momento. Para esse autor, a pessoa com sintomas está fadada; aspectos estranhos ao self verdadeiro organizaram-se e compõem algo falso, gerador de perturbações. Esse é o fado trazido para a análise e, junto com ele, um destino, um potencial de evolução do verdadeiro self.

Durante as sessões, as angústias intensas me colocavam num claustro insuportável. Tereza também chegava com sua pesada mala e se instalava na vida de Tomas (Kundera, 1984). Conheceram-se e passaram uma hora juntos, o suficiente para que ela fosse vê-lo em Praga dez dias depois e lá permanecesse uma semana. Naquele momento, Tomas perguntou-se: "Devo ou não propor que ela venha se instalar em Praga?", assustado com a responsabilidade. O narrador parece advertir: "Se convidá-la agora, ela virá oferecer-lhe toda a sua vida" (Kundera,1984, p. 12). As dúvidas de Tomas cotejavam peso e leveza - quanto mais pesado o fardo, mais próximo do chão, mais real e verdadeira a vida; no outro extremo, demasiada leveza até a ausência total de peso, torna o humano mais leve que o ar e desata um voo correndo o risco de afastar-se tanto a ponto de perder o significado. Enquanto ele debatia-se com suas dúvidas, ela, sem convite, chegou quinze dias depois.

Durante um tempo que considero longo, a compreensão que se fazia em mim a respeito dos sentimentos, possíveis fantasias etc., eu transmitia a Teresa no linguajar estabelecido entre nós, porém isso não desencadeava insights nela, não provocava um passo além. Limitava-se a repetir a cada encontro o mesmo discurso, deixando-me muitas vezes entorpecida, desejando o final da sessão, imaginando que poderia adormecer, hipnotizada. Nesse sentido, Roussillon escreve a respeito das formas primárias de simbolização, exemplificando o efeito de imobilização pela palavra: "Eu não conto a você sobre uma fantasia [...] é a minha maneira de falar que prende você" (Roussillon, 2013a, p. 115). Entre outros recursos, comecei a falar trazendo a realidade externa, interrompendo seu mantra com questionamentos objetivos. Assinalava, por exemplo, os casais desfrutando também de uma vida individual, ou o caminho natural em que os filhos saem de casa para trabalhar, têm amigos e constroem suas vidas independentes dos pais. Afinal, eu lembrava a ela, em parte havia feito isso. Nessa posição de oráculo, mais parecida com a mãe, consegui penetrar e me inserir no seu discurso. Parecia que assim ela conseguia me aproveitar, iniciava repetindo o que eu falava, logo acrescentando reflexões suas, verdadeiras novidades ali. Quando puxei para o chão, ela pode voar um pouco.

Segundo Bollas (1992), o paciente, por meio da transferência, consegue fazer uso do objeto analista, podendo desprender-se do fado. Ao colocar em movimento seu destino e caminhar com originalidade através dele, assume o lugar de artista de sua própria vida. A propósito, em sua juventude Teresa conseguia reproduzir no piano, só ouvindo, músicas que gostava. Isso, que para mim é um dom, para ela não significava nada, tão desligada de si mesma estava. Junto com a música, apareceu seu gosto pela dança e começou a praticar, a título de fazer uma atividade física. Roussillon (2013b) observa nesses casos a necessidade de refletirmos a respeito desse desconhecimento de si próprio, nos perguntando qual foi o espelho não encontrado, num paralelo feito com Narciso. A Tereza de Kundera (1984), também pouco olhada pela mãe, postava-se diante do espelho, "Era o desejo de não ser um corpo como outros corpos, mas de ver sobre a superfície de seu rosto a tripulação da alma surgir do ventre do navio" (1984, p. 53).

Ao alcançarmos maior harmonia e segurança no diálogo, fomos tecendo a cada sessão algum tipo de narrativa para dar continência às suas vivências de abandono, agora oscilando entre períodos mais leves e outros mais intensos; histórias/ containers para alojar as emoções de forma eficiente, mesmo provisoriamente.

