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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Entre a literatura e a psicanálise: considerações sobre a "escuta" da ficção1

 

Between literature and a psychoanalysis: considerations on the "listening" of fiction

 

 

Flávia Albergaria Raveli

Historiadora e psicanalista. Graduada e mestre em história pela Universidade de São Paulo (USP), com ampla experiência como docente universitária de história. Doutora em psicologia pela USP. Atende em consultório particular e leciona em curso de formação de psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre minha experiência de leitura e interpretação da obra do escritor Amós Oz De amor e trevas, focalizando o processo de conversão de leitora em intérprete da obra.

Palavras-chave: Alteridade. Interpretação. Literatura. Memória. Testemunho.


SUMMARY

The aim of this paper is to reflect on my experience of reading/interpretation from my reading of the work of writer Amós Oz A Tale Of Love And Darkness, focusing on the process of converting the reader to the interpreter of the work.

Keywords: Alterity. Interpretation. Literature. Memory. Testimony


 

 

Trata-se, aqui, de explicitar aspectos da minha experiência como intérprete do livro de Amós Oz, ou, para ser mais específica, daquilo que consistiu e resultou do processo de conversão de leitora a intérprete da obra.

Creio que o próprio texto, embora constitu a uma materialidade própria, não existe sozinho, independentemente das relações que se estabelecem entre essa representação e o leitor/intérprete. Obra e intérprete, texto e leitor engendram sentidos reciprocamente. O rastro do inconsciente do escritor, presente de forma subliminar, ecoa e se encontra com outros rastros do indizível no trabalho de produção de significado: leitor, sua memória, a cultura na qual o texto está inserido. Nessa relação e por meio dela, produz-se um outro texto ou, de outra forma, este adquire sentidos possíveis, tão variados quantos forem os leitores e as relações construídas.

Desde essa perspectiva, propus uma articulação entre o estatuto do romance de Amós Oz De amor e trevas e o elemento traumático identificado por mim nessa narrativa.

A construção de sentido - num texto, por exemplo - se dá sempre e necessariamente no a posteriori, de onde se pode afirmar que a escrita opera, sempre, ou quase sempre, como borda para o irrepresentável da experiência.

O alhures de cada texto é o que escapa a esse e, ao mesmo tempo, o constitui como possibilidade, potência e/ou abertura para um sentido a ser construído na relação com o leitor, o intérprete. No trabalho de interpretação de uma obra literária, cuida-se do encontro de duas subjetividades, ou seja, do que pode ser produzido, como sentido, a partir do que permanece subliminar na materialidade do texto e que se faz presente em suas "brechas". Estas não são uma "sobra" ou algum elemento aquém ou além do texto. Ao contrário, fazem parte dele.

A questão que se coloca é como "escutar" o próprio texto quando o que se propõe é a construção de um sentido para uma experiência de leitura. É importante sublinhar que toda experiência implica em afetações inapreensíveis ao sentido, ou seja, toda experiência comporta, em si, o indizível.

Isto não é um detalhe quando se fala desde a psicanálise. Ao contrário, trata-se de um elemento central no processo de constituição de uma interpretação à medida que remete àquilo que escapa à representação, mas a determina. Ocupo-me, portanto, aqui das bordas da materialidade do texto, no "espaço" entre o texto e o que sobra dele. Atenta, agora, ao leitor.

Trata-se da psicanálise como lugar de investigação, ainda que esta opere de modo "discreto", afastando-se do risco de uma "psicanálise aplicada".

 

Os silêncios na/da interpretação

A psicanálise operou como lugar de escuta silenciosa do texto e da experiência de interpretação construída. Esse procedimento de leitura se refere a um trabalho de estranhamento e distanciamento com a obra. Desse modo, configurou-se uma articulação possível e interessante, para mim, entre psicanálise e literatura.

Ao longo desse desenvolvimento, foi preciso definir o lugar e a dimensão da psicanálise em sua relação com a literatura. Eu optei por atribuir - ou melhor, construir - um lugar "silencioso" para a psicanálise, enfatizando sua função de borda e contenção para o trabalho de leitura/interpretação da obra de Amós Oz e, mais especificamente, para aquilo que eu defini como os "indícios do traumático" presentes no livro em questão.

