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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo ene./jun. 2020

 

EM PAUTA | O VALOR DA VIDA

 

O vírus e sua face bidimensional

 

The virus and its two-dimensional face

 

 

Marina Kon Bilenky

Psicóloga, psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coeditora brasileira da revista eletrônica internacional Psychoanalysis. Today. Diretora do Departamento de Publicações e Divulgação da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi). E-mail: marinabilenky@gmail.com

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trata de consequências da passagem repentina da experiência multidimensional, característica do encontro presencial com o outro, para o contato bidimensional, que ocorre virtualmente através da tela plana do celular, tablet ou computador. Ele parte da experiência vivida na análise de uma criança e usa a elaboração desse caso para pensar nos sentimentos de passividade e impotência despertados na população em isolamento social, devido à potencialidade de contaminação pelo coronavírus e da ameaça à democracia decorrente de acontecimentos sociais e políticos no Brasil.

Palavras-chave: Bidimensional. Multidimensional. Impotência. Passividade. Isolamento social.


SUMMARY

The article discusses the consequences of the sudden change from a multidimensional personal interaction, characteristic of the face-to-face contact with the other, to a bi-dimensional encounter that happens through the flat screens of celphones, tablets or personal computers. The starting point is the experience lived in the analysis of a child and the elaboration of this case as a thinking process about the feelings of passivity and impotence that people in social isolation is experiencing, due to the potential contamination by the virus and the threat that Brazilian democracy is facing because of a number of political and social events in Brazil.

Keywords: Bi-dimensional. Multidimensional. Impotence. Passivity. Social isolation.


 

 

"Deixa ela aí até o final da sessão!", diz Moa para a mãe, que corre atrás dele para tentar viabilizar nosso encontro. O menino fica revoltado com nossas sessões remotas. Briga e, bravo, larga o computador que nos conecta em qualquer lugar, enquanto sai correndo para brincar. Eu, nesse castigo imposto, não posso interferir na situação, estou longe de seu olhar, minha voz não é ouvida. Termino as sessões exausta e frustrada. Penso em parar de atendê-lo, mas seus pais insistem: ele tem estado nervoso e irascível quase o tempo todo. Depois de várias sessões, certo dia estamos iniciando um atendimento por Skype, quando Moa grita exultante: "Te prendi! Consegui te colocar na bolinha pequena!". Ri aliviado e se regozija com a situação. Aquela imagem grande e intrusiva da analista, que aparecia de repente na sua casa interrompendo suas atividades, estava, agora, contida no quadradinho pequeno da tela. A persecutoriedade da situação arrefece quando Moa percebe que pode ter controle sobre a intensidade de minha presença. Descobre que pode me fazer aparecer e desaparecer, fazer minha imagem aumentar ou diminuir. Essa brincadeira, versão tecnológica do fort da (Freud, 1920/1976), o acalma. Ele percebe que pode ser ativo na relação comigo, assumir o controle sobre minha presença/ausência e, a partir dessa descoberta, volta a sentir o desejo de me encontrar. O clima das sessões muda e ele declara: "Eu quero continuar fazendo análise".

As medidas de isolamento social tomadas como prevenção na pandemia de coronavírus resultaram na expulsão repentina da experiência multidimensional com o corpo uns dos outros e suas extensões: a sala de análise e os espaços compartilhados, locais que possibilitam sentir e medir a hostilidade, o acolhimento e a hospitalidade disponíveis a cada momento. A análise de Moa vinha sendo marcada pela vivência de entrar, ocupar o consultório, pegar os materiais que eu oferecia e construir seus "projetos", que seriam levados para casa, junto com alguma coisinha mais, um elástico ou palito de madeira, pedidos feitos com insistência, cuja minha eventual recusa ocasionaria uma intensa eclosão de frustração. A sessão já começava na saída da escola, e a mim eram atribuídas as dificuldades, os percalços e os acontecimentos que o enchiam de emoções que seriam descarregadas assim que nos encontrássemos. A sala era meu corpo, onde ele entrava para fazer experiências, manipular, usar ou se apoderar de meus conteúdos. Nos primeiros atendimentos remotos, as tentativas de reproduzir o que fazíamos utilizando os materiais que ele tinha em casa foram frustrantes e não possibilitaram uma reconexão. Muito pelo contrário, podemos pensar que ele se viu atirado para fora e, na impossibilidade de me usar como estava acostumado, sentiu-se à mercê de um objeto invasivo e truculento, que, em sua existência bidimensional, não permitia entradas e saídas, era uma superfície inacessível. Minha presença era sentida como uma irrupção abrupta sobre a qual não tinha controle e, impotente, ficava impossibilitado de regular o que abriria ou fecharia para mim.

