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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo Jan./June 2020

 

LITERÁRIAS

 

Certezas: ilusões fraturadas

 

 

Cleuza Mara Lourenço PerriniI; Edival Antonio Lessnau PerriniII

IMembro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro fundador e efetivo com função didática do Grupo Psicanalítico de Curitiba. E-mail: cleuzaperrini@gmail.com
IIMembro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro fundador e efetivo com função didática do Grupo Psicanalítico de Curitiba. E-mail: edivalperrini@gmail.com

Correspondência

 

 

Detém a colher, deixa um pouco a sopa:
a vida também esfria.

(Alphonsus de Guimaraens Filho)

O mundo cabe dentro da realidade. Quantas vezes afirmamos e cremos em verdades inquestionáveis? Nossa linguagem coloquial é repleta de "é verdade!", "na verdade!", e por aí vamos aprisionando nossas certezas em, nada mais, nada menos, do que a própria verdade. De repente, uma pancada. Somos parados por uma pandemia e topamos com uma "nova realidade". O mundo real cabe na realidade, mas nem tanto: eu só sei que nem eu mesmo sei! É o impacto que nos traz Pirandello em Assim é (se lhe parece). De repente, a nossa objetividade e as nossas certezas ficam absolutamente fraturadas.

O parecer fica mais forte do que o pensar. O estar junto e o enxergar a realidade do outro (e a nossa!) torna-se indigesto. O curto-circuito nos arremessa para as lonjuras onde o nosso eu isolado não mais pode se abastecer, nem dos encontros, nem da presença. O mundo virtual não é mais o mundo do possível presencial. Ficar junto passa a ser diferente.

Precisamos reaprender rápido, ser capaz de olhar o real com outros olhos: a vida também esfria!

O cenário nos propõe desconstruções. Há que se abrir mão, corajosamente, da crença em verdades plenas.

É um tempo de desacontecimentos. Não dá mais para fazer de conta que não é conosco. "Aos poucos percebi que só poderia me colocar diante do outro, de todos os outros, como eu era. Quebrada. Com toda a integridade das minhas fraturas, das quais finalmente fiz um vitral" (Brum, 2014, p. 142). O desafio é ter fé, paciência e humildade para se chegar ao vitral. Lidar com a certeza de que padeceremos antes ou crer que a força está justamente em suportar nossa fragilidade.

"Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar?", resume o poeta Djavan. O acreditar que se sabe todas as coisas lança-nos no mundo das contradições onde nem com a esperança podemos contar. Não podemos aprender com a experiência. A cegueira é mental.

E quando fechei a porta do consultório pensei: será que volto aqui outra vez? Desci as escadas com o coração apertado e ao mesmo tempo liberto e descomprimido. A urgência é pelo cuidado. E era só por 15 dias! Mas nada era mais forte do que não saber o que podia inesperadamente acontecer naqueles dias pretendidos de isolamento.

O fato é que estamos em estado de guerra entre a vida e a morte. Aliás, sempre estivemos, e desde que nascemos, como, inconvenientemente, nos lembra o poeta: "a gente mal nasce, começa a morrer...". Só que agora o inimigo oculto nos obriga a considerar a "nova verdade". Se quisermos continuar do lado da vida é preciso estar atento e lutar com as armas que temos. As palavras não descrevem as emoções que vêm aos pedaços, em fluxos como uma sangria desatada. Estamos todos por um fio!

Os gregos dizem que o tempo é inexorável. Mas é também com o tempo que contamos agora. Quanto tempo precisamos para dar conta dos maléficos intrusos na nossa vida? Mas de quais intrusos estamos falando?

