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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo Jan./June 2020

 

LITERÁRIAS

 

Fábulas e outros assuntos

 

 

Clarice Niskier

Atriz e dramaturga. E-mail: clariceniskier@gmail.com

Correspondência

 

 

A Jean-Claude Grumberg e Amós Oz,
amigos de sonhos, fábulas e poesias

1.

Ela ia para a escola com a sua pasta marrom e com os seus cabelos pretos cacheados. Sentava-se em sua carteira. O estojo de lápis, o caderno, a atenção, a professora, a saia cinza, a blusa branca. Tudo organizado, de repente, conectava-se com o pássaro ligado à sua mão por um fio invisível. Um albatroz, que sobrevoava o oceano sem pouso nem descanso. Ela mexia sua mãozinha para a esquerda, o albatroz fazia uma manobra para a esquerda. Ela mexia sua mãozinha para a direita, o albatroz curvava para a direita. Ela colocava a palma da mão embaixo da carteira, o pássaro dava um rasante no mar. Ela tirava a franja dos olhos, o pássaro subia aos céus. Se pensava no sanduíche guardado na pasta marrom, ele arrancava um peixinho prateado das ondas, e os dois, ela e o pássaro, se deliciavam com o peixinho na boca. Hum, seria assim o beijo, ela perguntava. O beijo de amor é como um peixe vivo dentro da boca? O pássaro respondia, sim. E ela pedia que ele devolvesse o peixe ao mar para que nunca lhe faltassem beijos de amor. Então devia existir o beijo baleia, o beijo tubarão, o beijo golfinho, o beijo foca, tantos beijos quantas criaturas marinhas ela conhecesse. Sim. E se cada peixe vivesse numa onda? Daria tempo de experimentar todas as ondas? Sim e sim. O pássaro batia as asas com a serenidade dos que migram eternamente. E quando a campainha do recreio tocava, e quando a professora chamava sua atenção, e quando ela não sabia o que responder sobre a matéria em giz à sua frente, e quando toda a turma ria de sua expressão assustada, ela sentia vontade de chorar, e ficava muda, e a melhor amiga entendia.

Ela cresceu.
Ela se casou.
Ela foi mãe.
Ela trabalhou.
Ela cuidou dos pais.
Ela chorou a morte da amiga.
Amiga da vida inteira.
Ela adoeceu.

Uma noite se lembrou do pássaro. Fechou os olhos e se esforçou para seguir o fio que um dia a ligara à imensidão dos oceanos onde a profundidade violeta saciava todas as fomes do mundo. Viu o pássaro sobre um penhasco, envelhecido, abandonado. Como foi capaz de esquecê-lo? Desprezá-lo? Por quanto tempo ele voou até desesperançar e pousar no penhasco, emagrecido, amedrontado? Vivo ou morto? Parecia empalhado. Com voz baixa, repetiu várias vezes, plumagem abundante, plumagem abundante. Só um lado respondia, só um lado se regenerava, o outro continuava desmaiado, esmaecido. Nenhum truque, nenhum desespero adiantaria. Abriu os olhos, e no espelho do banheiro reconheceu sua alma sem asas, seus cabelos sem ondas, a pele ressecada como se tivesse sido abandonada ao sol no alto de um penhasco. Como chegou até ali? A vida tinha suas perdas, mas tinha suas glórias. Como faria para rever o pássaro caçando beijos que fazem cócegas pelo corpo? Como faria para acariciar a barriga sobre a umidade do mar? Saberia viver as fantasias com os sentimentos mais legítimos? Ainda acreditava na vida? Saberia salvar seu casamento? Saberia viver sem a melhor amiga? Sem os pais? Com os filhos longe de casa? Havia disposição para enfrentar as ondas e se responder? Saberia morrer sem se deixar morrer? Estava envergonhada, humilhada. Fio invisível perdido da mão da criança. Fêmea onírica embalsamada na objetividade do dia a dia.

Mormaço.
Entrou no banho às 7h15 da manhã de um dia desses.
Água fresca, casa silenciosa, janela aberta, o vaso de violeta [no parapeito.
O pássaro se lançou do penhasco. Ela viu. Ela sentiu.
Envergadura de fêmea no ar.
Chorou, quis jurar, e jurou.
Para sempre atrelada à alma que sobrevoa os oceanos.

 

2.

Conta-se à mesa de jantar que a família fora presa pelos alemães: pai, mãe, filho e filha. Foram levados para os campos de concentração. Mãe e filha levadas para um pavilhão, pai e filho, para outro. Conta-se à mesa, e nós, crianças, já não tínhamos fome, que uma oportunidade de fuga se deu para o pai e o filho e a dúvida terrível se abateu sobre eles. Nunca mais veriam mãe, irmã, esposa, filha. Foram convencidos. Convenceram-se, e em nome da vida fugiram até o navio que os levaria para o Canadá. Os adultos comem, nós, crianças, queremos fugir para ver televisão, falar de outra coisa, mas, pressentimos, vamos aprender alguma coisa, afinal, todos ali nos amam, precisamos ouvir até o fim. Vovô volta a falar. Uma oportunidade de fuga se deu também para a mãe e a filha. Nunca mais veriam marido, filho, pai, irmão. A mãe prefere morrer a abandonar filho e marido no campo, implora à filha que vá, que se salve, que siga o homem que vende fuga aos judeus. A filha prefere morrer agarrada à mãe. Elas são convencidas. E, em nome da vida, o bem maior, fogem rumo ao navio que as levará pelo oceano.