Os primeiros encontros virtuais, especialmente aqueles entre pessoas que têm uma relação mais significativa, o que inclui a relação analítica, causaram reações as mais diversas e foram marcados pelo assombro.1 Além das dúvidas em relação à sua viabilidade e as angústias suscitadas pelas oscilações de sinal da internet, o impacto emocional causado pela nova modalidade foi intenso, e acomodar-se a essa situação exigiu flexibilidade dos participantes. O desejo multidimensional procurava seu objeto, mas encontrava, em seu lugar, um objeto formatado em uma tela de duas dimensões e era sentido como mais distante e inacessível. O esforço para garantir a continuidade de conexão nessa modalidade contrasta com a explosão de energia e vitalidade que ocorre naturalmente em encontros presenciais. Na superfície da tela, o objeto está lá, mas sua inacessibilidade sensorial provoca estranhamento e dor. Está presente, mas não pode ser utilizado. A imagem na tela reflete a presença do ausente e dá uma espécie de vida ao objeto, ao mesmo tempo que evoca um mundo perdido de experiências compartilhadas. O sujeito sente ter perdido algo valioso, mas a presença da imagem não permite a realização do trabalho de luto sobre a perda sofrida.

E mais, a presença do vírus e a necessidade de proteção ao contágio de si e do outro obrigam a uma vigilância constante, a um esforço de contenção. Os desejos precisam ser domesticados, e nos vemos obrigados a renunciar aos prazeres mais cotidianos, a gestos espontâneos, que nunca haviam sido questionados.

Além da suspensão dos encontros presenciais, a brusca mudança de paradigmas provocou uma grande quantidade de fantasias, medos e inseguranças. Nos atendimentos, eram frequentes os relatos de medo do vírus e da morte misturado com fantasias de que tudo à nossa volta poderia estar sendo destruído. A percepção aguçada da desigualdade e a ameaça de um grande levante das massas empobrecidas e famintas, postas em evidência com a paralisação das atividades econômicas, povoavam as sessões. Imagens de guerra ou da devastação do pós-guerra eram evocadas e transportadas para o futuro próximo, momento em que sairíamos de casa depois de a ameaça terminar.

Uma sensação de irrealidade nos rodeava, um medo constante, um sentimento de impossibilidade de ação e interferência nesse mundo novo que, de uma hora para outra, se abateu sobre nós. Moa expressa de maneira contundente a vivência de impotência desses primeiros tempos de quarentena, o sentimento de aprisionamento e assujeitamento diante da invasão de acontecimentos externos, que vinham ameaçar nossa integridade física e nossa liberdade.

De fato, a pandemia só fez precipitar a percepção da desigualdade existente no Brasil e no mundo e a extensão de seus efeitos. Enquanto alguns podem ficar confortavelmente isolados em seus lares, outros não têm casas que permitam o resguardo nem condições de fazer a higiene recomendada. Precisam sair às ruas, usar transporte público, enfrentar aglomerações diariamente devido à fome e à necessidade de obter o sustento. A presença do vírus descortina a vulnerabilidade a que a maioria da população brasileira está exposta e as diferenças obscenas da qualidade de vida das diversas camadas socioeconômicas.

