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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTALIBERDADE, DESTINO

 

"Para que serve um filho desses?" Breve leitura de Pretérito imperfeito, de Bernardo Kucinski

 

"What is a son like this for?" A brief reading of Pretérito imperfeito, by Bernardo Kucinski

 

 

Edinael Sanches Rocha

Psicólogo judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), psicanalista, doutor em letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma leitura analítico-interpretativa do romance Pretérito imperfeito, de Bernardo Kucinski, levando-se em conta aspectos formais da obra, sobretudo a alternância da perspectiva narrativa, atrelados a aspectos psicanalíticos concernentes ao conteúdo do livro: a adoção e a dependência química.

Palavras-chave: Bernardo Kucinski. Adoção. Psicanálise.


SUMMARY

This article proposes an analytical-interpretive reading of Bernardo Kucinski's novel Pretérito Imperfeito. The formal aspects of the work are taken into consideration, mainly the alternating point of view, tied to psychoanalytic aspects concerning the content of the book: adoption and drug addiction.

Keywords: Bernardo Kucinski. Adoption. Psychoanalysis.


 

 

O romance de Bernardo Kucinski Pretérito imperfeito, publicado em 2017, é escrito em forma de um relato de experiência. No caso, refere-se à adoção de uma criança no Brasil no fim da década de 1970. O casal sem filhos vê na adoção a possibilidade de tê-los. Narrado a partir da perspectiva do pai, com algumas inserções de outros olhares - como o da mãe, por exemplo -, o livro descreve o processo de adoção, os primeiros momentos do casal com a criança, as dificuldades de saúde e de comportamento do menino, até desembocar no grave envolvimento dele com as drogas. O livro tem início com o rompimento do pai com o filho, por meio de uma carta, após incontáveis tentativas de ajuda e reconciliação, entremeadas por recaídas e exposição a situações-limite. O fim aponta para uma possível melhora, numa aparentemente tênue estabilização do rapaz, já com mais de 30 anos.

A apreciação do livro que se faz aqui leva em conta minha dupla formação. Graduado em psicologia, com formação em psicanálise, atuo há doze anos na Vara de Infância e Juventude da capital paulista. Paralelamente, fiz mestrado e doutorado em literatura brasileira. Ou seja, trata-se de ler o romance considerando seus aspectos formais, porém privilegiando a temática da infância e juventude, sobretudo da adoção e da drogadição. O intuito não é fazer uma análise exaustiva do romance, mas refletir sobre alguns aspectos-chave da obra para contribuir para o debate de ideias suscitado pela narrativa.

Os personagens não são nomeados, apenas os amigos e alguns profissionais que atendem a família têm seus nomes registrados. Ao mesmo tempo que se compõe uma experiência específica (daqueles pais com uma criança), a não nomeação dos envolvidos pode facilitar a generalização da experiência, como a dizer que os nomes não são tão importantes e poderiam representar o vivido de diversas pessoas, de "qualquer um". No plano mais geral, é uma narrativa que pode ser lida como uma entre tantas possíveis e que faz pensar justamente na forma como eram feitas as adoções no Brasil.

Adentrando no texto propriamente dito, começo pelo mais evidente: o narrador. A escolha da perspectiva paterna certamente não é fruto do acaso, a começar pelo fato de que o filho é do sexo masculino. De saída há, portanto, a questão da identificação. O pai que projeta no filho do mesmo sexo expectativas, à medida que o vê como continuação narcísica de si mesmo e, a posteriori, se colocará no quadro edípico do menino, tendo de lidar com as ambiguidades afetivas típicas da relação pai e filho.

O pai deixa claro que só adotaram a criança porque não conseguiram ter um filho biológico. À "incapacidade de conceber"1 (p. 29) vem se somar ao que o narrador chama de "reposição de afetos", "compensação" (p. 30) pelas sucessivas perdas dos anos de chumbo da ditadura militar, que causara a morte de amigos e familiares. O parágrafo no qual o narrador expõe tais argumentos começa com a menção a um "luto", ligado justamente às perdas mencionadas. A decisão pela adoção nasce nesse contexto, de um "vago desejo de completude" (p. 19), sem que o casal sequer hesite ou pense melhor a respeito de como se efetivaria esse desejo.

