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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo ene./jun. 2020

 

RESENHAS

 

Uma imagem do mundo: realidade e imaterialidade

 

 

Walter José Martins Migliorini

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), docente do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis/SP. E-mail: wjm.migliorini@icloud.com

Correspondência

 

 

Walter Trinca. Uma imagem do mundo: realidade e imaterialidade (Série Escuta Psicanalítica/ coord. Marina Massi). São Paulo: Blucher, 2019, 348 páginas.

O procedimento de desenhos-estórias (2013) contém em si a semente da obra vindoura de Walter Trinca, pois anuncia: 1) um exercício de contato com a imaterialidade da composição do entrevistado e com o próprio campo da entrevista; 2) uma região de fronteira entre diversos campos do saber e perspectivas teóricas; 3) uma situação clínica onde o essencial não é a tarefa ou o produto resultante e, sim, o desvelamento do contato consigo mesmo e com o outro. Nos últimos anos, tenho acompanhando como resenhista o desenvolvimento de sua concepção de conjunto e de síntese estrutural da psicanálise (Trinca, 2011, 2014, 2016). Suas investigações resultaram em um modelo global da mente e na descrição fenomenológica da experiência de contato com o ser interior. Experiência ordinária, uma vez que mundana e extraordinária, quando reveladora da poesia do mundo. Em outras palavras, suas investigações resultaram no reconhecimento da existência de uma espécie de "arquitetura" humana que nos toma e nos leva -de modo pessoal e súbito - ao encantamento com a imaterialidade do mundo. Como se dá esse mistério? Quais as raízes dessa sensibilidade aparentemente impensável que nos toca em momentos únicos e inesquecíveis? Como um caçador de borboletas, o poeta devotado ou o poeta em cada um de nós aguça a sua sensibilidade ou a educa - esperançosamente -, aberto e livre para capturar, submergir, entregar-se ou vislumbrar esses instantes. Diferentemente do caçador, ele não coleciona suas presas, mas se entrega aos mistérios de mantê-las livres e vivas, indicando o caminho ou o estado de alma cultivado, pelo qual se pode entrevê-las. A tarefa de investigar tais experiências - praticamente inexploradas pela psicanálise - é o tema de Uma imagem do mundo: realidade e imaterialidade. Nessa "arquitetura" haveria, então, uma prontidão sensível do ser, de diversidade e riqueza vertiginosas que, ao longo da História, tem deixado seus sinais por meio de imagens imateriais do mundo.

Imagino que o primeiro desafio do autor - assim como o de um poeta - tenha sido o de desenvolver o vocabulário apropriado para descrever, adentrar, entrever, antever o inefável e suas "cintilações imateriais" (p. 47). Como "raízes" a antecipar o "tronco" da obra, um detalhamento preliminar das modalidades de experiências imateriais anuncia a tarefa da primeira parte do livro: reapresentar o processo de humanização por meio dos registros de imagens imateriais - e, portanto, expressivos da interioridade do ser - encontrados já nas pinturas rupestres, como as das cavernas de Chauvet e Lascaux. A busca por essas evidências passa por períodos - geralmente áureos - em que o ser humano encontrou um lugar para a expansão da mente: no apogeu da civilização minoica; no reinado solar do faraó Akhenaton; na construção e reconstrução da acrópole ateniense; na delicadeza da poesia da dinastia Tang e da pintura da dinastia Song; nos vitrais faiscantes das catedrais góticas e na pintura renascentista; nas paisagens interiores no Romantismo; no jogo de luzes e cores do impressionismo de Claude Monet e Paul Cézanne; nas obras interiorizantes de Hermann Hesse (1877-1962) e Henry David Thoreau (1817-1862) e na mística de Krishnamurti (1895-1986). Assim, ao longo da História, os universos criativos do artista, do filósofo, do escritor e do místico se aproximam, e a significação universal de suas obras reverbera em nosso íntimo, de maneira tal que também o "nosso espaço mental se imaterializa, tornando-se ele próprio aquilo que o soleniza, em reverente ligação com a vida e suas origens ancestrais" (p. 119). Tal reverberação seria uma evidência: 1) de contato com o ser interior e; 2) de que as formas mais elementares do que viria a ser a pessoalidade já se encontrariam nessas experiências humanas primordiais de enlevo ou de assombro diante da realidade. Cabe então discriminar esse fenômeno de outros, como os estados alterados de consciência, provocados pelo uso artificial de substancias; as experiências místicas autoinduzidas e os estados alucinatórios nos quais está presente uma "recomposição sensorial do mundo segundo as angústias e os desejos humanos" (p. 324).

A terceira parte do livro é dedicada à psicanálise e ao lugar ocupado por Uma imagem do mundo: realidade e imaterialidade, na "geografia" de seu modelo global da mente (Trinca, 2011; 2014; 2016). Esse modelo é uma reapresentação sintética da psicanálise, em que o grau de aproximação ou distanciamento de contato com o ser interior é concebido como um eixo contínuo imaginário, cujo marco zero é a experiência pessoal de inteireza. À medida que esta última esvanece, revela um degradé de facetas de perturbações psíquicas. Na direção inversa, graus crescentes de contato com o ser interior implicam em expansão da mente e acesso ao colorido imaterial da "viagem ao coração do mundo". Embora a psicanálise não seja uma disciplina devotada a este último tipo de vivência, incidentalmente pode favorecê-lo quando estabelece as bases teóricas e práticas para a compreensão do que o impede, ou seja, a pulsão de morte, as impregnações, saturações e angústias de dissipação do self e a submissão a valores impessoais que caracterizam as diversas formas de perturbação do psiquismo. No campo social, tais experiências de empobrecimento da vida mental são encontradas em todo tipo de coisificação do homem, de subserviência e adesão irrefletida a ideologias desumanizantes. Em contrapartida, os psicanalistas realizam um exercício diário de busca de contato com os aspectos imateriais da realidade interna e externa, por exemplo, quando vislumbram a dimensão onírica na fala literal de seus pacientes. Ou quando se colocam atentos "ao ponto de ultrapassagem do dado meramente sensorial para o atingimento de experiências de melhor qualidade, que se configuram como evolução psíquica" (p. 15). Assim, se uma análise for bem-sucedida, "ela surge como alternativa válida para a ressignificação e o reencantamento do mundo" (p. 252).

