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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

LITERÁRIAS

 

Entre rosas e baobás

 

 

Felipe F. De Nichile

Membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Nas ondas tortas desta prática diária que é ser um analista em [formação
Principalmente nestas semanas, nos dias escuros
Nas últimas horas que se estendem longas, ou até mesmo um [segundinho atrás
O momento exato em que a pequena nave em que navegava, [caprichosamente,
Em uma ilha deserta, sob a luz da Lua e das estrelas, teimou naufragar.

Neste local sagrado, onde a solidão essencial se fez presença,
Ilustra-se a experiência vivida, vivida frente a alguns analisandos
Onde vi surgir sorrindo a singela figura de um "pequeno príncipe".

Antiga nova figura, recém-saída de um livro adulto,
Folheado muitas e muitas vezes em uma minha mitologia de idade [infantil
Teria sido possível de fato lê-lo? Ainda hoje não o alcanço
Ainda que sua estimada ausência insista em me visitar em certas [sessões
O semblante de seus cabelos revoltos, amarelos, da cor do trigo
Que cativou meus olhos e meu coração insiste em me interrogar: "Desenha-me um carneiro?".

"O essencial é invisível aos olhos!" - teria sido possível lembrá-lo
Ouvi-lo, compreendê-lo? Descrevê-lo?: "Desenha-me um carneiro?"
Freud talvez tenha dito que um "insight" como esse só se tem [uma vez na vida.

No pequeno asteroide B612, em uma galáxia distante, mas também [muito próxima
Este pequeno príncipe passava seus dias absorto
Em uma incessante luta contra a destruição de seu pequeno mundinho
Sementes chegavam incertas, fazendo a noite conceber do vento
Germinando ameaçadoras mudas do titánico "baobá" vilão.
Afinal, tal qual o jôio, tal qual o trigo, em estado nascente sempre [tão similares.

Naquele fértil torrão de terra frágil, nada jamais crescia
Sem que em seu avesso trouxesse consigo a sombra caótica do [destempero
E assim seguiam os dias deste principezinho, em seu trabalho de [formiguinha
Um Hércules com sua enxada, batalhando para sozinho exterminar [os males do mundo.
O que não quer dizer que a tarefa não fosse gratificante - era [pai e era filho.

E quem diria, o Zéfiro travesso
para além daquelas sementes torpes de baobá maléfico,
Fez despertar no reino uma mudinha de arbusto,
Foi neste berço verde onde nasceu uma magnífica Rosa,
resplandecente em sua veste escarlate, flor que o pequeno ainda [desconhecia.

Rosa, Roberta, Evelin, Bianca, mamãe ou Marcos,
tantos eram os nomes da perfumada beldade
Que apesar de para muitos ser bastante ordinária
Era estonteante e arrebatadora em sua singular presença.

A intensidade reluzente do vermelho fulgurante
Tornava, daquele dia em diante, o mundo do pequeno mais iluminado
Todavia, quando mais brilhante a luz, mais intenso se torna o [breu da escuridão.

Quão belos dias, aqueles que passava cultivando sua pequena flor
O delicado veludo de suas doces pétalas o faziam sorrir com um [simples toque
Mas a maldade pontiaguda de seus terríveis afiados espinhos
Fustigavam com crueldade a pele de seus delicados dedos reais,
Nostálgico, passou a sonhar com a rosa
Uma lembrança saudosa, embora já não mais soubesse

As gotas de sangue rosa que vertiam das chagas de seus dedos [dormentes
Despertavam lágrimas amargas, transformavam seu amor em morte
Assustou-se ao se pegar tramando um acidente
para acabar com a vida daquela rosa delinquente.
Surge a culpa, surge a cúpula, urge a peste, urge o frio Era preciso fugir, se desencontrar,
Escamotear-se das sombras malignas
Que a poderosa flor o fizera vivenciar.

Ao idealizar Rosa, se perdeu do fato
De que o que ali havia era apenas uma pequena flor
E agora confuso já não sabia mais apontar
Qual daqueles dois arbustos
Seria o velho "baobá"?
Somos ainda tão jovens para o amor.

 

 

Correspondência:
FELÍPE F. DE NICHILE
Rua São Carlos do Pinhal, 124, Bela Vista
01333-000 - São Paulo/SP

Recebido 22.06.2020
Aceito 10.07.2020

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