Nota-se aí o peso ou a expectativa sobre o que esse filho deveria trazer ao casal. Enfatizam-se aspectos negativos que a criança deveria suprir, compensar, tamponar. Nunca é demais lembrar: sobre esse tema, a motivação para a adoção, o narrador fala pelo casal. Como bem lembra o psicanalista Nazir Hamad, "o casal não é uma pessoa" (2002, p. 46). Por que, justamente aqui, o narrador não dá voz à esposa?

Quanto ao momento da chegada da criança, chama a atenção a forma como acontece a "adoção à brasileira"2, anterior à promulgação do Estatuto da Crianca e do Adolescente (eca).

O ano é 1979. O pai está em Nova York, eufórico com o resultado de seu trabalho como documentarista e com as mudanças no cenário político mundial. Ali conhece outro cineasta, da mesma idade que ele, por quem nutre grande admiração e que se tornará seu amigo e colaborador. De origem drusa, Abou lembra o avô do protagonista. O elo entre ambos faz lembrar o de irmãos. Embora não tenham laços sanguíneos, a origem que os une à região do Oriente Médio, a mesma profissão e projetos garantem um forte laço que se estenderá por todo o livro.

Em meio a essa efervescência, num tom de euforia pela possibilidade de engatar um projeto no outro, com um horizonte pleno de projetos profissionais a se realizarem, "esse era o meu programa. Quinze dias fora do Brasil" (p. 15), vem a notícia de um bebê, por meio de um telefonema de sua mulher:

surgiu um bebê, o que você acha? Penso: logo agora! Ela diz: tenho que decidir hoje. Sinto pelo fervor da voz que ela quer, que telefonou para ganhar coragem. Pergunto: menino ou menina? Menino, gorduchinho. Deduzo que já viu o bebê, já se engraçou, já o trouxe ao regaço. Digo que sim, tudo bem. (p. 15)

Um detalhe que pode parecer preciosismo: o diálogo acima destacado acontece no meio de um parágrafo, como que a interromper os planos do futuro pai. O autor poderia ter evidenciado o telefonema, abrindo um parágrafo para esse assunto novo, razão de ser da história. Preferiu, no entanto, deixá-lo assim, como algo que se interpõe à empolgação do cineasta para dar-lhe a notícia de que seria pai. É esse o sentido que tem, em certa medida, a adoção para esse personagem: uma mudança súbita de planos, desejada pelo casal, mas que surge num momento inoportuno, "logo agora!". No fim desse capítulo, após descrever sua rotina na Nicarágua, onde começara a filmar, ele conclui: "Esqueci completamente que acabara de me tornar pai, que adotara um bebê" (p. 16).

A entrada em cena da criança, ou essa "cena primária", é por demais marcante e vai dando ao leitor elementos para compreender o desenrolar da história. Sucintamente, concerne a marcar a implicação do pai com seu desejo. Ou melhor, caberia perguntar: qual é mesmo esse desejo? De que ele se compõe?

Há que se lembrar, também, da relação dessa cena com o todo maior, o contexto que possibilita tal fato. Vale recuperar, por isso, a fala da mulher ao telefone: "surgiu um bebê". E os maiores detalhes só vêm no fim do romance:

um médico amigo escreveu um atestado de parto em casa. Com esse papel fraudulento, obtivemos seu registro de nascimento como filho consanguíneo, suas matrículas escolares e sua caderneta de vacinação. Tudo falso, por vício de origem. (p. 137)

Ou, como anota o narrador em uma passagem um pouco anterior, ao falar das "imposturas" do casal:

A começar pela adoção à brasileira, sem passar por um juiz de família. Sempre lhe dissemos que não sabíamos quem eram seus pais biológicos, o que era e ainda é verdadeiro. A mulher que nos trouxe o bebê disse que não sabia. Quem era essa mulher e como a conhecemos, nunca lhe dissemos claramente. Nunca nos ocorreu que tivesse importância, e, no passar do tempo, tudo se esqueceu (p. 136).

Tudo isso ajuda a entender alguns aspectos dessa modalidade de adoção. No caso do romance, é notória a conotação de falsidade, fraude, obscuridade. Ademais, o narrador reconhece que ele e a esposa nada sabiam a respeito da adoção e, quando foram buscar informações sobre o assunto, já era tarde.