Não é mais possível fechar os olhos e negar os efeitos nefastos desse problema que atinge a todos nós. A proliferação do vírus revela que somos interdependentes e que as realidades se interconectam, global e localmente. O vírus se alastra sem distinguir raça, cor ou classe social e ameaça a todos, revelando a fragilidade da estrutura que dá suporte à nossa existência.

Se não bastasse a insegurança, a falta de experiência e recursos emocionais e materiais para lidar com as dificuldades geradas pela ameaça de contaminação pelo coronavírus, no Brasil ainda somos bombardeados por notícias que se somam à gravidade da pandemia, quando não a ofuscam. A crise política e econômica, a sucessão de quedas de ministros, a falta de estratégias para conduzir a crise sanitária, o descaso do governo com o sofrimento da população, a destruição das florestas, povos sendo dizimados, o desmonte da cultura, da arte, da educação e da ciência se somam ao caos e aumentam a sensação de impotência. As dificuldades estruturais e o contexto político disputam com o vírus o foco de atenção, e a população atônita sente a força destrutiva que sorrateiramente invade as vidas pelas brechas e ameaça as instituições democráticas.

Paralisados, impedidos de nos encontrarmos na "pólis" para debater e procurar soluções para o problema que nos afeta, sentimos, como Moa, que a realidade entra em nossas casas e nos machuca sem que tenhamos controle sobre o que ocorre. Nessa realidade estranha, com ares distópicos, reencontramos o bidimensional. Aqui, ele diz respeito às ideias rígidas, fortemente marcadas por crenças inquestionáveis. A visão de mundo de uma maioria é confrontada com ideologias fortemente defendidas pelos que nos governam e que modelam a interpretação da realidade a partir de filtros muito particulares. E isso afeta a todos, pois a condução da crise é determinada por essa interpretação. A sensação de bidimensionalidade cresce quando somos alcançados por imagens e ecos do passado, que chegam a nossos ouvidos incrédulos. São vozes já esquecidas, que afirmam que a Terra é plana, o que existe é o que enxergamos, é o que está na superfície. Nesse contexto, impõem-se verdades autoproclamadas e que se justificam por raciocínios autorrefe-rentes. A vontade de um deve prevalecer. O conhecimento que vem das abstrações, a ciência é invalidada. Pessoas são tratadas como números, a morte, como fato naturalizado que perdeu sua dimensão de sagrado, seres humanos são meras unidades de rebanho, tudo bidimensional. Sob essa perspectiva, perdemos a profundidade, não há mais interno e externo, achatam-se os sentimentos. Declarações nos atingem com violência: "E daí?"2, "Todos nós iremos morrer um dia".3 Muita gente vai morrer, idosos morrem, gente da periferia morre, conseguiremos imunidade de rebanho e os mais fortes sobreviverão para reerguer o país.

Harari (2011/2018) descreve a espécie humana que prevaleceu na Terra, o homo sapiens, como predadores organizados em bandos que destroem a natureza por onde passam e levam espécies de animais inteiras à extinção. Esse bando, tal qual uma nuvem de gafanhotos, deixa no seu rastro a Terra devastada e consome de modo desenfreado todo o alimento que encontra em seu caminho. Surpreendentemente, uma nuvem como essa esteve rondando a América Latina recentemente, levando a metáfora a sair de seu hábitat simbólico para se concretizar diante de nossos olhos atônitos, assim como as imagens das queimadas e do desmatamento das florestas vieram ilustrar vividamente a destruição descrita por esse autor. Esse modo de não cuidado, essa forma de desgoverno, mais parece fazer parte da realidade bidimensional de um bando não pensante de "seres-coisa", que almeja mais e mais poder e controle sobre tudo o que está à sua volta, sem que nada possa demovê-lo desse objetivo.

Outro autor, que evoco e me ajuda a colocar palavras ao sentimento desse momento, é Agamben (1995/2002), com seu conceito de homem nu, aquele que é "matável" sem que esse ato adquira qualquer significado social e jurídico. O descaso dos governantes e o desprezo pelos milhares de vítimas contaminadas e mortas pelo vírus ou em decorrência de problemas desencadeados pela pandemia carregam um olhar que destitui os cidadãos de sua humanidade e os coloca no lugar de pessoas que podem ser mortas impunemente, como o outro que não é percebido como semelhante.

