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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo Jan./Dec. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

O corpo da dança: entre liberdade, expressão e pensamento

 

The body of dance: between freedom, expression and thought

 

 

Rafael Henrique Viana Sertori

Ator, dançarino e artista-pesquisador. Doutorando do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA/MAC-USP). Mestre e licenciado em artes cênicas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A escrita deste artigo tem por objetivo pensar a relação do corpo apresentado e agenciado pela dança com investigações em arte e psicanálise. A partir de entrevistas realizadas com bailarinas e de articulações com filósofos, o artigo amplia o modo como podemos perceber o corpo na contemporaneidade, discutindo a corporeidade que circula na linguagem da dança e a questão da técnica; questão esta muitas vezes vista como aprisionamento do corpo em códigos preestabelecidos.

Palavras-chave: Corpo. Dança contemporânea. Arte e filosofia.


SUMMARY

This article has the objective to think about the relationship of the body introduced and agitated by dance with investigations in Art and Psychoanalysis. From interviews did with dance performers and articulations with philosophers, the article expands how we can see the body in the contemporary, discussing the corporeity in the language of dance and the technique's question; this one often seen as entrapment of the body in pre-established codes.

Keywords: Body. Contemporary dance. Art and philosophy


 

 

Inquietudes entre dança e psicanálise

Hoje muito se discute acerca dos caminhos possíveis para acessarmos ou tocarmos o inconsciente, seja por meio da psicanálise, através dos sonhos e/ou da associação livre (por exemplo), seja pelas mais diversas práticas artísticas. No que se refere à linguagem da dança, desde o nascimento da dança moderna1, esse tema se tornou um dos principais pontos discutidos durante a criação, composição e percepção dos movimentos. Segundo um dos fundadores da dança moderna alemã, o bailarino, coreógrafo e pedagogo Rudolf Von Laban:

o pensar por movimentos poderia ser considerado como um conjunto de impressões de acontecimentos na mente de uma pessoa; conjunto para o qual falta uma nomenclatura adequada. Esse tipo de pensamento não se presta à orientação no mundo exterior, como o faz o pensamento através das palavras; mas, antes, aperfeiçoa a orientação do homem em seu mundo interior, onde continuamente os impulsos surgem e buscam uma válvula de escape no fazer, no representar e no dançar. (1978, p. 42)

A partir dessas palavras, questiono: em que medida podemos pensar o contato com a linguagem da dança como uma abertura ao estranho, a um mundo por vir e a uma subjetividade por vir? Como um convite para nos identificarmos com o não-sentido e com o inominável, abrindo espaço para que as potências escondidas do corpo possam se manifestar? Diante de tais perguntas, poderíamos supor que a dança, entre as chamadas "artes cênicas", seria aquela que mais nos coloca frente a "uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer"? (Frayze-Pereira, 2010, p. 38). Nos estudos que se propõem a estabelecer relações entre psicanálise e arte (na maior parte dos casos, tendo as artes visuais como campo de investigação), a quantidade de trabalhos publicados e disponíveis para consulta é significativa. No entanto, no que diz respeito à dança, essa bibliografia ainda é bastante limitada. Aqui vale a questão: a que se refere tal escassez? É curioso também notar como a dança quase não está presente na literatura psicanalítica, ainda que seja uma prática artística antiga, que diz tanto sobre o corpo humano e que faz dele a condição primordial para sua existência. Esse é um fato intrigante, uma vez que a psicanálise surge justamente atenta aos sintomas corporais da histeria, sugerindo que olhemos para o corpo enquanto "corpo pulsional".

Nesse sentido, a escrita deste artigo tenta evidenciar uma possível proximidade entre a dança e os estudos que relacionam a experiência estética com a psicanálise, sugerindo que a linguagem da dança pode propor (tanto para espectadores quanto para dançarinos) uma experiência que é capaz de ir além da expressão egoica de si mesmo ou de uma expressão direcionada à mera formulação de sentidos, inerentes ao funcionamento de determinados campos de significação já instaurados. Antes, a dança "aparece como confrontação com o que nos desampara tanto do vínculo à significação, partilhada pela realidade social e seus modos gerais de ordenamento, quanto do que constitui as ilusões da vida interior e de nossa personalidade psicológica" (Safatle, 2018, p. 30), podendo nos conduzir à emancipação de nossa condição de indivíduos.