Após contar eventos da primeira infância, aparentemente felizes, o relato do envolvimento do filho com as drogas toma grande parte do livro. Obviamente, indagar sobre as razões que teriam levado o garoto a procurar refúgio nas drogas conduziria o leitor a um mar de suposições. Sem pretender uma exposição extensa sobre o assunto, uma breve menção a algumas formulações psicanalíticas pode iluminar a questão representada no livro.

Joel Birman retoma da teoria freudiana os conceitos de eu ideal e ideal de eu. Considerando que o eu não é um dado biológico do desenvolvimento humano, mas uma instância psíquica que se constitui graças ao investimento libidinal do outro, o eu ideal se caracteriza como um primeiro momento, ou etapa. Nesse caso, o sujeito tem a si mesmo como modelo, vivenciando um estágio de autossuficiência. Quanto ao ideal de eu, "o sujeito não é seu próprio ideal, mas algo que o transcende e que ele pretende atingir" (2007, p. 214).

Se no eu ideal a relação é da criança consigo mesma, sendo a imagem dela refletida no espelho algo emblemático, no ideal de eu a relação é triangular, marcada pela presença paterna em seu processo de subjetivação. Para Birman, que retoma as elaborações de Jacques Lacan:

o ideal de eu é marcado pelo impacto da figura paterna no psiquismo infantil. A incidência desta figura possibilitaria ao infante a saída para os impasses colocados pela relação materna e a consequente abertura para uma posição desejante. (2007, p. 214)

O autor trata, portanto, da renúncia ao amor incestuoso dirigido à mãe, devido à interdição apresentada pelo pai, representante da lei. Mas se por diversas razões não se chega a essa resolução apontada por Birman, em vez de lidar com um pai simbólico, resultante do processo de castração, o sujeito tem de se haver com um pai ideal, onipotente. Segundo esse autor, seria estabelecida uma oscilação entre o "triunfo onipotente" em relação à figura paterna e a fusão com o corpo materno, de um lado, e a "depressão, ameaça de morte, que indica a ausência da infusão materna". Nessa oscilação, "a droga é um fetiche, objeto parcial cuja incorporação permite a ilusão do restabelecimento da plenitude do eu ideal do infante e da onipotência fálica da figura materna" (Birman, 2007, pp. 214-215).

Significativo é o desdobramento do raciocínio do psicanalista carioca, pois a figura paterna, que anunciaria a possibilidade de castração, é recusada por esses indivíduos. Seriam "figuras completamente esvaziadas em seu poder simbólico". Ao mesmo tempo, "apesar de recusada, a figura paterna é insistentemente procurada", pois "a repetição da relação incestuosa com a figura materna, na impossibilidade do desmame e da castração simbólica, articula uma situação psíquica que conduz o sujeito à perseguição, à busca do pai" (Birman, 2007, p. 215).

Obviamente que não se trata de aplicar a explicação psicanalítica ao romance, entendendo esse como um caso clínico. Contudo é relevante a reflexão que relaciona o sujeito com suas figuras parentais para entender o fenômeno das toxicomanias, para contrabalançar com as suspeitas lançadas ao livro pelo narrador quanto à possível preponderância dos fatores genético-hereditários. Na atuação do pai enquanto figura significativa ou em sua busca de sentido para a história do envolvimento do filho com as drogas, ele mesmo, pai, indica um caminho, embora não o trilhe.

Entre as pistas deixadas pelo narrador, uma parece digna de nota, em suas palavras: "Como inscrevê-lo numa genealogia?" (p. 18). A pergunta vem ladeada de outras, todas relativas aos riscos da adoção e às possíveis dificuldades que o casal encontraria. Destaca-se essa pela relevância do fator étnico na problematização da adoção.

Logo na carta em que anuncia o rompimento, primeiro capítulo do romance, o pai menciona "nossos antepassados", "nossa família", já desligando o filho de sua linhagem, uma vez que, para o pai, o comportamento do filho contrariava tudo o que ele, pai, considerava distintivo de seu histórico familiar. Completa seu raciocínio afirmando que, antes mesmo de desligar o filho de sua linhagem, o próprio filho já o fizera: "há anos te excluíste de nossa família" (p. 11), frisando as indignidades e diversas atitudes torpes praticadas pelo rapaz.