O ser interior é a forma absolutamente única de como a sensibilidade de uma pessoa se apresenta no mundo, bem como o potencial de apreender em si mesma os princípios de organização harmônica da natureza, também presentes na interioridade do ser humano. Diferentemente de outros autores que postulam um núcleo central presente no próprio self, Walter Trinca considera o ser interior como o núcleo primordial e essência da pessoalidade, definindo-o como uma "entidade psíquica com existência e dinâmica próprias" (2016, p. 11). De fato, é o grau de contato com a própria interioridade que determinaria as distintas modalidades de organização e de estados de self (estes últimos mais episódicos e mutantes) e, por decorrência, as múltiplas condições de ampliação ou de constrição da vida psíquica.

Os últimos capítulos são destinados a uma discussão a respeito da imaterialidade e realidade e a uma síntese dos princípios sobre os quais repousa a imagem do mundo. A saber, a radiância, a dimensão onírica, a vivacidade, as imagens mentais espontâneas, a abrangência, a harmonia, a transfiguração, a primordialidade, a atemporalidade, a infinitude, a totalidade e o mistério. Dentre eles, destaco as imagens mentais espontâneas, que me fizeram relembrar de algumas experiências e refletir sobre a captação das imagens imateriais do mundo:

Durante minha infância, era relativamente comum que, ao fechar os olhos, eu me pegasse "enxergando" uma miríade de imagens multicoloridas e multiformes que se desenhavam, espontaneamente, diante de meus olhos - paradoxalmente - fechados. Seres, formas abstratas e cores, se alternavam e recompunham com movimentos próprios, para o meu deleite. Até a adolescência essa habilidade era muito viva, mas com o tempo, foi rareando: as imagens ainda ocorriam ao longo do dia, mas passei a apreendê-las com um grau variável de dificuldade. Mais tarde, durante o curso de psicologia, a expressão mais próxima que encontrei para nomeá-las foi a pomposa "imagem hipnagógica". Porém, era um conceito insuficiente para o meu caso, porque se restringia àquelas experiências do lusco-fusco entre o adormecer e o acordar.

Com Walter Trinca, essas recordações ganharam uma conceituação e um nome mais justo e inspirado: imagens mentais espontâneas. Consideradas, então, como sínteses criativas de processos naturais, elas deixariam transparecer a existência imaterial da realidade sensorial, quando captadas pelo ser interior e convertidas em uma espécie de "matriz imaterial" (p. 269) de cintilações que:

brotam espontaneamente em formas, cores, brilhos e movimentos [...] frequentemente, as formas são delicadas, as cores esmaecidas e os brilhos são reluzentes. Nem sempre as imagens são bem constituídas, mas tendem à organização e à representação da arte interior. Elas surgem como luzes e coloridos interiores, pigmentações e borrões coloridos, mosaicos de diferentes tonalidades e outras formas soberbamente arranjadas. Por vezes aparecem como pedras brilhantes e fluorescentes, flores de textura aveludada, correnteza de águas barulhentas, movimentos de pessoas e de animais, árvores frondosas, pássaros coloridos em ramagens, além de infindáveis outras manifestações. Em especial, elas têm o dom de imprimir delicadeza, harmonia e silêncio à interioridade. (p. 267)

Interessante como o fenômeno é descrito de modo a não ser reduzido a um sentido apenas sublimatório ou escapista, embora a imagem mental possa também servir a sistemas defensivos e à saturação sensorial do psiquismo - provocando assim um distanciamento do contato com o ser interior. Entendo que objetos imateriais não são redutíveis a bons objetos internos, tampouco são objetos transicionais, embora partilhem fronteiras entre ambos. Trata-se aqui de um fenômeno específico: a imaterialidade resulta do contato da profundidade da mente com a profundidade do mundo, em uma região de fronteira onde a distinção entre imanência e transcendência é borrada. Para investigar as sutilezas desses instantes em que captamos os sonhos da matéria em nosso cotidiano, são necessários instrumentos apropriados. As imagens do mundo condensam uma das facetas fundamentais da psicanálise compreensiva: os resultados da invenção e da utilização de um modelo global da mente centrado no "coração" do ser, que permite ao psicanalista abordar os estados criativos de expansão da consciência.

 

 

Referências

Trinca, W. (2011). Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

______. (2013). Formas compreensivas de investigação psicológica: procedimento de desenhos-estórias e procedimento de desenhos de família com estórias. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

______. (2014). Viagem ao coração do mundo: a apreensão da imaterialidade. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

______. (2016). As múltiplas faces do self. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
WALTER JOSÉ MARTINS MIGLIORINI
Al. Marselha, 50, D'Ville Residencial
19815-606 - Assis/SP
Tel.: 18 99611.2227

Recebido 13.05.2020
Aceito 14.06.2020

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