Para entendermos como as linguagens artísticas podem operar nesse sentido, a filósofa Susanne Langer, em sua obra Sentimento e forma, propõe que a arte, de um modo geral, seja entendida como "criação de formas simbólicas do sentimento humano". Mais adiante, a autora levanta o seguinte questionamento: "devemos julgar uma obra de arte como uma forma de expressão, dando vazão aos sentimentos de seu autor, ou como um estímulo, produzindo sentimentos no espectador?" (2011, p. 19). No que diz respeito à linguagem da dança, a obra criada pode ser entendida como manifestação e expressão de sentimentos, movimentos, ideias e desejos, tanto de seus criadores quanto cocriação em conjunto com o espectador, uma vez que este último participa da construção do que uma obra propõe à medida que se coloca disponível para interagir com ela. Tal disponibilidade se daria a partir da perspectiva da psicanálise implicada2, tal como é proposta por Frayze-Pereira (2010). Contudo uma obra nunca será algo acabado e muito menos definitivo, pois:

o que a arte expressa não é um sentimento real, mas ideias de sentimento; da mesma forma que a linguagem não expressa coisas e acontecimentos reais, mas ideias a seu respeito. A arte é totalmente expressiva - cada linha, cada som, cada gesto; e, portanto, é cem por cento simbólica [...] pois um símbolo pura e totalmente articulado apresenta sua significação diretamente a qualquer espectador que chegue a ser sensível às formas articuladas no meio dado. (Langer, 2011, p. 62)

Logo, as ferramentas simbólicas que circulam na dança sempre serão subjetivas e objetivas, pessoais e públicas, conscientes e inconscientes. Para Susanne Langer, o movimento "se torna uma forma simbólica livre, que pode ser usada para transmitir ideias de emoção, consciência e pressentimento, ou pode ser combinado a outros gestos virtuais, a fim de expressar outras tensões físicas e mentais" (2011, p. 63). Nessa perspectiva, pensar a dança se torna, antes de tudo, um exercício de liberdade, uma vez que aquilo que tal linguagem movimenta e manifesta é o que não se deixa ver no cotidiano: a dança torna visível o invisível. Logo, é necessário que o pensamento da dança busque por espaços onde possa se fazer perceber, colaborando com a construção de outros modos de enxergarmos e nos relacionarmos com o corpo (e com tudo o que ele coloca em movimento). Laurence Louppe nos diz que "toda investigação sobre o corpo requer um silêncio meditativo e concentrado, em que o sujeito do corpo parte à procura de si - do outro em si ou de si no outro" (2012, p. 70). A mesma autora ainda nos diz que, na contemporaneidade:

A anatomia humana e mesmo as funções elementares do corpo foram revisitadas e, por vezes, destacadas ou deslocadas pela dança contemporânea, a fim de reclamar, além das formas admitidas e reconhecíveis, todos os outros corpos possíveis, corpos poéticos suscetíveis de transformar o mundo mediante a transformação de sua própria matéria. (2012, p. 74)

Logo, para discutirmos sobre o que pode ser, o que pode gerar e o que pode ser criado por meio dessa transformação dos corpos poéticos, dessa "transformação de sua própria matéria", muitos fatores devem ser considerados para não cairmos apenas na fisicalidade do corpo. Há que se considerar uma complexa camada de dimensões que são internas ao próprio corpo físico, as quais compreendem as atividades de regulação biológica, sensorial, cerebral, muscular, fluídica (entre outras), e também as que são externas ao corpo, constituídas pelas conexões de troca com o ambiente e de relações estabelecidas com o mundo. Assim, todas elas participam e estão presentes no fazer artístico da dança, na composição e realização dos movimentos e na proposição de uma determinada corporeidade poética. O filósofo José Gil (2013), a partir das reflexões que estabelece entre dança e filosofia, sugere a expressão sistema-corpo: um corpo integrado e constituído pela dinâmica das relações entre matéria, intelecto, consciência, espírito, emoção e energia. Já Laurence Louppe nos diz que "na maior parte do tempo, diferentes corpos circulam, visíveis ou invisíveis, no interior dos corpos dançantes, como vagas misteriosas, cujas referências corporais se confundem ou se sobrepõem" (2012, p. 81). Nesse sentido, também encontramos nas palavras de Michel Bernard um auxílio para melhor compreendermos o corpo que a dança propõe. O autor nos alerta para o fato de que "é preciso trabalhar com o corpo adotando outro olhar e substituindo esse modelo substancialista, semiótico e instrumental pelo reticular, intensivo e heterogêneo de corporeidade" (Bernard, apud Bardet, 2014, p. 64).