À questão moral alia-se, como já assinalado acima, a questão étnica. Uma "atendente antipática" examina a criança, ainda bebê, e dá o veredito: "vai negrejar" (p. 24), fazendo cara de nojo. Ante a manifestação do preconceito, o pai registra, mais adiante, que teria "preferido que se parecesse um pouco comigo ou com minha mulher". Menciona, então, as ascendências do casal - ele, neto de libaneses, ela, filha de judeus, loira, olhos azuis - e comenta que, mais tarde, chegaram a se orgulhar do que ele chama de "nossa gritante incongruência" (p. 25), referindo-se ao aspecto visual formado pela tríade.

Nesse ponto, um breve parêntese merece ser feito. A escolha da ascendência dos pais, no romance, certamente mereceria um estudo à parte. Poderia ser qualquer grupo, ainda mais quando se pensa na massa de imigrantes recebida pelo Brasil. Mas, não por acaso, são grupos étnicos oriundos da região do Oriente Médio, com conflitos e tensões políticas bastante conhecidos. O casamento de uma judia com um descendente de libanês não costuma ser a regra entre as uniões nesses grupos. Além disso, o pai, na companhia do amigo Abou, dedica-se à feitura de um filme sobre a diáspora palestina, intitulado Palestina tropical. A saída forçada de um povo - judeu ou palestino - da terra natal e a busca de um novo território para se estabelecer guardam relação com a história do filho. Forçado por circunstâncias desconhecidas a deixar a filiação biológica, é levado por terceiros e acolhido por pais adotivos. Não por acaso o rapaz sairá do Brasil, forçado por seu problema com as drogas, para buscar no estrangeiro - Israel - o tratamento que não encontra aqui. Ao mesmo tempo, o orgulho que o pai tem da aparência da família, mencionado acima, soa como uma distinção político-ideológica de alguém que logra algo valioso ante o contexto social em que vive, não necessariamente priorizando o suporte afetivo que garantisse o acolhimento e a inscrição de uma criança negra numa genealogia.

Os episódios de racismo contra o filho voltam a aparecer na narrativa. O narrador se pergunta se esse fato não contribuiu para o envolvimento do garoto com as drogas. Simultaneamente, admite: "tendo a achar que pode ter começado ainda no útero da mãe biológica" (p. 39).

Mas o destaque, dado pelo pai, em um parágrafo próprio, que fecha o décimo sétimo capítulo, é a foto em que o garoto e a mãe posam ao lado de familiares maternos, de origem polonesa. Segundo a descrição da foto feita pelo pai, chama a atenção "a disparidade dos tipos físicos" (p. 44). O menino, com pouco mais de 9 anos, tem o semblante "sério" e demonstra indiferença. Para o pai: "sua condição de filho adotivo já é parte integral de sua personalidade". Conclui afirmando que o filho "sabe que aquela genealogia não é a sua, que é um enxerto num tronco cujas raízes desconhece" (p. 45 - grifo meu).

Se a princípio o casal se orgulha de seu fenótipo incongruente, talvez, num segundo momento, sinta-se relativamente aliviado, pois esse que se envolve com drogas, afinal, é um filho adotivo. E aqui se vê a crença popular do filho adotado que, dada a "sua condição", é mais propenso a certas particularidades.

Nazir Hamad, ao falar sobre a adoção interétnica, reflete:

o que importa para a criança negra adotada por pais brancos é que, uma vez o enxerto incluído, ela tenha, frente a seu pai e sua mãe adotivos, as mesmas facilidades de fala que teria se fosse o filho biológico. (2002, p. 119)

Decerto que a origem do "enxerto" importa. No romance, a ignorância a esse respeito é quase absoluta e isso talvez ajude a compreender por que as "facilidades de fala" mencionadas por Hamad não se apresentam, aparentemente, no curso do romance. Simplesmente porque não há sobre o que falar.

O mesmo autor enfatiza as restrições dos candidatos quanto à origem da criança que "poderiam mais tarde se revelar pontos de tropeço na transmissão da história familiar da criança adotada" (Hamad, 2002, p. 110).

