SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42 número69O dia em que eu não nasci: história de uma adoção diabólicaEm torno das questões de gênero e mudanças na perspectiva das relações com o corpo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

EM PAUTA | O VALOR DA VIDA

 

Indesejada das gentes: algumas considerações sobre a morte, o trabalho de luto e a capacidade de amar na atualidade1

 

Unwanted from us: a few considerations about death, mourning work and capability of love nowadays

 

 

Rosemary de Fátima Bulgarão

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). E-mail: rosebulgarao@gmail.com

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora parte da premissa de que na atualidade ocorreu uma desnaturalização da morte e do luto, o que parece ter levado a um apagamento sutil, mas vigoroso, da morte. Resultaria desse processo uma interdição do luto, não só dificultando ou impossibilitando a instalação do trabalho de luto, mas prejudicando a restauração da capacidade de amar.

Palavras-chave: Morte. Desnaturalização. Trabalho de luto. Capacidade de amar.


SUMMARY

The author starts from the premise that in fact a denaturalization of death and mourning, which seems, to have led to a subtle but vigorous erasure of death. This process would result in a interdiction of mourning, not only preventing or make it impossible or difficult to install the mourning work, but also hindering the restoration of the ability to love.

keywords: Death. Denaturalization. Mourning work. Ability to love.


 

 

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável)
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios).
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

(Bandeira, 2012, p. 133)

 

 

Introdução

Indesejada das gentes, como bem dizia o poeta Manoel Bandeira, não pensamos sobre a morte espontaneamente. Portadora dos maiores enigmas e das maiores angústias humanas, sempre foi temida e repelida, mas atualmente parece estar ocorrendo um apagamento ou banimento da morte e do luto. Curiosamente, ao mesmo tempo, há um horror que paira sobre o assunto, que é mais que o medo e desconforto que sempre existiram.

Partindo da premissa de que a morte e, consequentemente, o luto mudaram de status, e que essa mudança dificulta ou impede a instalação e resolução do trabalho de luto, gostaria de propor algumas considerações inspiradas no filme As partidas, do diretor Yojiro Takita, levando em conta o poema de Bandeira, uma obra de arte e um recorte histórico sobre a morte através dos tempos.

 

O poema, a arte e o cinema: três olhares sobre a morte

No poema "Consoada", Bandeira dialogava com a Morte e, entre o humor e o temor, preparou-se para recebê-la, como quem se preparou para receber uma visita indesejada, demonstrando uma serena resignação frente à iniludível.

No filme As partidas, que tomei como um análogo do processo clínico, como veremos mais adiante, o diretor Yojiro Taki-ta (2008) evidenciou, segundo me pareceu, o quanto a morte alimenta a vida, assim como a vida alimenta a morte, apresentando morte e vida como dois lados da mesma moeda.

Gustav Klimt (1908) artista plástico austríaco, representou em sua tela "Morte e Vida", a morte e a vida como encaixes inevitáveis, partes de um quebra-cabeça que se completam, como podemos observar na reprodução abaixo:

 


Clique para ampliar

 

Três artistas, três formas diferentes de arte que, no entanto, nos propuseram um olhar muito semelhante: morte e vida não como confronto ou opostos, mas como complementos, como um encaixe inevitável. Privilégio dos artistas?

Mesmo sendo a morte a estranha que habita nossas entranhas, em geral dela nada se quer saber ou nada pode-se saber. Será que sempre foi assim?

 

A morte através dos tempos

Sob as luzes lançadas pelo historiador Ariès (2014) em seu livro O homem diante da morte, encontramos dados sobre a morte, em épocas anteriores, que nos dão muito o que pensar.

Na Antiguidade, por exemplo, principalmente na cultura pagã, a morte era o centro da vida. Nascimento, desenvolvimento e morte eram pensados como ciclos da vida e considerados fenômenos naturais. A morte de um ente querido gerava tristeza e dor, havia o recolhimento do luto, mas o fato não era vivido como um horror ou como trauma.

Falar da morte e preparar-se para ela era corriqueiro, tanto que era comum as pessoas sentirem quando a morte estava aproximando-se, aproveitando a ocasião para despedirem-se de seus entes queridos, perdoar e por eles serem perdoados. Essa era a boa morte, e o medo da morte parece ter se intensificado, segundo Ariès, no fim da Idade Média, quando, com o apogeu do cristianismo e a divisão do homem entre um corpo que apodrecia e uma alma que era eterna, o cenário começou a mudar. Iniciaram-se as controvérsias sobre a dicotomia corpo/alma e:

Os moralistas, espiritualistas e monges mendicantes aproveitaram essa brecha na familiaridade costumeira para se introduzir no litígio e explorar, para fins de conversão, essa nova preocupação. Os homens da igreja fizeram tudo para meter medo, tudo, salvo o que arriscava levar ao pânico e desespero. (Ariès, 2014, p. 540).