Cada sessão iniciava com uma repetição ritmada e monótona das queixas envolvendo a desatenção do marido (mãe/ analista?): quanto mais ela o solicitava, mais ele se fechava. E o que acontecia ali nos fazia andar em círculos: para mim, nesses momentos, tudo resultava num sonífero que era injetado direto em minhas veias. Mais tarde tomei contato com os escritos de Roussillon (2013a) discriminando as formas de simbolização. Para esse autor, o aparelho psíquico é feito para representar e vai fazer isso, porém existem formas diferentes - num espectro de mais pesado a mais leve, acrescento aqui, inspirada em Teresa e na personagem de Kundera (1984). Numa forma primária, podemos representar sem saber - tomar uma representação por percepção -, um pouco como Teresa fazia: sentia ciúmes e imaginava (sem saber que era imaginação) cenas em que o marido a traía. Ficava evidente para mim que isso não cabia na realidade em que eles viviam, por isso levantara em mim a suspeita de algo delirante, conforme já escrevi. De outra forma, secundária, representamos sabendo que é uma representação, uma imaginação, um pensamento nosso. Nesse último caso, há uma apropriação subjetiva da capacidade de simbolização e esta pode ser mais bem utilizada para o crescimento - podemos voar numa senda infinita.

Numa dessas sessões em que Teresa estava tomada pela dor da rejeição, e eu já começava a entorpecer, chamei com firmeza sua atenção para nós duas: comigo não estava absolutamente sozinha. Salientei o quanto a cuidávamos ali dentro, com o intuito de ela lembrar nosso trabalho nos momentos de tortura em casa com sua solidão.

Refletindo sobre essa sessão e sobre o tratamento numa longa retrospectiva, eu me percebi esperando-a apropriar-se de mim simbolicamente mais do que conseguira fazer, e havia me demorado demais nessa expectativa. Acredito que ficamos presas num impasse pela compulsão à repetição. As vivências emocionais com simbolização precária estavam lá dentro estagnadas, gerando dor intensa quando mobilizadas no relacionamento. Estávamos presas no paradoxo em que para elaborar o luto pela perda do objeto é necessário simbolização e para desenvolver a capacidade de simbolização tem de fazer o luto (Roussillon, 2013b). Essa capacidade não estava desenvolvida o suficiente - eu imaginava e concluía -, contudo, ainda sem atentar para a forma de simbolização na qual essa vivência de separação estava codificada. E assim eu havia esperado aquele passo além que não acontecia, com uma paciência impaciente.

Quando injetei presença e ela também acordou para mim, sua reação trouxe a certeza de que minha existência precisava ser mais contundente, mais pesada, mais próxima do chão. Encontro ainda em Roussillon a hipótese de que para sair desse paradoxo precisamos conceber uma forma de simbolização que se produz na presença do objeto, "uma modalidade de simbolização que simboliza o modo de presença do objeto" (Roussillon, 2013b, p. 8). Nesse sentido, eu estive parecida com a mãe, não atendia o suficiente sua necessidade de presença, embora estivesse ali muito dedicada, com as melhores intenções. Sua demanda me esgotava e eu diminuía a qualidade dessa presença; ia desaparecendo e confirmando sua agonia. Nas seguintes sessões percebi seu olhar atenuado, senti mais liberdade, mais frouxas as maneias do fado.

 

Liberdade/segurança

Não tenha medo não

corpo sem asas agarra o chão

Se demasiada leveza pode fazer desprender e voar tão longe a ponto de perder o significado, colar em excesso pode ser tão real que basta - dispensa a criação de qualquer história. Sem interesse pelas expressões da cultura, Teresa tinha certeza, por exemplo, de que não conseguiria ler. Nunca lia, ou frequentava uma exposição, um teatro, ou cinema. Bloqueou todas as pontes. Isso era intrigante, mas dava sentido, explicava essa vida enclausurada. Tinha um interesse, nos filmes de suspense, mas raramente os via. Eles poderiam pôr em movimento sua capacidade de simbolização e expressar suas fantasias da angústia de separação e outras mais primitivas?

Na Primavera de Praga em 1968, Tereza (Kundera, 1984) viveu sua primavera identificada com a maioria do povo entusiasmado com a possibilidade de insuflar liberdade no regime comunista da época, buscando o direito de expressar sua cultura sob todas as formas. Ela estava diferente, com sua câmera fotográfica arriscava-se nas ruas capturando cenas dos confrontos travados entre os soldados russos e a população local; havia se conectado com algo genuíno em si. Haveria dado um passo em seu destino mostrando ao mundo através dessas cenas a tragédia da vida sem liberdade?