A dúvida do narrador, "como inscrevê-lo numa genealogia?", denota a falta de preparo para realizar, em parceria com a mãe, essa "transmissão da história familiar" que garantiria à criança a inscrição possível nessa genealogia. Pouco se sabe, na verdade, sobre a ação da mãe, mas um dado relevante é perceber o quanto essa inscrição é problemática para o pai, justamente ele, enquanto representante da Lei e organizador da narrativa em questão.

No entendimento de Nazir Hamad, os avós adotivos têm relevância no processo mencionado acima, pois "eles inscrevem a criança adotada na cadeia das gerações" (2002, p. 48).

Para o psicanalista Olivier Douville, "a possibilidade de se dizer filho ou filha de... implica que se possa ser, enquanto sujeito, representado por um sistema simbólico genealógico" (1999, p. 147). Douville, ao desenvolver as ideias de Pierre Legendre, esclarece que o humano, por ser uma produção simbólica, precisa ser fabricado, seja em sua identidade, seja em sua alteridade. Essa fabricação "nos institui bem antes do nascimento nas redes e razões de parentesco e filiação" (Douville, 1999, p. 148). Mais especificamente sobre a questão da genealogia, esse mesmo autor sintetiza:

Para entrar no humano, convém não estar sozinho. Entra-se na ordem do humano com seus ancestrais e com seus mortos, incluindo aqueles em pane de ancestralidade. Entra-se no humano como fruto da geração e se a melancolia não é por demais aterradora, como origem possível de uma geração futura. Para entrar no humano é preciso, assim, entrar na perda, consentir em dar corpo ao Outro. (1999, p. 148)

Para retomar a narrativa, de posse das contribuições psicanalíticas, está claro que a angústia do narrador manifesta uma questão fundamental para a constituição do humano e, no caso de uma adoção, um verdadeiro ponto nodal. A dificuldade expressa pelo pai, além de exprimir sua incapacidade para garantir a inscrição simbólica do garoto na genealogia do casal, passa pelo silêncio em relação aos "mortos" e aos "ancestrais" da criança, em relação aos quais nada se sabe. Fazendo livre uso da locução de Douville, cria-se, a partir da história relatada, uma "pane de ancestralidade", visto que o "enxerto" se mostra duplamente alienado de suas raízes: tanto a biológica quanto a adotiva.

O narrador pergunta se sua carta seria patética, ao mesmo tempo que admite ser essa seu derradeiro gesto. Sem desmerecer o sofrimento que motiva um ato extremo do lado paterno, pouco se sabe da via oposta. O pai culpa o filho pelo rompimento, todavia, o que teria estimulado a escolha feita pelo filho? A narração tenta angariar a compaixão do leitor para com o pai abnegado, mas esse "se entrega", nos diversos trechos aqui citados e em outros mais, como alguém que ajudou a construir, ainda que inconscientemente, parte do caminho trilhado pelo filho.

Fica evidente a distância entre o que se imaginava - por mais que pouco se imaginasse - e o que de fato ocorreu. Nessa distância, há a franca dificuldade em garantir a esse "enxerto" condições para um enraizamento afetivo na genealogia do casal. Para tentar dar conta do fracasso, a posteriori, o pai busca refúgio na ciência, tentando compor um quadro com possíveis explicações para o ocorrido.

A via do conhecimento para lidar com os problemas com o filho é privilegiada pelo narrador. Nesse ponto, fica patente que o pai "fez a lição de casa", tendo recorrido ao que há de mais relevante na esfera do comportamento e do psiquismo humano: a psicanálise de Freud a Bion, passando por André Green e Winnicott, além de Piaget para o desenvolvimento cognitivo e Foucault para criticar o caráter de controle social que pode haver no exercício da medicina. A busca frenética do filho pelos paraísos artificiais (Baudelaire) tem sua contrapartida na tentativa desesperada do pai de compreender a história, usando das mais diversas fontes do conhecimento para articulá-la em termos intelectuais.

