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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

O ritmo da queda1

 

The rhythm of the fall

 

 

Magda Guimarães Khouri

Membro associado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Diretora de atendimento à comunidade da SBPSP (2017-2020)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta deste trabalho é pensar a queda como acontecimento que toca diversas questões humanas, tanto individuais como coletivas. Um bebê aprende a andar se desequilibrando e incansavelmente caindo. Nesse jogo entre cair e ficar em pé, vamos seguindo a vida. A partir do documentário Gaga – o amor pela dança e do trabalho do Grupo Cena 11 Cia. de Dança, a autora desenvolve uma reflexão sobre o ritmo e a queda na dança contemporânea e na clínica psicanalítica. Movimento incessante, que exerce atração e medo abre possíveis investigações sobre sentidos e destinos da queda.

Palavras-chave: Dança contemporânea. Processo psicanalítico. Queda. Pulsão. Ritmo.


SUMMARY

The proposal of this work is to think of the fall as an event that touches several human issues, both individual and collective. A baby learns to walk while unbalancing and relentlessly falling. In this game between falling and standing, we go along with life. From the documentary Gaga – the love of dance, and from the work of Grupo Cena 11 Cia. de Dança, the author develops a reflection on the rhythm and the fall in contemporary dance and psychoanalytic clinic. Incessant movement, which exerts attraction and fear, opens possible investigations on the senses and destinies of the fall.

Keywords: Contemporary dance. Psychoanalytic process. Fall. Drive. Rhythm.


 

 

Ao meu querido amigo Victor Guerra

Gaga: tensão e entrega amorosa

 


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"Em vez de ir para trás, apenas deixe acontecer... Você precisa criar o ritmo da queda. Perder a consciência. Precisa encontrar uma forma de se deixar ir", dizia Ohad Naharin, diretor artístico da companhia Bashev, de Tel Aviv, no documentário Gaga - o amor pela dança (2015), ao ensinar uma das bailarinas a cair em um ensaio do elenco.

Da cena do filme nasceu a proposta de pensar a queda como acontecimento que toca diversas questões humanas. Talvez tenha surgido de Gaga justamente por se tratar de uma concepção de dança que não pertence só aos profissionais e mestres, mas a todo mundo.

Gaga é mais uma linguagem corporal do que propriamente uma técnica, com uma série de desafios propostos ao bailarino para que ele "ouça seu corpo". Como comenta o cineasta Tomer Heyman, a trajetória de Naharin demonstra "a importância de uma busca interna, para que seja possível criar uma expressão própria"2.

Naharin descreve seu trabalho como um descobrimento:

"Todos temos que encontrar esses movimentos que estão esperando ser modificados, achar a conexão entre esforço e prazer, estar mais próximos a nossas sensações para ser mais instintivos, delicados, explosivos em nossos movimentos". Baseado na imaginação e na musicalidade, completa: "Investigamos o corpo humano e seu movimento, as texturas, a força, o poder e a velocidade"3.

 


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Método próximo a uma maneira de encarar a vida, assistir a Gaga é uma experiência explosiva, íntima e imprevisível. São narrativas que nascem da interpretação da coreografia feita por cada dançarino, cheias de sensualidade, sexualidade e, por vezes, dolorosas.

 


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Essa queda cuidadosamente medida e estudada, num misto de tensão e entrega amorosa, tem algo de contagiante, que leva junto o corpo do espectador nas experiências vividas pelos bailarinos. O cair nessa dança exerce uma atração pela forte expansão e recolhimento dos movimentos, que perfura a barreira discursiva da linguagem e está mais próxima dos ritmos do corpo e da vida.

 

Grupo Cena 11: experimentação e transitoriedade

Uma outra poética que envolve a queda é desenvolvida pelo Grupo Cena 11 Cia. de Dança (1993), radicado em Florianópolis, que tem como objeto central de pesquisa o modo de controle do corpo, este definido como sujeito e objeto dele mesmo através do movimento.