Todos se encontram no mesmo navio.

O coração do mais descrente floresce.

O sagrado se revela entre os pratos e o silêncio.

Há três gerações todos moram juntos em um terreno que foi se expandindo, cada núcleo em sua casa, espécie de condomínio familiar no Canadá.

Agora a bisneta quer morar em outro continente. Os pais estão zangados. Os avós e os bisavós acham justo. Já é tempo do abraço do navio terminar.

Mas jamais esquecer. Enfrentar a dor da liberdade. Reencontrar o terreno amor, única chance de se multiplicar a vida, o bem maior.

As crianças repetem o sorvete.

Os tios vão se deitar.

Uma das crianças repete a frase: multiplicar o bem maior. E pergunta:

Meu coração nunca vai ser invadido por uma tristeza maior do que a vida, não é vovô? Eu vou conseguir multiplicar o bem maior, não vou?

A criança se levanta.

Pé ante pé vai até o quarto dos avós.

Vô? Vô? Quero te dar um abraço do tamanho de um navio. Toneladas de afeto o enlaçam.

A criança adormece.

A bisneta zarpa.

O avô sonha com os que não puderam partir.

 

3.

Rotina, trancar-se na sala ou no quarto para brincar de sentir. Imaginava uma história e começava a viver as personagens, sentindo cada momento com a verdade mais verdadeira que conseguia extrair de si. Olhava-se no espelho para medir o tamanho da transformação do rosto. Como podia mudar tanto? Chorava, ria, mudava o tom de voz, às vezes até batiam à porta e perguntavam: está tudo bem? Ela berrava, sim. Tinha trilha sonora para os momentos solenes, de dança ou reflexivos. Tinha roupa, lenço, até tesoura, chegou a cortar o cabelo da boneca da irmã para viver uma das histórias com mais realismo, o que lhe valeu um castigo. A graça era ver no espelho sua transformação. Era mais bonita do que podia. Quando eu choro, pensava, meus lábios ficam grossos, meus olhos ficam vivos, minha pele, branca, afina como a da areia da praia. Meus dentes, até os mais escondidos, aparecem, sou toda eu. Parece até que vou cair para trás quando solto uma gargalhada, por que não sou assim todo dia? Por que todos parecem viver como uns mortos-vivos? E, quando as irmãs queriam entrar no quarto, e quando tocavam a campainha da sala, ela interrompia a brincadeira e, contrariada, abria a porta para a família. Assim era, assim fazia.

Aos dezenove anos, uma dor de estômago a fez dobrar-se no assento de um ônibus circular. Melhor ir para o hospital, não para casa, disseram. Gastrite? Roía unha sem parar, comia doces o dia inteiro, fazia faculdade à noite, estagiava na redação de um grande jornal durante o dia. Profissão escolhida? Jornalismo. Namorava um rapaz bonito que fazia teatro. Contou-lhe sobre a dor dentro do ônibus. Contou à mãe a dor dentro do estômago. A mãe a levou no gastroenterologista. O médico receitou terapia. Contou ao namorado que ia fazer psicanálise. Não, ele disse, você vai fazer teatro. Não, ela disse, sou tímida. E o namorado a levou para o teatro. Ela tornou-se atriz. Nunca mais dor de barriga. Nunca mais unhas roídas. Nunca mais gastrite. Nunca mais jornalismo. Tudo no palco era verdadeiro como na solidão do quarto, com a trilha sonora preferida.