Sob regime semelhante, muito lentamente nos aproximávamos do pânico impeditivo a qualquer separação. Ao longo de sua história, essa família parecia haver construído, em comum acordo, um sistema para garantir união e banir qualquer ameaça de transformação no ninho familiar, negando as consequências terríveis desse pacto, no qual cada um entregava sua liberdade para aplacar o medo.

A segurança se transformava em prisão e a liberdade sinalizava abandono. Quando se apropriou mais da ligação comigo, de certa forma começando a romper o pacto e podendo perceber a tragédia, Teresa sentiu-se culpada, desejando muito um tratamento para a filha. Porém seu sentimento de culpa, ainda com forte matiz persecutória, gerava mensagens acusatórias, deixando a filha aterrorizada e agressiva.

Tomas, que havia apoiado o regime em seus primórdios, quando este firmou-se como autoritarismo percebeu as consequências terríveis. Para ele, a questão não se restringia somente a culpabilizar ou inocentar os responsáveis com base no terem ou não consciência do que faziam; pensava além, interrogava se poderiam ser considerados inocentes apenas porque não sabiam. Inspirado em Édipo, que furou seus olhos em punição às consequências de sua ignorância, Tomas concluía que justamente esse não saber, esse acreditar, era o que não podia ser reparado! O que havia começado com "entusiastas convencidos de terem descoberto o único caminho para o paraíso" resultou em "que o paraíso não existia, e que, portanto, os entusiastas eram assassinos" (Kundera, 1984, p. 178).

E agora? O que fazer? Como levar a vida adiante com fatos que não podem ser reparados? Pessoas já foram assassinadas, vidas já foram alteradas para sempre. Sobra dor, arrependimento e, sobretudo, tentar não repetir? Ou prevalece lá dentro ainda o regime do terror, agora voltado contra si mesmo? Nesse caso, qual a chance de seguir sem aliviar-se furando os próprios olhos?

Imaginando um grande percurso a fazer na hipótese de alcançar a possibilidade de elaboração do luto e consequente desenvolvimento e apropriação da capacidade de representação, eu me preparava para o vai e vem da história, trajeto necessário para transformar esse pesado e perigoso fardo em tecido simbólico. Estávamos ainda longe de experimentar a dor depressiva com responsabilidade e amor para curar suas feridas, mas percebia algum vestígio insinuando-se no horizonte. Teresa estudou precariamente, acreditando não ser inteligente o suficiente. Mais tarde refez exames e nada orgânico justificava suas dificuldades nos estudos. Nesse momento cursou a universidade. Embora tenha optado por não exercer a profissão nem desenvolver interesse por outras atividades além de cuidar da família até o momento, ter conseguido estudar a esse nível trazia esperanças de que estivesse destinada a ir além.

Nesse clima, aos poucos fui criando falas continentes das quais vem se apropriando e usando inclusive para transmitir também à filha a imagem de um mundo dentro e fora cujos riscos valem a pena serem enfrentados, afinal asas são somente aquelas da imaginação.

Quando a Tchecoslováquia é retomada pelos russos, grande parte da população sai do país, inclusive Tereza e Tomas, especificamente por insistência dela. Estava empolgada com seu crescimento pessoal e profissional naquelas circunstâncias. Após uns sete meses na Suíça, sua liberdade não mais se sustenta nesse novo contexto social; em terra estrangeira sente-se mais perdida e aumenta sua dependência de Tomas, que já estava retomando seu hábito de relacionar-se com várias mulheres. Ela então retorna ao apartamento em Praga, lugar onde sentia-se segura (Kundera,1984).

Separações são mesmo complicadas. Permanecer também. A decisão de partir não ocupa sozinha o lugar no podium sem que a vontade de ficar se insinue de alguma forma. A liberdade relativa e singular alcançada em cada ser está sob ameaça constante nos diferentes âmbitos de sua construção. Será sempre desejada? Quando nos parece que não é desejada, que é inclusive temida, será essa toda a verdade? Como é para um adulto estar prisioneiro? De si mesmo, do outro dentro de si mesmo, do outro ali fora?