Há muito pouco tempo, líamos estarrecidos que os habitantes do outro lado do mundo iam até o portão de suas casas, com máscara e luvas, para pegar Correspondência na caixa de correio. Isso acontecia muito distante de nós. Ficávamos ainda mais estupefatos acompanhávamos seus périplos para entrar em um supermercado, farmácias, padarias, bancos: precisavam estar longe, uns dos outros, cerca de um metro e meio. Hoje essa é a nossa realidade. Não foi o perigo que mudou de hemisfério. Nós é que estamos percebendo que vivemos todos juntos, no mesmo planeta. Eis a nova-velha realidade, para ser respeitada ou burlada! Mas ainda nos resta viver um dia de cada vez e suportar não saber aonde tudo isso vai nos levar, nem se tudo isso vai se modificar e voltar a ficar minimamente parecido com o que conhecemos. Costumamos dizer que aspiramos pelo novo. De fato ansiamos pelo velho, conhecido, comprovado, familiar.

Mesmo a ciência, que se baseia em debate de ideias e no exame de fatos que podem constituir um senso comum e científico, não é irrefutável. É como a psicanálise que, por examinar situações e vivências contraditórias, desemboca no plural. E o plural é controverso. Por isso permite olhares diferentes. A psicanálise, como a ciência, não alimenta dogmas. As diferenças são o catalisador, a alavanca do desenvolvimento pessoal e social.

Encarar as incertezas não significa desprezar ou se intimidar diante dos fatos novos. Principalmente numa situação em que o novo está presente em cada esquina e não pode ser negado no clima ameaçador de uma pandemia. Aí está o movimento que nos desafia na nova convivência conosco e com os outros, sempre tão diferentes de nós.

O despertar da solidariedade, como um retorno ao feminino, em qualidade e função, pautada no amor, na amizade e na comunhão - primeiro consigo próprio, depois com nossos parceiros de convivência social -, é o embrião propiciador da continência dos conteúdos terroríficos que diariamente nos são apresentados. Aceitá-los (que é a essência do feminino) e viver com elas (as incertezas) favorece o se afastar das ilusões que nos cerceiam mais do que nos libertam. "Tentamos nos cercar com o máximo de certezas, mas viver é navegar em um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos", nos aponta Edgar Morin, em seus 98 anos. Todas as coisas promovem danos e benefícios. É da vida, e é a vida. E o aprendizado responsável passa pelo reconhecimento dos equívocos. Não somos uma ilha. Queiramos ou não nossos destinos estão ligados globalmente, e as emoções criam ou rompem laços.

E a música, se a podemos ouvir, continua:

Depois da chegada vem sempre a partida,
porque não há nada sem separação.
Sei lá, sei lá, a vida é uma grande ilusão.
Sei lá, sei lá, só sei que ela está com a razão.
De nada adianta ficar-se de fora.
A hora do sim é o descuido do não.
Sei lá, sei lá, só sei que é preciso paixão.
Sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão.
(Vinicius & Toquinho, faixa 12)

Estamos saturados de pareceres, de "verdades" que impossibilitam nossa condição de investigar. Sem investigação não existe pensar, único caminho que pode gerar desenvolvimento pessoal e social. Encontramo-nos diante de um momento paradoxal. Há um novo olhar disponível. Com ele, podemos permanecer paralisados ou reescrevermos Pirandello: assim é (mesmo que não lhe pareça).

 

Referências

Brum, E. (2014). Meus desacontecimentos. A história da minha vida com as palavras. São Paulo: Leya.         [ Links ]

Guimaraens Filho, A. (1984). Paixão. Nó. Poemas. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Moraes, V.; Toquinho (1988). Sei lá... A vida tem sempre razão. Convite para ouvir Toquinho e Vinícius. [cd]. São Paulo: RGE.         [ Links ]

Morin, E. (2020). As certezas são uma ilusão. Recuperado em 10 mai 2020, de Fronteiras do Pensamento: https://www.fronteiras.com/entrevistas/edgar-morin-as-certezas-sao-uma-ilusao.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
CLEUZA MARA LOURENÇO PERRINI
Rua da Paz, 195/211, Centro
80060-160 - Curitiba/PR
41 3336.0201 / 41 99994.0902

EDIVAL ANTONIO LESSNAU PERRINI
Rua da Paz, 195/416, Centro
80060-160 - Curitiba/PR
Tel.: 41 3264.6661

Recebido 23.07.2020
Aceito 14.08.2020

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