 

A corporeidade apresentada pela dança

De um modo geral, podemos dizer que a dança se constitui pelos movimentos que se materializam em um determinado corpo-espaço, seguindo uma outra lógica do tempo que não a do tempo cronológico e linear, bem como pelos gestos-ação dos corpos físico, biológico, sensível, subjetivo e psíquico, os quais buscam ininterruptamente por uma redefinição. Para Hans-Thies Lehmann, a dança "não formula sentido, mas articula energia; não representa uma ilustração, mas uma ação" (2007, p. 339). Ou seja, o corpo da dança será sempre uma constante matéria em processo, o qual não cessa de reapropriar-se e reinventar-se no jogo entre interno e externo, visível e invisível, matéria e espírito. E é justamente essa noção de corpo que nos é apresentada pelos diversos processos de materialização e configuração do pensamento em dança; processos esses que buscam criar e manifestar poeticamente aquilo que ainda não existe no mundo visível ou o que não é possível nominar; processos implicados em tecer fios coreográficos a partir do invisível e que tentam dar forma a uma experiência que só se constitui no (e através do) próprio corpo em movimento.Laurence Louppe nos diz que:

a dança empenha-se no advento de um corpo que não é dado previamente. Por outras palavras, a dança explora uma multiplicidade de corpos, cada um contendo como que uma partitura secreta, um imenso leque de possibilidades e de tonalidades poéticas, algo que Laban designa por assinatura corporal. Estes corpos transmutam-se através das épocas, das culturas e dos indivíduos e, segundo mecanismos individuais, entre situações e respostas. Não são somente um campo de interferências, mas um campo suscetível de organizar tais interferências. Dançar consistiria, assim, em tornar legível a rede sensorial que o movimento explora e cria a cada instante. (2012, p. 85)

Em síntese, podemos dizer que a rede sensorial que a dança torna legível se dá na medida em que, por meio e através do movimento, o corpo encarna, circunscreve e evoca as experiências que temos com aquilo que é desconhecido, que nos causa inquietude, desconforto e que nos lança em zonas de indeterminação; com aquilo que é da ordem do inconsciente, do indizível, do não-dito, produzindo outras e novas corporeidades, as quais poderão resultar em novas manifestações estéticas e ações políticas, por exemplo. Ou seja, o corpo da dança é capaz de desestabilizar as noções já conhecidas de corpo, produzindo espaços de emancipação na intersubjetividade que circula através da experiência estética com essa linguagem artística. A construção de novas gramáticas corporais em tal linguagem se realiza como emergência de um corpo expressivo enquanto fluxo de despersonalização, em direção à heteronomia.

O corpo da dança, portanto, "entra em uma espécie singular de vida, estranhamente instável e, ao mesmo tempo, estranhamente regrada; estranhamente espontânea, estranhamente inteligente e certamente planejada" (Valéry, 2011). Nesse sentido, podemos pensar que, junto dessa instabilidade sentida, provocada e instaurada no (e pelo) sujeito que dança, materializa-se também uma "travessia do corpo" para estados, energias, ritmos e fluxos de imagens-pensamentos-sentimentos expandidos, diferentes daqueles experienciados no cotidiano, em situações normativas e automatizadas, por exemplo. É o filósofo Jean-Luc Nancy quem nos diz que o objeto da dança é "a travessia do corpo, seu transe" (apud Bardet, 2014, p. 62). No entanto poderíamos nos perguntar: travessia pelo quê? É o mesmo filósofo quem nos apresenta uma possível resposta à essa questão:

Por nada, talvez, ou por uma energia, ou por uma graça - porém, qualquer que seja a palavra, travessia do corpo pelo incorporal que o retira da sua organização e da sua finalidade de corpo. O corpo se torna o incorporal de um sentido que, no entanto, não está em outra parte que não através do corpo. (Nancy, apud Bardet, 2014, p. 62)

Ou seja, lidar com a corporeidade apresentada pela dança sob essa perspectiva nos abre para um entendimento de corpo que vai além do corpo físico. Ainda que movimentando-se, muitas vezes, por meio de códigos preestabelecidos, não é somente a matéria que a dança coloca em movimento. Consciências, fluxos energéticos, emoções e sensações também se movimentam, garantindo ao intérprete-bailarino (mas também ao espectador) a oportunidade para que se reencontrem consigo mesmos, reelaborando suas visões de corpo no mundo. "Assim, a consciência do corpo nasce dos poros da consciência - onde nada do exterior se suspende a uma palavra, o corpo vem preencher a lacuna", diz José Gil (2013, p. 122). Desse modo, para melhor compreendermos como pode se dar a construção da corporeidade apresentada pela dança, trago à tona um trecho de uma entrevista3 realizada com a artista da dança Vanessa Macedo4. Nessa entrevista, a artista reflete acerca dos desafios enfrentados por intérpretes-bailarinos durante um processo de criação em dança, no tocante às relações estabelecidas com seus próprios corpos e com a cena.