A saída para a racionalização, tão natural a um casal altamente intelectualizado - ele, um cineasta, ela, uma antropóloga -, pode ser vista como tendo um caráter compensatório para o narrador. Pois é flagrante, à medida que outras vozes narrativas são postas em cena, sobretudo a da mãe, que o pai em diversos momentos se dedicou à sua carreira, deixando o filho sob os cuidados da esposa:

Vou contar uma coisa que você não sabe, porque era eu que o pegava na saída da creche. (p. 12)

[...] desde pequeno usando garfo e faca, sem apoiar os cotovelos na mesa. E não foi de você que ele aprendeu. (p. 13)

Você tinha voo marcado para uma filmagem e me deixou na porta [do hospital], lembra? Quando você voltou, ele já estava operado, todo bonitinho, e eu nem te contei como foi. (p. 31)

Entrei no escritório e dei com ele fumando por um buraquinho numa lata de cerveja amassada e vendo mulher pelada no computador. Chapado total. Você estava filmando os palestinos lá no Sul; eu não sabia em que cidade, e, mesmo que soubesse, não ia tirar você da filmagem. (p. 75)

Considerando que o narrador tem controle do narrado, responsabilizando-se pelo que conta ou deixa de contar, vale assinalar, para todos os efeitos, sua disposição em compor um relato franco, num tom de aberta sinceridade. Ele desiste do filho, assume-se "medroso" (p. 137) ante as imposturas cometidas, expõe sua face preconceituosa, não hesita em registrar suas reações mais problemáticas, como o soco desferido contra o filho ao ser expulso de um colégio particular. A linguagem é seca, o estilo é direto, sem concessões.

Não fica claro se a decisão de registrar a fala da mulher ou de outras personagens é do narrador ou do escritor, B. Kucinski. De toda forma, é notória a distância da voz do próprio filho. Esta só aparece num capítulo em que ele é interrogado, não se sabe se numa delegacia ou tribunal, e ao final, por meio do relato do pai no derradeiro encontro, quando o rapaz esboça uma relativa estabilidade. Nesse episódio, que encerra o livro, o filho aparece num momento de sobriedade e de busca de autoconhecimento, arguindo os pais sobre fatos essenciais de sua história, "para a qual só agora estava preparado, fossem quais fossem as respostas" (p. 147).

A imperfeição desse pretérito, dessa experiência tão dolorosa, abre ainda mais espaço para a discussão sobre a adoção. O narrador menciona que, na adoção à brasileira, "às vezes até se paga, a pretexto de despesas de parto" (p. 17). Embora muita coisa tenha mudado, é fato que ainda em 2016 era possível encontrar crianças sendo negociadas, agora pela internet...3

Além daquilo que é próprio da experiência individual do narrador, o texto toca questões amplas, universais quando o assunto é a adoção: o que motiva o casal a optar pela adoção, o luto pela incapacidade de gerar um filho biológico - ferida narcísica incontornável -, a distância entre o filho idealizado e o filho possível, a necessidade de o casal estar aberto para falar do passado da criança e da adoção em si - a fim de garantir a inscrição do adotando na genealogia familiar -, a miséria e a falta de informação que levam à entrega de uma criança.

É grande a tentação de avaliar a adoção tal qual feita no passado à luz das conquistas do presente, considerando o quanto se desenvolveram os conhecimentos em torno do assunto. Isso transformaria, porém, a obra de ficção em uma espécie de manual às avessas, um guia sobre o que evitar numa adoção.

Antes, talvez, valesse a pena lembrar as palavras de Antonio Candido ao apreciar criticamente o romance Maíra, de autoria do antropólogo Darcy Ribeiro. Para além daquilo que um diário de campo pode revelar, fez-se necessário, no caso do etnólogo, optar pela ficção "para extrair da realidade aquilo que só a imaginação perfaz" (1996, p. 381).

B. Kucinski, o autor literário, assinou o romance. Bem poderia ser uma reportagem feita por Bernardo Kucinski, jornalista e professor aposentado da usp. Sem desmerecer os relatos baseados em experiências pessoais, ou mesmo reportagens de cunho mais documental, o romance, por meio da invenção do narrador - que, ao mesmo tempo que domina o relato, abre espaço para expor suas mazelas - e do jogo com outras perspectivas, enriquece a reflexão ao revelar contradições inerentes às personagens e situações que poderiam ser impensáveis em outros tipos de narrativa.