Nesse sentido, meu trabalho oferece as pistas, os rastros que a discussão conceitual acerca do traumático deixou na superfície da interpretação da obra de Amós Oz, evitando que esse dado ocupasse o lugar central do trabalho, cuidando para que a literatura permanecesse no lugar de protagonismo e não fosse reduzida à condição de ilustração de algum dado metapsicológico. Dito de outro modo, minha leitura e interpretação conduziram o trabalho para que o campo conceitual ficasse à sombra da literatura, desdobrando-se dela como possibilidade e sugestão de leitura.

Num dado momento, ocorreu-me a noção de "lembrança encobridora" a propósito de outros traumas que teriam operado nesse sentido em relação à experiência traumática central do romance de Amós Oz, a saber, o suicídio da mãe do escritor. Eu não queria que a psicanálise funcionasse como "lembrança encobridora" para o texto literário e para a interpretação da experiência de leitura. À semelhança do que ocorre numa análise, desejava instituir um nome próprio para minha interpretação, cuidando para que, do objeto de pesquisa - a ficção de Amós Oz, em última análise -, se desdobrasse um sentido.

Creio que minha leitura discriminou bem os diferentes traumas e identificou os elementos ou indícios traumáticos próprios do suicídio da mãe do autor no livro De amor e trevas. Entendo agora, no entanto, que a noção de lembrança encobridora ocupou um lugar importante - senão central - em meu trabalho. De fato, maior do que eu pude reconhecer por ocasião da sua conclusão. Tratando-se de uma oba de elaboração psíquica, demandou outro tempo de elaboração, maior do que o estipulado para a tese de doutorado.

Penso que, apesar de o romance ter, de fato, comparecido como foco do trabalho e ter funcionado como borda para aquilo que não se reduz à representabilidade no texto, em minha experiência como intérprete, ele também operou como lembrança encobridora para minha relação transferencial com a psicanálise e o lugar que esta ocuparia no doutorado.

Dito de outro modo, e para ser mais explícita, acredito que a literatura exerceu uma borda e contenção para que eu pudesse lidar com a psicanálise e com a condição de intérprete psicanalítico que eu precisava instituir para a consecução do trabalho. E que, inclusive, só pode ser instituída através da realização do mesmo.

Assim, creio que o texto literário, com o qual tive uma transferência tão intensa e importante, desempenhou uma função de suporte para minha transferência com a psicanálise. Igualmente intensa e transformadora, sobretudo no que dizia respeito à minha autorização como intérprete psicanalítico.

Tratou-se de uma relação "de mão dupla". A psicanálise operou como borda para o irrepresentável do traumático - do livro e da experiência de leitura - mas, inversa e reciprocamente, o texto de Amós Oz, que pude habitar à vontade e com toda a intensidade dessa relação transferencial, suportou minha relação com a psicanálise, o que resultou na minha autorização como autora nessa área.

Ao mesmo tempo que o processo de construção de sentido testemunhou minha experiência como intérprete, ele apontou para aquilo que não pôde ser elaborado, identificando as brechas do meu texto, os rastros dessa experiência. Aquilo que eu apenas intuía.

A literatura de Amós Oz atuou como apoio para aquilo que, de minha condição de intérprete, não pode ser elaborado em meu texto, mas deixou marcas nele.

A narrativa propõe um trânsito entre a memória traumática irrepresentável e o tempo presente. Funda-se, desta forma, outra temporalidade nas cenas que reeditam algo da "primeira" - o vestígio da díade narcísica, o sofrimento causado pelo suicídio materno As perguntas sem resposta atravessam a obra de Amós Oz costurando seus fios de forma intertextual. [...] Como pistas que propõem novos excursos e engendram novas narrativas. (Raveli, 2013, p. 61)

 

REFERÊNCIAS

Oz, A. (2005). De amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 2002).         [ Links ]

Raveli, F. A. (2013). Indícios do traumático no romance De amor e trevas: um exercício de leitura. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
FLÁVIA ALBERGARIA RAVELI
Rua Caio Prado, 340/21c
01303-000 - São Paulo-SP
tel.:11 2528.4139
flavinharaveli@gmail.com

Recebido 14.02.2019
Aceito 08.06.2019

 

 

1 Desdobramento da tese de doutorado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).

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