Autor: Vanessa, como se dá a sua percepção de corpo, da técnica necessária para você realizar o que é preciso fazer durante a cena, e como você relaciona isso com o que acontece no momento presente no qual você está dançando?

Vanessa Macedo: Eu acho que tem muito a ver com cada trabalho. Por exemplo, O processo, do Sandro[Borelli]5, que era um trabalho que eu ficava 50 minutos sem colocar o pé no chão, só transitando de um corpo para o outro dos bailarinos, eu tinha que usar muita força, eu não podia encostar o pé no chão. Eu tinha que ficar o tempo todo pendurada em cima deles, passando de um corpo para o outro durante aqueles 50 minutos. Então, quando existe um desafio técnico, eu acho que ele ajuda; eu sinto que ele ajuda a ter um corpo presente, porque ele faz com que você não tenha espaço nem tempo de fugir, sua mente não consegue dar uma escapadinha, sabe? Foi o que o Bongiovanni6 falou pra mim, quando eu entrevistei ele, em relação à pirueta. Ele falou: "eu quero ver a bailarina, no tombé pas de burrée, ela vai pensar no lanche que ela tem que comer, mas na pirueta ela não vai poder pensar, senão ela cai". Então isso é exatamente o que eu sinto, assim... quando existe um desafio técnico que é muito rigoroso, eu não acho que isso... isso poderia ser um jeito de me tirar totalmente da intenção da cena e tornar aquele corpo mecânico, que pode acontecer; aí também vai da qualidade do intérprete, porque ele vai focar só no movimento e no que ele tem que cumprir, que é um aspecto negativo, ou pode ter o aspecto positivo que pode vir a contribuir, porque é um desafio técnico tão grande e o seu corpo tem que estar muito bem treinado praquilo, que você não vai escapar, você vai ficar cem por cento presente naquilo, mas ao mesmo tempo você já é um intérprete que tem essa potência da presença. Então isso só casou, só ajudou, só melhorou você a conseguir ficar cem por cento na cena. Então, nesses trabalhos que tinham esse desafio técnico, eu sentia que eu estava, digamos assim, ocupada do início ao fim. Nos trabalhos que são mais teatrais, ou que têm cenas com mais pausas que, de repente, você tem que sustentar a pausa, eu acho mais difícil... eu acho que é um trabalho muito mais forte do intérprete de ficar sustentando esse vazio, né... que não pode ser vazio. Ah, então tem lá uma cena acontecendo e eu estou em cena, mas eu estou em pausa... e aí como fica meu olhar, como fica... Ou então se eu estou fazendo um trabalho que é muito teatralizado e tem menos dificuldade técnica, eu tenho que fazer uma ação mais lenta, e aí eu tenho que ficar muito mais focada no preenchimento dessa ação, eu acho que é mais difícil. É um desafio maior, mas os dois têm a sua potência igual, né? E aí eu acho que tem a questão da motivação interna, e ela não é a mesma que o público vê, né? Eu já vi trabalhos que tinham vários elencos que às vezes a motivação interna de um dos que mais me interessava como espectadora, quando eu escutava qual era a motivação interna, era a menos interessante; então ela não importa. E o Barba7 fala isso também, ele fala que pode ser ridícula a sua motivação interna, ela não precisa ser importante do ponto de vista do outro, porque, essa motivação, ela é muito íntima. E aí, falando da minha motivação, quando existe um desafio técnico, eu acho que ela está, por natureza, mais preenchida, mas ela corre o risco de cair naquele lugar mais mecânico, porque o desafio está muito mais focado no movimento, que pode se perder e, por outro lado, quando é um lugar contrário a isso, você corre o risco de escapar mais tempo durante a cena. Então, assim, tudo é um cuidado, né... o tempo todo. Em cada situação eu vou buscando uma referência. No Corpos frágeis8, que eu fico quase 30 minutos na meia-ponta, eu fico tentando preencher aquilo variando a qualidade do movimento, focando naquele universo que é muito teatral, porque a fisicalidade daquela situação é muito mais de resistência, né... e é uma resistência não só física, mas de você também continuar naquela sincronia com o grupo. E tem outras situações que é diferente o que pede; eu acho que cada situação demanda uma motivação interna e faz com que você se coloque de uma determinada forma na cena. E claro que tem o que é de cada um também, né... o que cada um traz. Eu tenho isso, eu tenho falado muito pro pessoal agora: "dancem com o coração", porque eu preciso muito dessa motivação no campo emocional, mas é uma particularidade minha. Tem gente que não trabalha com isso e é um intérprete superpresente. Então, esse lugar de como você se coloca como intérprete, como você se coloca presente na cena, eu acho que é muito pessoal e é uma busca diária... e é uma busca muito íntima, que tem uma relação com a proposta de cada trabalho, pra você ir encontrando a situação que cada cena pede, né?