Na Modernidade, entre o fim do século xix e início do século xx, o horror da morte já estava instituído, levando a uma proibição sutil desse assunto no cotidiano, tornando-o parte do saber médico que, a cada derrota para a morte, fortalecia o emudecimento, fazendo surgir um interdito nos hospitais: não se dizia mais que o paciente morreu, dizia-se que ele obtuou, como escreveu Fabio Herrmann (2006, p. 60) em seu trabalho "Morte e vida no hospital".

Na atualidade, a morte é privada, muda e sempre traumática, como se uma nova ordem tivesse sido imposta pela cultura. Perdemos a beleza triste da despedida que ocorria na Antiguidade e nos distanciamos da constatação da morte como fenômeno natural.

O luto, por sua vez, quando ocorre, deve ser breve, e o enlutado passou a ser sentido, de modo geral, como a presença excruciante do retorno do reprimido, do qual é preciso afastar-se, restando-lhe a solidão e o emudecimento. Isso revela a intolerância atual à dor, ao vazio e à falta de sentido derivados do buraco originado pela perda de um ente querido. Da boa morte, passamos para a morte selvagem.

É interessante lembrar que podemos constatar essa mudança de status da morte em um outro lugar, nos cemitérios. Vejam essas diferenças nas imagens selecionadas e, depois, passaremos às considerações sobre o filme.

 

Antiguidade: a visibilidade da morte como centro da vida

 

 

Idade Média: dicotomia corpo/alma

 

 

 

 

Cemitérios da modernidade: o mesmo lugar para todos

A proibição de enterrar em igrejas, devido às leis sanitaristas, exige que todos, sem exceção, sejam sepultados em cemitérios.

 


Clique para ampliar

 

A arte cemeterial: necessidade de diferenciar pobres e ricos

 

 

 

 

Atualidade: onde está a morte? A eternidade da vida e a brevidade da morte

O recorte histórico, o poema e a arte nos revelam a mudança de status da morte de fenômeno natural para fenômeno traumático. E os cemitérios da atualidade nos permitem pensar que, como não conseguimos retirar a morte de nossas vidas, nós a retiramos de nossas vistas.

 

 

As partidas: um diálogo com a clínica psicanalítica

As partidas é um filme profundamente tocante pela maneira sensível como o diretor Takita capturou e colocou em imagens a dor do desamparo, a importância vital da instalação e resolução do trabalho de luto e também pela beleza profunda com que nos deu a ver a construção, palmo a palmo, de uma vida mais amorosa e sincera.

O filme tem início com Daigo dizendo que quando era criança o inverno não era tão frio. Narrador de sua história, fez seu diagnóstico: vida inexpressiva e fria.

Acompanhamos sua impossibilidade inicial de lidar com o profundo sofrimento causado pela dor do desamparo, decorrente da perda do pai e da mãe ao mesmo tempo. O pai, ele perdeu para a garçonete do café, e a mãe, segundo me pareceu, para a melancolia.

Pensei em uma mãe que adoeceu melancolicamente, após ser deixada pelo marido, tolerando sobreviver funcionalmente. Sabemos que a melancolia, segundo Freud, é uma recusa da realidade da perda da pessoa amada, seja por morte ou por separação.

É em seu texto Luto e melancolia onde encontramos que: "o teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto" (1917/1974, p. 277). Mas ele nos ensina, ainda, que para algumas pessoas é impossível abandonar uma posição libidinal conquistada, e, então, pode ocorrer "um desvio da realidade e o apego ao objeto perdido se mantém por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo" (Idem, ibidem, p. 277).

Daigo e sua mãe, cada um a seu modo, estavam impossibilitados de elaborar o luto pelo abandono. Daigo escolheu uma profissão que o mantinha viajando pelo exterior, tocando violoncelo em uma orquestra. Sustentado por esse modo de habitar a vida, ele não sentia e não entrava em contato com as partidas, ao contrário, era ele, de coração partido, quem estava sempre de partida. E não pôde se despedir de sua mãe quando ela morreu - ele estava no exterior (inclusive de si mesmo).