Num belo dia, quando completou quarenta anos sobre os palcos, conheceu um escritor e contou a ele como chegara ao teatro. Existem os anjos do destino, ele disse. Ao reencontrar o ex-namorado, numa tarde de domingo, numa dessas sincronicidades da vida, aproveitou e agradeceu: obrigada, você foi o anjo do meu destino. Ele riu, surpreso e triste. Comentou que não tinha encontrado ainda o próprio caminho. Antes de dormir, ela pediu aos anjos que olhassem por ele, e lhe concedessem a graça da longa estrada da vida. E pediu também, apesar da felicidade, que agora tivesse a coragem de brincar de sentir fora dos palcos. Entrar no escuro misterioso de si, onde ninguém bate à porta, onde ninguém toca a campainha. Onde não há estreia, imprensa, salva de palmas, noites de premiação ou de solidão. Pelo menos não aquela solidão que basta um telefonema e termina. Somente a outra, onde a fronteira violência-vida não se determina, medo-coragem nascem ao mesmo tempo, linguagem-história ainda estão por vir. Peço, dizia ela, que eu perca o temor de estar sozinha quando não houver ninguém me observando. Que eu experimente, uma vez na vida, estar ancorada em mim. Que eu sinta harmonia dentro da minha natureza, um coração batendo e pronto, só isso, e será como passear numa praia deserta à noite, sem lua, poucas estrelas, o barulho do mar de um lado, a areia quieta de outro, nenhum contorno definido entre a escuridão e meu corpo, mas saberei onde estou. Assim como a ave na solidão profunda da floresta sabe de si. Há muito tempo, caminhei à noite ao lado de uma amiga por uma fazenda, luz nenhuma vinha dos confins dos quatro cantos do mundo. Durante a caminhada, acendi lanterna, fósforo, isqueiro, vela, senti calafrio, arrepio, vertigem. Por entre as árvores, vi monstro, caveira, dragão, velha de verruga incandescente, lobisomem com dentes de marfim. Minha amiga ria, acostumada à natureza, eu tremia, acostumada à natureza do meu imaginário que, para o bem e para o mal, foi a minha intensa vida íntima. Anjos do destino, mais va-ga-lumes no entorno, menos fantasmas no interno. O privilégio de caminhar ao lado do anjo da guarda, sim, por favor, que isso me seja concedido. Há fábulas que, por mais corajosas que sejamos, precisam ser vividas com proteção na retaguarda.

 

4.

Onde a ficção for real, onde o real for ficção, onde os bichos falarem, onde os homens extraírem uma moral que os ajude a viver, onde houver seres mágicos, onde os próprios homens forem mágicos e puderem conviver, onde a luta do bem e do mal for travada, e o bem, de alguma forma, vencer, eis aí uma fábula, onde dizer o indizível ainda é possível.

 

5.

Não debocho da inocência, da ingenuidade. Meus animais, minhas aves, meus rios, plantas, espantalhos, demônios, espinhos me acompanham, são reais, quero dizer, não vivem trancados nos quartos da infância nem nos cadernos-espirais. São fábulas contadas e escritas. Já sei a diferença entre uma história e meu corpo. Sonhei várias vezes que meu corpo era de papel, o mesmo papel que eu colocava na máquina de escrever.

 

6.

Vô? Pelo método do confuso, como diz papai, estou conseguindo multiplicar o bem maior, não estou?

Onde quer que o senhor esteja, boa noite.

Vô? Às vezes acho que não vou aguentar a dor da liberdade. Mas se penso no senhor, no amor que sinto pelo senhor, logo adormeço, e sonho que estou dentro de um navio-abraço, desenlaçando oceanos, escalando penhascos, salvando albatrozes, multiplicando beijos que ondulam o meu corpo. Fêmea-fábula na escuridão de um bosque, sem pouso nem descanso.

 

7.

voz e palavra
palavra e voz
tesão e voz
tesão e palavra
voz tesão palavra
tesão voz palavra
voz palavra tesão
palavra tesão voz, esse corpo
esse coração, esse corpo de atriz que vocês veem, ouvem, sentem, esse corpo, perceptível para vocês, que estão no escuro da plateia, esse corpo iluminado no palco, não é perceptível para mim[com a mesma
nitidez que é para vocês, esse corpo, percebe o que vocês [transmitem do
escuro, o que dizem em silêncio, esse corpo percebe, entende, [sente, vocês.
esse corpo, esse coração, voz-tesão-palavra, se ilumina com os sentimentos que vem de vocês, do escuro de vocês, o escuro de [vocês é
claro para esse corpo e o meu escuro iluminado do palco é [claro para vocês,
esse jogo, o meu claro, escuro, o escuro de vocês, claro, esse jogo inconsciente, é o meu corpo, um corpo que transcende em outro corpo que apreende e aprende, tornando-se em cena um corpo absoluto, esse corpo é o meu único corpo presente.

 

8.

Olhei para o céu à noite, vi um arco-íris.

Que a ciência não me explique, pelo amor de Deus.

Olhei para o céu à noite, vi uma coruja com asas de águia.

Que a ciência não me explique, pelo amor de Deus.

Olhei para o céu à noite, vi caracóis de espuma driblando os átomos de um buraco negro, senti o desejo do vinho. Como pode a uva machucada, pisada, exalar aroma tão divino? Que a ciência não me explique, pelo amor de Deus.

 

9.

Quem disse que devo foder mais que ler.
Quem disse que devo foder mais que amar.
Quem disse que devo foder mais que plantar.
Quem disse que devo foder mais que sofrer.
Quem disse que devo foder mais que respirar.
Quem disse que devo foder mais que criar.
Sou do tempo em que foder era uma liberdade.

 

10.

Duas perguntas e três respostas: o que deve ser evitado? O que deve ser eliminado?

"Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida", Freud.

"A tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento", Freud.

"Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas, com frequência, são também a fonte de nossa força", Freud.

Obrigada.

 

 

Correspondência:
CLARICE NISKIER
Rua Viúva Lacerda, 249, bloco 03/603, Humaitá
22261-050 - Rio de Janeiro/RJ

Recebido 06.08.2020
Aceito 29.08.2020

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