Nessa entrevista, Vanessa Macedo nos diz que, diante de um desafio técnico muito rigoroso, ela percebe que o seu corpo se torna mais presente, pois o desafio faz com que ela "não tenha espaço nem tempo de fugir; sua mente não consegue dar uma escapadinha". Ora, se pensarmos nesse corpo agenciado pela dança, nesse "sistema-corpo" que se coloca em movimento e em relação com os desafios técnicos, José Gil nos propõe a ideia de que:

o movimento dançado também age sobre a consciência, suscitando uma "consciência-inconsciente" que caracteriza o estado de consciência do bailarino. Trata-se de "libertar o corpo" entregando-o a si próprio: não ao corpo-mecânico nem ao corpo-biológico, mas ao corpo penetrado de consciência; ou seja, ao inconsciente do corpo tornado consciência do corpo (e não consciência de si ou consciência reflexiva de um "eu"). (2013, p. 22)

 

A questão da técnica em dança: prisão ou liberdade?

No intuito de ampliar a discussão acerca da questão da técnica em dança (apresentada pela artista Vanessa Macedo), gostaria de compartilhar mais alguns trechos de entrevistas, realizadas com outras duas intérpretes-bailarinas que atuam na cidade de São Paulo9. As reflexões elaboradas por elas evidenciam como se dão suas relações com a questão da técnica na dança, muitas vezes entendida como aprisionamento do corpo. A primeira artista entrevistada, Danielli Mendes10, nos traz considerações significativas que nos auxiliam a encontrarmos outros modos de entendimento da técnica, para além do discurso da mera reprodução ou repetição de códigos, os quais poderiam resultar numa padronização e formatação dos corpos. Vejamos o que ela nos diz:

Autor: Danielli, como se estabelece a relação com o seu corpo quando você faz uma aula de dança com uma técnica já estruturada? Você enxerga o seu corpo como algo além de um simples instrumento?

Danielli Mendes: Tem duas coisas, eu acho. Por exemplo, em uma aula de balé, se eu tenho que colocar o braço... o braço tem um lugar onde ele tem que chegar, a perna tem um lugar onde ela tem que chegar dentro de um limite. Então eu tenho que visitar esse lugar; eu não tenho como fugir disso, entende? Eu tenho que tentar chegar até esse lugar e, pra mim, isso é autoconhecimento. Se me deixar sozinha ensaiando ou fazendo uma aula de improvisação, talvez eu não chegue nesses lugares que estão estruturados por uma técnica. Então, pra mim, tem essa questão de colocar o corpo em situações que já foram construídas e que funcionam, mas com certeza eu estou conectada com outras coisas. Eu não estou ali a serviço só do código. Pra mim, é autoconhecimento, é escuta de intérprete você se colocar numa aula de técnica; eu estou fazendo um trabalho de intérprete, eu estou tentando entender o que é que está sendo pedido para o meu corpo fazer naquele momento, né? E isso, pra mim, faz sentido agora. Então eu vejo como um processo de autoconhecimento do trabalho do intérprete você fazer qualquer aula estruturada, e se colocar em posturas... deixar o seu corpo visitar posturas que já foram elaboradas, né? Então, por isso, nesse sentido eu prefiro fazer uma aula assim do que ficar conectada com os meus próprios fluxos de movimento e reproduzindo eles... porque eu já fiz muito isso e eu acho isso muito importante, mas depois que eu visitar esses outros lugares, porque isso abre um espaço enorme. Então eu acho que tem que ter o momento que você organiza - quer dizer, não tem que ter nada, né? - mas eu estou sentindo que tem que ter o momento que você se coloca... Se você tirar toda a carga do balé, né... toda a carga que a gente tem de que o balé funda um bailarino... não, não funda! Você pode ser um bailarino sem fazer aula de balé. Na verdade, o que funda um bailarino? Nada, a não ser o desejo dele de estar em cena, se ele é um bailarino cênico, né? Mas eu acho que o balé organiza, tem um pensamento de corpo que é legal, pelo menos pra mim, nesse momento, de... até simbolicamente... por exemplo, se você abaixa a cabeça, se você levanta, em determinado ritmo, dinâmica, isso dá uma sensação pro corpo e eu acho importante passar por isso pra você ter mais material caso alguém, algum dia, me peça pra fazer ou ter um determinado fluxo de movimento, que é o que é pedido pra um bailarino; e aí, como você se relaciona com isso? E eu quero fazer esse tipo de trabalho; então eu preciso ter ferramentas, né?