Tomas também se faz perguntas enquanto volta a Praga atrás de Tereza; não consegue permanecer longe dela, porém logo poderá estar sufocado com o peso de seu amor - essa dualidade sem fim. Quando, finalmente, Tereza e Tomas estão juntos e sozinhos, vivendo no campo sem contato com familiares ou amigos (por conta de ter sido a construção de vida possível desde que regressaram à Tchecoslováquia, dominada pelo regime comunista), ela reflete a respeito de sua forma de amar. Afinal, ela conclui, havia um outro lado nos amores nutridos um pelo outro. Enquanto acreditava amar mais a Tomas do que este a ela, percebeu tê-lo arrastado ao fim do caminho quando retornou da Suíça e, depois, quando quis sair de Praga, atraindo-o para ela de forma a implicar a perda de seu trabalho e de seu lugar numa sociedade. Por sua vez, Tomas, o qual julgava não amá-la o bastante, havia aberto mão de tudo para estar a seu lado. Com remorso, percebe onde precisou chegar para ter uma prova de seu amor. Afinal quem é o forte e quem é o fraco? Quem é a vítima e quem é o algoz? Ela tem um sonho em que Tomas se transforma numa lebre aninhada em seus braços. Sucumbiram ao fado? Tereza compara sua atitude com a das fadas que atraem os camponeses aos pântanos para que sejam tragados (Kundera,1984).

Imagino algum sucesso com Teresa em função do caminho já percorrido. Ela surge como uma ilha se protegendo e naufragando num mundo atravessado e devassado pela comunicação via internet. Sinto quão grande é o desafio de ampliar ligações entre ilha e continente dispondo de pouca disposição para simbolização, justamente porque essa capacidade preciosa - qual barco traiçoeiro, qual ponte suspeita - conspira sempre contra um único e eterno amor. No entanto, em sua história, na qual separação está equacionada com rejeição/morte e solucionada com grudar/vida, Teresa já desaninhou uma ideia faceira de que nascemos quando nos separamos.

P.S.: Enquanto escrevia este trabalho, recebi um encanto de livro; muitos desenhos e poucas palavras, para crianças grandes, simples como uma bola e complexo como os seres humanos. Desenhando e escrevendo A parte que falta, de Shel Silverstein, conta a história de um ser redondo no qual falta um pedaço e, por isso, rola no mundo com alguns solavancos à procura da parte que falta. Porém, durante essa busca, vai relacionando-se com tudo e todos ao redor, divertindo-se e adquirindo sabedoria. Finalmente, após muitas roladas e rolos, encontra seu pedaço de encaixe perfeito. Sente-se realizado, até perceber que unidos fecharam-se para o mundo; rolando tão rápido em sua completude, não desfrutava mais das borboletas e besouros do caminho. Preferiu então depositar delicadamente o pedaço no chão e afastar-se, rolando devagar, até recomeçar sua jornada como havia sido antes, travando contato com tudo e todos.

 

REFERÊNCIAS

Bollas, C. (1992). Forças do destino. Psicanálise e idioma humano. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Kundera, M. (1984). A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Quinodoz, J.-M. (1993). A solidão domesticada - A angústia de separação em psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Roussillon, R. (2013a). Teoria da simbolização: a simbolização primária. In L. C. Figueiredo, B. B. Savietto & O. Souza (Orgs.). Elasticidade e limite na clínica contemporânea (B. B. Savietto, trad., pp.107-122). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

______. (2013b). Simbolizaciones primarias y secundarias. Recuperado em 2019, de Associación Psicoanalítica del Uruguay: www.apuruguay.org/sites/default/files/roussillon-simbolizaciones-primaria-y-secundarias-trad-elena-errandonea-pdf.         [ Links ]

Silverstein, S. (2018). A parte que falta. São Paulo: Companhia das Letrinhas.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1985). Libertad. Revista de Psicoanálisis, 42(5),1171-1179.         [ Links ]

______. (2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In Da pediatria à psicanálise. Obras escolhidas (pp. 218-232). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1945).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ALDA R. D. DE OLIVEIRA
Rua Professor Langendonck, 57/308
90630-060 - Porto Alegre-rs
tel.: 51 3330.9646
aldaoliv55@gmail.com

Recebido 29.03.2019
Aceito 06.04.2019

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