 

 

O diretor da companhia, Alejandro Ahmed, em debate da Revista Carbono, comenta que

quedas também têm que ter um controle que não é o direto. Porque não adianta você querer controlar tudo entre você, o chão e a gravidade, quando você se deixa cair. Você controla algumas questões, e você tem que controlar principalmente as que vêm antes, o movimento que vem antes do movimento visível. (Ahmed, 2017)

A queda é uma relação com o chão e, para não ser uma queda acidental e "que consiga se replicar enquanto conduta viva e capaz de gerar metáfora, ela tem um estado de controle, que também depende de cada corpo", de acordo com Ahmed (2017).

 


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Em alguns momentos as suas coreografias têm um ritmo mais violento, evidenciando a força e o peso dos corpos. Os bailarinos se jogam radicalmente e se levantam com leveza, como se a queda não tivesse acontecido. Está dentro do contexto da dança contemporânea, que indica um corpo como abertura, caracterizado pela experimentação e transitoriedade.

 

 

Ao se falar em movimento, tocamos numa premissa importante para a psicanálise: os aspectos pulsionais. Sabemos que pulsão é o conceito que se situa na fronteira entre o anímico e o corporal. A pulsão tem sua origem no corpo, o termo designa estímulos constantes provenientes do próprio corpo e é o representante psíquico desses estímulos. Fonte geradora dos movimentos, a pulsão "não atua como força de choque momentânea, mas sempre como uma força constante" (Freud, 1915/1996, p. 124).

 

Pulsão e ritmo

A dança contemporânea parece evidenciar o excesso pulsional de um sujeito desejante, na sua errância, feito de unidades descontínuas entre acelerações e descompressões. Com marcas mais autorais, ela criou uma linguagem na qual o bailarino passa a ser um corpo que expressa as angústias de sua época, de sua vida, inventando-se de modo ininterrupto no contato com o mundo e com a alteridade.

Nas coreografias citadas neste texto, assistimos a um gênero de dança em que o movimento gera movimento, sem representar uma história linear. Pode ser agitado ou com gestos mínimos, mas são novas estratégias que contrariam a continuidade, a figuração em favor de estruturas sem lógica, da simultaneidade, da justaposição e da repetição. Algo mais próximo à lógica de processos inconscientes, ao desassossego das pulsões.

Somos capturados mais pelo ritmo criado do que pelo significado que cada passo poderia revelar. Sob a perspectiva psicanalítica, ritmo é um conceito central nas mais variadas manifestações psíquicas. Victor Guerra se dedicou ao estudo sobre o sentido do ritmo como uma dimensão não verbal da interpretação psicanalítica. O autor escreveu que

Podríamos decir que la relación que establece un adulto que desea entrar en contacto con un bebe, en los albores de la subjetivación, se caracteriza principalmente por la emergencia de ritmos. El encuentro de miradas, la voz, el cuerpo, el movimiento pone en juego elementos rítmicos que pautan sensiblemente el encuentro y el desencuentro. (2017, p. 3)

O ritmo está na fundação da subjetividade, pautando o momento inaugural da inserção da criança no mundo.

Também muito explorado por Guerra e outros autores, o ritmo como acontecimento dentro da sala de análise se torna um recurso de escuta fundamental quando a representação não é articulada como comunicação possível. Nasio escreve que

a imagem inconsciente do corpo é uma linguagem, sim, mas uma linguagem de ritmos; e que falar em linguagem antes de tudo, para o terapeuta, entrar em ressonância com a vibração básica, funcional e erógena dominante em seu paciente - ainda que seja uma vibração a um estado de regressão e sofrimento. (2009, p. 35)

 