Com as palavras de Danielli Mendes, podemos compreender que, ao realizar uma preparação corporal por meio de técnicas estruturadas, o intérprete-bailarino não precisa necessariamente lidar com essa prática apenas sob o ponto de vista do "aprisionamento", mas enquanto reapropriação de seu corpo, reelaboração de si e autoconhecimento. A partir disso, acredito que enquanto nossos corpos estiverem submetidos a padrões e posturas impostas pela própria vida no cotidiano - pelos próprios modos de vida codificados em sociedade -, qualquer aula de técnica ou qualquer prática corporal que o faça se movimentar de modos distintos o "libertará", e não o contrário. O mesmo se dá no caso de obras de dança criadas e materializadas por meio de coreografias estruturadas em partituras corporais, pois o tipo de movimentação que constitui determinadas técnicas de dança pode nos revelar características históricas, éticas e estéticas das épocas em que foram elaboradas. Além disso, ao se relacionar com essas gramáticas corporais, o intérprete-bailarino tem a possibilidade de atualizar, expandir e ressignificar essas informações no presente, atento às manifestações psicofísicas e energéticas que podem ser ocasionadas durante esse processo e, assim, verificando o que ainda reverbera e o que não ecoa mais; o que já está ultrapassado e o que ainda está, talvez, longe de ser superado. Dando continuidade às reflexões, trago à tona agora as palavras da artista Irupé Sarmiento11. Como veremos, ela compreende a técnica como uma oportunidade de colocar-se integralmente à escuta de seu corpo, estabelecendo diálogos sensíveis, imagéticos e poéticos com ele: uma relação com o corpo que ultrapassa a pura reprodução de formas e códigos preestabelecidos.

Autor: Irupé, como você faz para manter a técnica presente no seu corpo e como você enxerga a técnica na dança?

Irupé Sarmiento: Eu não sei... eu acho que hoje eu escuto muito o meu corpo. Eu faço o que ele está precisando... eu não forço ele. Eu escuto muito ele porque ele fala muito comigo. É engraçado porque eu nunca consegui ver a técnica como uma... como falar a palavra para não parecer estranho? Porque tem gente que vê o balé ou as aulas de dança como uma obrigação para manter o corpo com a técnica. Mas eu acho que a técnica não é uma consequência de você fazer aulas de balé. A técnica... você pode ter técnica fazendo qualquer coisa. E, para mim, não é o fim. O fim não é a técnica e, sim, o que chega no meu corpo. Tanto é que, para mim, fazer aulas de balé é dançar, não é uma coisa racional; eu não consigo pensar a aula de balé: eu danço ela. Então, quando chega alguém que me fala que o braço é assim e que eu tenho que ficar dura, eu não consigo fazer, porque eu sou completamente sensorial. Para mim, tudo é sensação. Se um coreógrafo me diz "eu gostei disso", o que eu registro é a sensação que eu tive e não o que eu estava fazendo com o corpo, a forma. Eu registro o que eu senti. Então, quando eu vou dançar, eu tento acordar as sensações.

Autor: Então, para você, a forma acontece naturalmente?