Em meio a essa paisagem de destruição, porém, há algo que pulsa. A humanidade já conheceu muitos momentos de retrocesso e desenvolveu diversas estratégias para impedir que suas marcas civilizatórias sejam apagadas ou suas conquistas, destruídas. Dentro dos homens, a força da pulsão de vida não pode ser desprezada.

De um lado temos a coerção, a imobilidade, a passividade e o sentimento de esmagamento e desumanização. De outro, a força que emana da solidariedade entre os que estão sofrendo todos esses efeitos. Nesse polo, encontramos ações concretas de ajuda material, produção intensa de pensamentos e reflexões sobre o momento em que vivemos e que são compartilhados por meio de textos e falas divulgados pela internet, redes de oferta de serviços essenciais gratuitos, canais de streaming que disponibilizam filmes, shows, música, arte, visitas virtuais a museus. A energia de Eros faz crescer a união entre as pessoas e dá força e poder aos que estavam paralisados. A violência da coerção pressiona e gera reações que pipocam por todos os lados. Grandes manifestações explodem pelo mundo afora. Os negros, grupo dos "matáveis" por excelência, saem da mudez imposta por séculos de opressão e gritam "Vidas Negras Importam!". Seus clamores ressoam ao redor do mundo e são repetidos por vozes de todas as cores. Outros grupos se organizam para protestar por seus direitos. No Brasil, os entregadores de aplicativo, aproveitando a visibilidade adquirida devido à importância de seus serviços durante a quarentena, ganham voz e saem às ruas. Aos poucos, a impotência e passividade cedem, surgem diversos movimentos que se organizam. A expressão "somos 70 por cento", cunhada por Eduardo Moreira,4 viraliza. Toda essa movimentação ajuda a retirar a população em quarentena de seu estado quase hipnótico de sujeição. A esperança retorna quando sentimos a diminuição daquela sensação de domínio esmagador à qual estávamos submetidos.

Morte e vida entrelaçados. Medo e cuidado.

A vida insiste e brota pelas frestas, como as raízes das árvores que teimam em crescer e quebrar o concreto que cobre a cidade. A vida segue pulsando. Nós, psicanalistas, aprendemos novas maneiras de buscar as manifestações do inconsciente nas sessões virtuais. A pluridimensionalidade dos afetos rompe seu veículo bidimensional e deixa espaço para a criatividade inventar formas de dar destino aos desejos e produzir meios de mitigar o sofrimento decorrente da ausência das pessoas queridas. As pessoas inventam formas de se encontrarem respeitando os cuidados. Desenvolvemos recursos para conter as angústias e intensidades que transbordam diante de tantas mudanças e dificuldades.

Tudo ainda provisório, tudo um tanto precário.

E a incerteza permanece neste país desgovernado...

 

Referências

Agambem, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: ufmg. (Trabalho original publicado em 1995)        [ Links ]

Freud, S. (1976). Além do princípio do prazer. In Edição standard brasileira das obras completas de Freud (J. Salomão, trad., v. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Harari, Y. N. (2018). Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L& PM. (Trabalho original publicado em 2011)        [ Links ]

 

 

Correspodência:
MARINA KON BILENKY
Rua Capote Valente, 432/46
Pinheiros 05409-001 - São Paulo/SP
Tel.: 11 3085.6020

Recebido 04.08.2020
Aceito 14.08.2020

 

 

1 Termo utilizado por Leopold Nosek e que dá nome a seu livro A disposição para o assombro.
2 Bolsonaro, 28/04/2020
3 Bolsonaro, 29/03/2020
4 Publicada no fim de maio de 2020, após a divulgação de uma pesquisa do Datafolha que constatou que a rejeição a Bolsonaro havia aumentado.

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