"Para que serve um filho desses?", pergunta o narrador a certa altura. Soa como alguém que tem um utensílio à mão e não sabe usá-lo ou imaginava que poderia usá-lo para um fim e percebe que não pode fazê-lo. Como se viu, algumas expectativas específicas pairavam sobre a chegada desse filho para esse pai. À medida que essas não se cumprem e o caminho a ser trilhado é muito diverso, nasce a ruptura. Como peça-chave para a elaboração do luto por um passado de perdas, além de "um vago desejo de completude", o filho, à sua maneira, diz que a tarefa é pesada demais e pede ao pai que seja apenas um pai, para que ele, filho, seja apenas um filho.

 

Para concluir

Tais reflexões e outras afins fazem parte do cotidiano dos profissionais das Varas de Infância e Juventude e Varas de Família. Pois a "serventia", a função que o filho desempenha na dinâmica familiar, o lugar que ocupa no imaginário dos pais, tudo isso está em jogo na escuta das demandas apresentadas aos magistrados e passíveis de estudo pelos setores técnicos. Especificamente sobre a adoção, inquirir sobre a motivação para tal ato e esquadrinhar tanto quanto possível "para que serve um filho" na configuração psíquica dos requerentes é um ponto primordial.

Pretérito imperfeito, ao falar de adoção, mostra-se rico em reflexões, expondo de forma crua as contradições dos atos e as ambiguidades afetivas que podem ocorrer nesse fenômeno. Refletir sobre o destino da adoção trazida pelo romance é considerar o destino das adoções em curso ou ainda por acontecer no âmbito judiciário. É também pensar sobre o sentido amplo do verbo adotar: perfilhar, aceitar, assumir. Nesse sentido, todos somos, bem ou mal, adotados. Sendo ou não herdeiros da carga biológica, a inscrição numa genealogia - para usar as palavras do narrador - se faz indispensável.

A trama romanesca mostra um dos desfechos possíveis para a adoção. Na prática, as "facilidades de fala", sejam sobre a história da criança, sejam sobre o desejo dos pais, parecem condição fundamental para o sucesso do feito. A possibilidade de um happy end aumenta quando se promove, o máximo possível, a livre circulação das histórias e dos afetos que envolvem pais e filhos. Garantir essa liberdade, facilitando o acesso aos aspectos mais difíceis da história de cada um e contribuindo para um destino digno às crianças e adolescentes sob custódia judicial, é o próprio cotidiano dos psicólogos judiciários.

 

REFERÊNCIAS

Birman, J. (2007). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. (6ª ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Candido, A. (1996). Mundos cruzados. In D. Ribeiro. Maíra. (15ª ed.). Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Douville, O. (1999). Para apresentar algumas ideias de Pierre Legendre sobre nossa modernidade. Palavras de um psicanalista ocidental. In S. Altoé. Sujeito do direito, sujeito do desejo: direito e psicanálise. (A. M. A. Monteiro, trad.). Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Hamad, N. (2002). A criança adotiva e suas famílias. (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Houaiss, A. (2001). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. (1ª ed.). Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Kucinski, B. (2017). Pretérito imperfeito. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
EDINAEL SANCHES ROCHA
Rua Professor Pirajá da Silva, 183/12
05451-090 - São Paulo-SP
tel.: 11 99325.2213
edinaelrocha@gmail.com

Recebido 20.06.2018
Aceito 06.04.2019

 

 

1 Todas as menções a Pretérito imperfeito se referem à edição feita pela Companhia das Letras, de 2017, conforme apresentado nas referências o fim deste ensaio. Ao longo do texto, virão indicadas entre parênteses com o número da página.
2 A expressão "adoção à brasileira" designa uma modalidade de adoção na qual as crianças eram registradas no nome de terceiros, ignorando por completo a família biológica, configurando um ato ilegal. É uma expressão um tanto antipática, que associa a ilegalidade do ato à nacionalidade, como se esse tipo de prática fosse exclusiva do nosso país.
3 Reportagens disponíveis em https://noticias.r7.com/cidades/pais-colocam-bebe-a-venda-na-internet-na-noite-de-natal-26122016 e http://aconteceunovale.com.br/portal/?tag=crianca-a-venda-na-internet.

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