Irupé Sarmiento: Sim, mas claro que você estuda. Tem coisas que... a sutileza você trabalha, porque não é sair com a sensação por aí, porque, senão, fica sujo e um monte de coisa. Então tem um trabalho meticuloso de, por exemplo, quando você vai descer, como apoiar o pé no chão? Não é só cair. Quando você vai pegar em alguém, como você chega até a pessoa? Isso tudo, para mim, vem da sensação. Para mim, quando algum bailarino me põe no chão, é como se eu estivesse pisando em nuvens... então eu tenho esse cuidado com o que é. Tanto é que, quando alguém me corrige no movimento, eu preciso ver alguém fazendo para eu entender. Eu trabalho muito com a fotografia, com a imagem... às vezes eu decoro coisas só olhando. Eu não gosto de ficar repetindo porque eu acho que isso automatiza; eu estudo, eu faço... se tem que ficar cinco horas ensaiando, eu vou ficar, mas no lugar vivo, e não no da repetição. Se é só por repetir, eu não consigo, eu fico frustrada. Para mim, ensaio é como se eu estivesse no palco... tem que ser vivo.

Logo, a partir das palavras de Irupé, percebemos como a artista utiliza das próprias ferramentas da dança para alcançar outros estados de corpo, outros entendimentos de corpo e outros modos para reapropriar-se de si mesma. É possível notarmos também o modo integral de como a artista estabelece relações entre o seu corpo, sua subjetividade e sua imaginação simbólica com a materialidade daquilo que dança. Nesse sentido, temos a possibilidade de entender não somente a forma como um artista da dança realiza uma determinada sequência de movimentos, mas, principalmente, a relação que estabelece com isso; a relação de como emprega todas as capacidades de seu "sistema-corpo" para superar um desafio técnico e entregar-se ao movimento, sem entrar em conflito com ele. É, talvez, a composição dessa relação construída pelo intérprete-bailarino (materializada durante a realização dos movimentos), que pode auxiliá-lo a preencher uma ação e tornar o seu corpo presente, materializando poeticamente a corporeidade que a dança apresenta.

Desse modo, as estratégias usadas para uma criação em dança e/ou para estabelecer relações com um desafio técnico, por exemplo, podem estar diretamente associadas ao modo como intérpretes-bailarinos desenvolvem, apreendem e percebem, também, a consciência que possuem de seus corpos. Nesse processo, tornam-se presentes as dinâmicas de interações da consciência do corpo, desenvolvida pelos próprios intérpretes-bailarinos, com a consciência do mundo, transformando o modo como os artistas da dança podem perceber e se relacionar com a técnica, com a composição e com a realização do movimento numa criação em dança. A essa respeito, José Gil nos diz que:

A consciência do corpo não acaba no corpo. Mergulhando no corpo, a consciência abre-se ao mundo; já não como "consciência de alguma coisa", já não segundo uma intencionalidade que faria dela a doadora do sentido, não pondo um objeto diante de si, mas como adesão imediata ao mundo, como contato e contágio com as forças do mundo. Assim, [...] a consciência do mundo abre-se ao mundo graças ao corpo. Por sua vez, o corpo abre-se e multiplica as suas conexões com o mundo. (2013, p. 134)

Tal dinâmica se dá mediante uma compreensão de corpo que ultrapassa o corpo puramente mecânico, biológico, que apenas executa movimentos ou que é visto como um mero instrumento para a criação. Outros fatores, inconscientes e energéticos, subjetivos e intuitivos, entraram em ação durante o fazer artístico, ganhando plasticidade, materializando-se e constituindo-se enquanto o próprio movimento dançado, revelando-se entre o perceber e o agir, entre o sentir e o expressar. Assim, a interação desses fatores, provocada (também) pela prática da dança, consequentemente gera uma expansão das capacidades perceptivas e criativas dos intérpretes-bailarinos, os quais se transmutam em imagem-pensamento-sentimento, tornando-se a própria dança materializada enquanto criação poética.

Para concluir, podemos dizer que a experiência com a linguagem da dança (tanto com o pensamento construído a partir dela, quanto com a fruição de uma obra) é capaz de fazer circular aquilo que nos despossui do solo estável de nosso reconhecimento intersubjetivo; uma experiência diretamente relacionada e implicada com a abertura de alterações estruturais na sensibilidade, produzindo um curto-circuito nos modos reificantes da ação do corpo no mundo, em suas dimensões estética e política. Forçando o esquematismo da imaginação, a dança é a expressão da crítica a um corpo codificado, submetido aos imperativos comunicacionais e representacionais. Por nos lançar em zonas de indeterminação e de desconforto, a experiência estética com essa linguagem se constitui enquanto "liberdade como relação ao que me descentra. Liberdade como abertura a uma heteronomia sem servidão" (Safatle, 2018, p. 63).