"a gente está sempre caindo"

a psicanalista tania rivera, no debate anteriormente citado da revista carbono, faz observações preciosas sobre o movimento e a queda e suas relações com a psicanálise. e para falar da queda, menciona o artista plástico carioca ernesto neto, que trabalha com esculturas de tecidos e uma multiplicidade de materiais, cheios de junções e elasticidade, sempre desafiando a gravidade:

Eu acho que essa sensação de que a gente está sempre caindo, porque de fato a gente está sempre caindo; o giro que o Sol dá em torno da terra é uma queda constante, só que ao mesmo tempo que tem a queda, a velocidade mantém você na órbita. A gente está sempre caindo no chão, caindo na cama. O nosso corpo vai caindo, né? (2017)4

Sabemos que um bebê aprende a andar se desequilibrando e incansavelmente caindo. É nesse jogo entre cair e ficar em pé, como descreve Rivera, lembrando o ritmo sono/vigília, que vamos levando a vida. Parafraseando Ahmed, a autora diz que "talvez a boa parte da nossa vida se dedique a uma transformação da queda em passo" (Rivera, 2017). Aqui não se trata de uma referência ao passo de dança predeterminado, mas como a possibilidade da queda faz um movimento para ir além. Nomeia essa transformação como gesto, em vez de ação. Há algo no movimento que se dá ao olhar do outro, o gesto como um movimento que também convida o outro a algum gesto, é um apelo ao outro.

Nesse convite talvez haja uma possibilidade de um gesto subversivo, de algo capaz de transformar o sujeito e o mundo. Lacan fala do gesto, referindo-se ao "ato analítico". Ele fala do gesto de uma maneira que me parece muito bonita: do gesto de passar a página como algo capaz de mudar o sujeito. (Rivera, 2017)

Nessa concepção, o gesto é considerado como um ato de inauguração, de um novo espaço possível para o sujeito, aquilo que foge da rotina da existência. Desde o início do desenvolvimento humano, os gestos que o bebê dirige ao mundo e que são dotados de sentido pelo olhar do outro são um processo que vai constituindo a subjetividade.

E é curioso saber que muitas pessoas procuram aulas do Cena 11, pois querem aprender a técnica de cair no sentido descrito pelo diretor: "A gente criou uma dança de risco talvez para lidar com uma ideia de medo, aonde vigor e fragilidade tivessem um lugar comum, um trânsito comum" (Ahmed, 2017). Próximo ao momento inicial, quando se aprende a andar, talvez essas aulas resgatem o complexo processo que se passou nos bastidores da experiência infantil.

Colocar ritmo na queda é uma forma de aprender a cair, maneira pela qual se pode descrever um processo de análise.

 

 

O tombo

Em velho o que mais tememos é a queda.
Não é a queda no escuro da cova.
Mas o cair no próprio passo, como se o osso já
obedecesse à convocatória do chão.
(Mia Couto)

Uma outra dimensão, mais ligada a questões traumáticas, é o tombo não controlado, acidental. Ignácio Loyola Brandão, aos 80 anos, escreve na sua coluna do jornal O Estado de S. Paulo:

Ao subir uma escada, o degrau desapareceu. Meu corpo voou, entrei em pânico, sabia do perigo de uma queda. Vi o chão se aproximar. Uma queda é rapidíssima para quem olha e vagarosa para quem cai, uma eternidade. Vislumbrei cair de cabeça, sofrer um traumatismo craniano, ou quebrar um fêmur, passar por cirurgia, ficar meses na cama, enfaixado, engessado. [...] Vocês não têm a ideia da sensação de humilhação que é cair... (Brandão, 2017)

"Quando a suposta humilhação da queda literal é capaz de conduzir a uma queda-em-si no après-coup, isso nem sempre é possível", mas muitas vezes cria esse efeito. Essa fala de Eduardo Martins, numa conversa informal sobre um acidente vivido, remete, ao revés, ao sentido psicanalítico da queda no pensamento psicanalítico.

