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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo enero/dic. 2019

 

RESENHAS

 

Para libertar a vida

 

 

Tiago da Silva Porto

Membro associado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 

Rolnik, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018, 208 páginas

Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto.
(Gilles Deleuze e Félix Guattari)

Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada é uma obra aberta no tempo. O livro da psicanalista Suely Rolnik agrupa três ensaios, algumas sugestões e três post scriptum que operam como reticências de um tempo não concluído. A escrita se inicia a partir de 2012, mas os acontecimentos narrados e seus movimentos não se findam com sua narrativa. Rolnik nos joga dentro de um redemoinho em curso, momento contrarrevolucionário, em que uma série de reformas reacionárias, heteropatriarcais e nacionalistas tentam desfazer uma série de conquistas sociais e emancipações sexuais e coloniais que se deram no Brasil e no mundo ao longo de séculos.

Rolnik vai além de uma análise desse contexto, ao nos oferecer um guia inconformista de possíveis posicionamentos diante desse cenário. No primeiro ensaio, O inconsciente colonial-capitalístico, apresenta-nos uma indicação de como se postar ante a própria existência, também propondo conceitos que vão ser balizadores para o entendimento do mundo em que vivemos. A tomada do poder por uma onda ultraconservadora em aliança com o capitalismo em sua forma financeiro-neoliberal tem um grande potencial traumático, acarretando mal-estar, medos, frustrações e uma grande sensação de impotência.

Diante desse traumático cenário, Rolnik aponta duas direções possíveis: ou sucumbimos ao medo, ou ampliamos nossos horizontes de decifração da violência em suas novas e antigas modalidades. Para além da luta na esfera macropolítica, tornam-se indispensáveis um reposicionamento e uma luta na esfera micropolítica - micropolítica sendo tomada aqui a partir da nomeação feita por Guattari para os contornos da vida privada que implicam na subjetividade e que ficaram excluídos da ação e reflexão políticas das esquerdas institucionalizadas, como a sexualidade, os afetos, o corpo e tudo aquilo que se refere ao íntimo.

Ao evocar a obra Caminhando, de Lygia Clark, a autora nos propõe dois percursos éticos possíveis perante a sujeição do inconsciente ao regime colonial-capitalístico. São eles: reproduzir o mesmo assujeitamento em uma micropolítica reativa ou lançar-se em um processo que procure driblar seu poder, uma micropolítica ativa, que aposte em lugares desconhecidos. Nessa obra, Lygia Clark toma a fita de Moebius e a recorta longitudinalmente. Ao recortar até o exato ponto de partida, o que se percebe é a reprodução da mesma forma. Mas, ao se recortar a mesma fita longitudinalmente, fugindo do ponto de partida, se produz formas inesperadas e completamente novas.

Rolnik toma esse modelo e designa o que nos é familiar em nossa experiência humana para um lado da fita, isto é, aquilo que pode ser organizado pela nossa experiência sensorial e sentimental. Ela coloca no outro lado da fita toda a dimensão do "estranho", aquilo proveniente de nossa experiência extrapessoal, nossa emoção vital, resultante do fluxo vital que atravessa todos os corpos, humanos e não humanos, e que neles ganha força e os transfigura. O incontornável paradoxo entre essas duas experiências, o estranho-familiar, díspares mas indissociáveis, coloca uma interrogação para a subjetividade. Essa tensão gera um campo de instabilidade e convoca o desejo para agir em busca de uma retomada de algum equilíbrio.

Ao pensar na direção e nos destinos desse desejo, Rolnik se distancia de algumas concepções caras à metapsicologia freudiana, mas que podem servir como provocação para a ampliação do campo do pensamento psicanalítico. A pulsão de morte é deixada de lado, e junto com ela a sua compulsão à repetição. A repetição se dará, mas por outras razões. A autora também retoma as posições anunciadas por Deleuze e Guattari em O Anti-édipo, em que a trama edípica serviria à política de subjetivação dominante ao tentar a submissão do inconsciente e seus desejos.

A dualidade pulsional é descartada em favor de uma pulsão vital, que pode escolher dois caminhos: ativo ou reativo. Disso decorre duas escolhas de ações políticas possíveis diante do desejo (escolhas estas inconscientes e não neutras). A força pulsional pode tentar repetir modos de existir e buscar representações não mais atreladas à compulsão e à repetição da pulsão de morte, mas orientadas por uma bússola moral que tenta restabelecer apressadamente o equilíbrio, restituindo o mundo em sua forma atual - um mundo onde a angústia é patologizada e tem de ser rapidamente silenciada, não importando por quais meios: químicos, bens de consumo ou discursos apaziguadores. Como alternativa, essa pulsão vital pode escolher o caminho da insurreição ante a sujeição ao regime colonial-capitalístico. Aqui a insurreição vai além da esfera macropolítica e seus protestos programáticos provindos da consciência. Para ela é indispensável uma insurreição micropolítica, um protesto pulsional do inconsciente, pelo qual se dará a reapropriação de nossa subjetividade que foi "cafetinada" na sua potência de criação e transformação.

E, para tanto, Rolnik nos sugere alguns caminhos para uma contínua descolonização do inconsciente:

Desanestesiar nossa vulnerabilidade às forças; ativar o saber-do-corpo à experiência do mundo em sua condição de vivo; desobstruir cada vez mais o acesso à tensa experiência do estranho-familiar; não denegar a fragilidade; não interpretar a fragilidade desse estado instável e seu desconforto como "coisa ruim", não ceder à vontade de conservação das formas de existência; não atropelar o tempo próprio da imaginação criadora; não abrir mão do desejo em sua ética de afirmação da vida; não negociar o inegociável; praticar o pensamento em sua plena função: indissociavelmente ética, estética, política, crítica e clínica. Isto é, reimaginar o mundo em cada gesto, palavra, relação com o outro, modo de existir - toda vez que a vida assim o exigir. (p. 195)

Aqui é incluída a prática psicanalítica ao se reassumir como um dispositivo fundamental da insurreição micropolítica, reapropriando-se de sua potência clandestina, ao dar ouvidos e voz não só aos sujeitos assujeitados nas práticas psicoterapêuticas, mas expandindo-se em sua fundante subversão por todo o campo social.

Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada não se coloca como um manual de prescrições para nos conduzir a uma vida plena ou a uma utopia revolucionária. O trabalho de descolonização do inconsciente se revela como um devir infinito, exigindo de cada ser vivente um desafio constante de combate às forças reativas do mundo e de nós mesmos (forças essas que se renovam em novos diagramas ao longo de nossa existência). Esse livro se coloca como uma provocação para reavivarmos nossa imaginação criadora. Uma provocação para aguçarmos os ouvidos e escutarmos a imanência das forças do mundo em nossos corpos. Uma provocação que nos ajudará a perceber a importância da construção do coletivo e a perceber a ressonância dos afetos dada pela tessitura de conexões subjetivas, que, por fim, poderá nos conduzir por novos e desconhecidos caminhos.

 

 

Endereço para correspondência:
TIAGO DA SILVA PORTO
Rua Purpurina, 155/121
05435-030 – São Paulo-SP
tel.: 11 99252.7765
tsp@uol.com.br

Recebido 16.06.2019
Aceito 29.06.2019

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