 

REFERÊNCIAS

Bardet, M. (2014). A filosofia da dança: um encontro entre dança e filosofia. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

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Lehmann, H.-T. (2007). Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

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Safatle, V. (2018). A mais violenta das artes: expressão não-intencional e emancipação política a partir do romantismo musical. Revista do Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte da UFOP, 24,26-65. Ouro Preto, MG: Artefilosofia.         [ Links ]

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Valéry, P. (2011). Filosofia da dança (C. Feitosa, trad.). O Percevejo, 3(2). Recuperado em: 10 de jun. de 2019, de O Percevejo Online: http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejo online/article/view/1915/1541.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
RAFAEL HENRIQUE VIANA SERTORI
Rua Francisco Cruz, 549
04117-091 – São Paulo-SP
tel.: 11 96971.1632
rafael.sertori@gmail.com

Recebido 16.06.2019
Aceito 29.06.2019

 

 

1 Movimento de dança que tem suas origens marcadas no fim do século xix, início do século xx; entre os seus objetivos, estava a busca pela libertação das regras rígidas impostas pelo balé clássico. Seus principais precursores foram: Isadora Duncan, Doris Humphrey, Ted Shaw, Ruth St. Denis, Loie Fuller, Martha Graham (nos EUA); e Emile-Jacques Dalcroze, Mary Wigman, Rudolf von Laban e Kurt Jooss (na Alemanha).
2 De forma sucinta, a psicanálise implicada propõe que pensemos diferentemente o que já se sabe, em vez de legitimarmos o já conhecido. Requer observação atenta e demorada da obra para identificarmos suas singularidades; ou seja, a psicanálise implicada é "derivada das artes ou engastada nelas, pois não é uma forma a se aplicar à matéria exterior, não é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas exigências teórico-conceituais" (Frayze-Pereira, 2010, p. 37).
3 A entrevista foi realizada durante o desenvolvimento da dissertação de mestrado do autor, defendida em 2016 na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
4 A artista autorizou o uso do seu nome verdadeiro na dissertação de mestrado e em publicações posteriores. Vanessa Macedo é bailarina, coreógrafa e artista-pesquisadora. Dançou na Quasar Cia. de Dança (GO) e na Cia. Carne Agonizante (SP). Desde 2002, dirige a Cia. Fragmento de Dança, com sede na cidade de São Paulo.
5 Sandro Borelli é bailarino, coreógrafo e artista-pesquisador. Dançou no Balé da Cidade de São Paulo. Fundou e dirige a Cia. Carne Agonizante (antiga Cia. Borelli de Dança) e é presidente da Cooperativa Paulista de Dança (SP).
6 Luiz Fernando Bongiovanni é bailarino, professor, coordenador de oficinas, coreógrafo e diretor do Núcleo Mercearia de Ideias, com sede na cidade de São Paulo (SP) - informações obtidas por meio do site: http://www.luizbongiovanni.com.br/info.html.
7 Eugenio Barba (1936), italiano, é escritor, pesquisador e diretor do Odin Teatret. Criador do conceito da antropologia teatral e da International School of Theatre Anthropology (ISTA). Informações obtidas no site: http://www.odinteatret.dk/about-us/eugenio-barba.aspx.
8 Espetáculo da Cia. Fragmento de Dança, com coreografia e direção de Vanessa Macedo.
9 Tais entrevistas também foram realizadas durante o desenvolvimento da dissertação de mestrado do autor.
10 A artista autorizou o uso do seu nome verdadeiro na dissertação de mestrado e em publicações posteriores. Danielli Mendes é atriz e bailarina. Atuou durante dez anos na Cia. Mariana Muniz de Teatro e Dança (SP). Atualmente desenvolve trabalhos autorais e em colaboração com artistas, como: Morena Nascimento, Elizabeth Finger e Carolina Bianchi.
11 A artista também autorizou o uso do seu nome verdadeiro na dissertação de mestrado e em publicações posteriores. Irupé Sarmiento é bailarina formada na Argentina. Dançou no Ballet Contemporáneo del Teatro General San Martín, na São Paulo Companhia de Dança e no Balé da Cidade de São Paulo. Atualmente, dança no Ballet Augsburg, na Alemanha.

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