 

Queda e destino

Quase no fim do filme Easy rider, que inspirou a equipe editorial a criar o tema deste número da revista Ide, o personagem Wyatt, interpretado por Peter Fonda, diz: "Estragamos tudo". Até hoje se debate se é uma referência ao movimento hippie, ao país ou a questões pessoais. O desencanto é a força do filme, nesta queda de um sonho, de um suposto ideal de liberdade. E a linha proposta para a Ide 66 nos convida a pensar sobre a liberdade partindo da ideia de Sartre, do ser humano como projeto existencial que, por sua vez, é condenado a ser livre. Não se trata do objeto de estudo deste texto, mas apoiados em tal concepção - vale destacar que os editores criam um destino de inevitável abertura da psicanálise. Justamente pelo sujeito não ter uma essência, escapa a qualquer determinismo. Para tal, fazem aproximações da psicanálise com as ideias de Merleau-Ponty, que considera a liberdade não como uma condenação posta ao ser humano, mas uma conquista a ser feita por ele.

A experiência da queda e de suas vicissitudes, nesse contexto, pode ser vista no campo das experiências e das limitações que tornam a liberdade possível, que acabam por nos impor o caminho das escolhas.

O tombo acidental e a queda em diversos fenômenos humanos sempre causam estranheza, um momento em que ficção e realidade se encontram radicalmente, e que nessa fração de tempo morte e vida se reúnem, quase inseparáveis, como uma suspensão no espaço, na luta com a gravidade.

Como metonímia da morte, a queda se apresenta em diversas formas conceituais para a constituição do sujeito em psicanálise, em que se vive a ruptura narcísica, quebra-se a fusão com a mãe e se inauguram as brechas para a entrada do outro e o descolamento de si mesmo. O "cair em si" pode ter como destino possíveis transformações na linha que Ahmed descreveu, de forma tão precisa, no campo da dança: um movimento "que consiga se replicar enquanto conduta viva e capaz de gerar metáfora" (2017). Sentidos novos criados por nossa ação e nosso pensamento.

Ao pensarmos no término de uma análise, do lado do paciente é ter se desfeito dos apegos infantis mais presentes, criando aberturas às mais diversas possibilidades de vida que ele possa encontrar. O luto do lado do analista envolve suportar não ser mais o objeto do desejo do outro, já cumpriu o seu papel. É quando o analista se torna dispensável.

 

REFERÊNCIAS

Brandão, I. L. (2017, 15 de setembro). O inferno é de gelo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Cultura.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Os instintos e suas vicissitudes. In ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 14, pp. 123-144). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).         [ Links ]

Fraga, M. & Urano, P. (2017, 22 de novembro). Corpo, sonho, memória [Entrevista com John Araújo, Alejandro Ahmed e Tania Rivera]. Revista Carbono, 7, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Guerra, V. (2017). El ritmo en la dimensión no verbal de la interpretación. Texto não publicado.         [ Links ]

Heyman, T. (2015). Gaga - amor pela dança. (Documentário, 103 minutos). Israel; Suécia; Alemanha; Holanda: Heymann Brothers Films.         [ Links ]

Nasio, J. D. (2009). Meu corpo e suas imagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
MAGDA GUIMARÃES KHOURI
Rua da Consolação, 3741/22
01416-001 - São Paulo-SP
tel.: 11 3083.3002
magdakhouri@uol.com.br

Recebido: 06.05.2019
Aceito: 08.06.2019

 

 

1 Trabalho apresentado no XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Fortaleza, novembro de 2017.
2 https://oglobo.globo.com, por Luis Felipe Reis, 06/04/2017.
3 www.elcultural.com, revista Escenarios, Liz Perales, 19/11/2010.
4 Ernesto Neto: participação no "Ensaio sobre o sujeito na arte contemporânea brasileira", concepção e direção de Tania Rivera, 2009-2010: https://www.youtube.com/watch?v=Gjxxi_XzmfM.

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