Quando a orquestra onde ele trabalhava foi dissolvida, ele sentiu-se dissolvido. Tomado por sentimentos de impotência e fracasso, dizia que o violoncelo era pesado demais para ele. Pesado por quê?

Parece que a dor pela dissolução da orquestra foi investida pelo sofrimento da dissolução de sua família na infância, fazendo emergir e sangrar a velha ferida. O impacto da retrau-matização quase o fez submergir em uma hemorragia narcísica, levando-o a se culpar e esvaziar-se de suas potencialidades.

Espreita melancólica foi o nome que me ocorreu para pensar a subjetividade de Daigo - havia um flerte com a melancolia, não uma melancolia de fato. Nele parecia predominar uma luta e a busca pela compreensão, tanto que decidiu voltar para sua cidade natal, iniciando um processo regressivo análogo ao processo de análise, onde encontrou sua cura.

As parcerias (transferências) que Daigo estabeleceu com seu chefe/pai/analista e também com sua esposa/mãe continente foram os catalisadores de seu amadurecimento emocional. A partir desses encontros de vida, curiosamente propiciados pela sua lida com a morte, ocorreu uma evolução que saltou às vistas - ele passou da alienação para a repulsa e, depois, aceitação da morte, ao mesmo tempo que recordou, para não mais repetir seu passado.

E foi através desse recordar que surgiu um significado possível para o peso que o violoncelo representava, objeto de uma fixação no desejo infantil, impossível de ser realizado, de permanecer sendo aquele que unia o pai e a mãe através da música. Até então, ele não havia elaborado a dor dessa perda abrupta e traumática.

Vendê-lo, portanto, significava renunciar a sua identidade de menino-músico-encantador dos pais, o que era um alívio, mas também uma angústia. Essa fantasia onipotente diluiu-se quando a orquestra foi diluída, ocorrendo uma confusão entre dentro/fora, o menino machucado e o músico desempregado. Fragilizado e ferido, viveu essa experiência como um duplo fracasso.

Nesse momento, ele entrou em vórtice representacional (Herrmann, 2001, p. 43), não sabia mais quem era, vivendo a expectativa de trânsito, fonte geral de ansiedade que a análise produz, mas que o colocou em contato com seus sentimentos. Daigo se fortaleceu e, livre da fixação/obrigação, passou a tocar seu violoncelo espontaneamente, com leveza e prazer.

As belíssimas cenas finais do filme mostraram Daigo em pleno processo de reparação interna e externa, tanto do pai amado/odiado quanto de si mesmo. Mais integrado e situado na posição depressiva, reapropriou-se do jogo das pedras-cartas, portadoras de um diálogo afetivo exclusivo da dupla pai e filho.

Pareceu-me razoável pensar que o filme iluminou tanto a des-naturalização da morte e descaracterização do luto, tão presentes em nosso cotidiano, quanto as consequências daí resultantes, ou seja, a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de ocorrer a instalação e elaboração do trabalho de luto, a reinvenção de si mesmo e do bom objeto perdido e o comprometimento, inevitável, da capacidade de amar.

E se amar é o que nos torna vivos, como ensinou Freud ao dizer que precisamos amar para não adoecer, é a capacidade de amar que possui, tal como aqui proposto, função essencial no intrincamento da pulsão de morte.

 

Referências

Ariès, P. (2014). O homem diante da morte. (L. Ribeiro, trad., 1ª. ed.). São Paulo: Editora Unesp.         [ Links ]

Bandeira, M. (2012). Indesejadas da gente. In Uma antologia poética (p. 133). Porto Alegre: L& PM.         [ Links ]

Freud, S. (1974). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., v. 14, pp. 275-291). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1917)        [ Links ]

Herrmann, F. (2001). O método da psicanálise. In F. Herrmann, Introdução à teoria dos campos (1ª ed., pp. 49-63). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

______. (2006). Morte e vida no hospital. Jornal de Psicanálise, 39(71),57-64.         [ Links ]

Yojiro, T. (Dir.). (2008). As partidas [Filme]. São Paulo: Paris Filmes.         [ Links ]

 

 

Correspodência:
ROSEMARY DE FÁTIMA BULGARÃO
Av. Nove de Julho, 765/térreo, Jardim Apollo 1
12243-000 - São José dos Campos/SP
Tel.: 12 3941.5556/ 12 99770.3131

Recebido 22.05.2020
Aceito 01.06.2020

 

 

1 A versão aqui apresentada está modificada em relação ao trabalho apresentado na Reunião Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, no dia 9 de dezembro de 2018.

Creative Commons License