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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

O príncipe e seus reinados: a vida fulgurante de um membro da elite imperial1

 

The prince and his reigns: the shining life of a member of the imperial elite

 

 

Angela Alonso

Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que presidiu entre 2015 e 2019. É doutora em sociologia pela USP, com pós-doutorado na Yale University. Publicou os livros Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império (2001); Joaquim Nabuco: os salões e as ruas (2007), ambos vertidos para o francês; Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888) (2015); Conflitos: fotografia e violência política no Brasil (1889-1964) (co-organizado com Heloísa Espada, 2017) e The last abolition: the Brazilian abolitionist movement, 1868-1888 (Cambridge University Press). Recebeu os prêmios CNPQ/ Anpocs (2001), John S. Guggenheim Foundation (2009), Prêmio Jabuti de Ciências Humanas (2015), Prêmio Academia Brasileira de Letras de melhor livro do ano (2015)

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo acompanha a vida de Joaquim Nabuco, do nascimento à morte, destacando momentos críticos de sua trajetória na política, na diplomacia e na vida intelectual. A descrição de sua circulação pelos salões aristocráticos e círculos eruditos, sua atuação nas políticas institucional, internacional e de rua e da relevância de suas obras principais visa evidenciar o valor da vida de um membro brilhante da elite social na transição da sociedade tradicional para a moderna no Brasil.

Palavras-chave: Joaquim Nabuco. Trajetória social. Elite imperial.


SUMMARY

The article follows Joaquim Nabuco's life, from birth to death, highlighting critical moments of his trajectory in politics, diplomacy and intellectual life. The description of his circulation through aristocratic salons and erudite circles, his performance in institutional, international and street politics, and the relevance of his main works, aims to highlight the value of life for a brilliant member of the social elite in the transition from traditional society to the modern in Brazil.

keywords: Joaquim Nabuco. Social trajectory. Imperial elite.


 

 

Era uma vez um príncipe. Nasceu num reino tropical, habitado por nobres, plebeus e escravos. Príncipe de engenho. Não que tivesse sangue azul, era de família da aristocracia burocrática imperial. Mas, entregue bebezinho aos padrinhos, virou de pronto príncipe, para quem todos os mimos eram poucos. Menino luminoso, branquinho, comprido, que virou coroinha, que virou o centro vivo do Massangano, que já era quase de fogo-morto. Nesse decadente microcosmo da sociedade do açúcar, Dona Ana Rosa, austera e patriarcal, dengou o Quinquim entre suas ladainhas e rendados, doces e escravos. Enviuvada, entrevada, a madrinha tomou o afilhado por filho, "nosso" filho, como dizia nas cartas ao compadre vivendo na capital. O pequeno príncipe contava herdar o reino, do qual era parte sua mãe de leite. Mas seu primeiro reinado se acabou com a morte da madrinha. Aos 8 anos, o príncipe foi enxotado de seu reino, do qual levou a lembrança mais doce, a nostalgia mais doída, de um tempo de supremacia incontestada.

Foi, então, ser príncipe dos salões. Seu pai, o senador José Thomaz Nabuco de Araújo, era nome de proa na cena política, e a família não fazia feio na sociedade de corte, onde elegância e polidez valiam mais que tostões. Nisso Joaquim Nabuco esmerou-se. Alto, encorpado, de olhos melancólicos e bigode em ponta, era homem formoso, que a educação aristocrática lustrou com elegância, boas maneiras e erudição. Com seu irmão, o galante Sizenando, com seu amigo Arthur Carvalho Moreira, filho do proverbial Barão de Penedo, adquiriu traquejo: aprendeu a vestir, cortejar, versejar, gracejar, tudo o que se requeria para sucesso nas rodas chiques. E virou dândi. Quincas, o Belo, por quem suspiravam moças e mesmo senhoras. Um príncipe, príncipe encantado.

Ao longo desse reinado, Nabuco levou a vida média dos moços da elite brasileira oitocentista. Passou pelas melhores escolas - o colégio Pedro 11 e as faculdades de direito de São Paulo e Recife. Fez algum panfletismo, uns tantos versos e treinou-se em oratória. Viajou pelo velho e pelo novo mundo. Graças ao pai, que lhe arranjara lugar na diplomacia. Primeiro nos Estados Unidos, onde se agastou com a desatenção para com os modos aristocráticos. Admirando a cultura europeia e as instituições políticas inglesas, sua monarquia liberal e suas hierarquias nobiliárquicas, Nabuco aspirava viver na grande metrópole do século XIX: "Londres me atrai como o polo à agulha", escreveu ele a Penedo.2 Em 1878, o pai achou-lhe um posto na Londres que Nabuco amou, com rara fidelidade. Essa juventude foi mesmo estação de amores, registrados em versos em francês.3 Amores de passagem, por uma Anne, uma Fanny. E amor de duração, por uma Eufrásia.

A toada de cortesão não rendeu emprego estável nem casamento seguro. Mas Nabuco não tinha pressa. Nem muita escolha. Num tempo em que os pais continuavam suas carreiras na pessoa dos filhos, Nabuco de Araújo, proeminente chefe do Partido Liberal, candidatava o seu, mesmo em ausência, nas eleições para deputado. A política imperial, segundo Nabuco de Araújo, se fazia de cima para baixo: o imperador escolhia um membro de um dos dois partidos para formar um gabinete, o novo primeiro ministro comandava as eleições, logrando o apoio de "câmaras unânimes". Assim cria e assim agia, de modo que apenas quando os liberais retornaram ao poder, depois de uma década de ostracismo, é que pôde arranjar a eleição do filho deputado por Pernambuco. Mas faleceu antes da eleição. A morte do pai arremessou o dândi na vida prática. Desceu do paraíso londrino aos infernos político e financeiro em que os Nabuco de repente habitavam: endividados e alijados pela chefia de seu partido. No Brasil, Nabuco encontrou sua candidatura ameaçada. Correligionários atacavam o "deputado inglês" por não morar na província. Se pudesse, Nabuco teria se evadido desse reino, como escreveu ao amigo Salvador de Mendonça.4 Mas não podia. A política era seu legado. O príncipe então se curvou ao chefe liberal de Pernambuco. E virou deputado.

Começou assim seu reinado de abolicionista. Ninguém que então o viu deixou de admirá-lo. Voz melodiosa e metálica, postura de lorde. Sobressaía já pelo porte, "delicado gigante", disse dele seu colega de bancada, Afonso Celso Jr. (1901/1998, p. 82). Estreou na oposição ao gabinete liberal de Sinimbu e destacou-se na tribuna, num tempo em que a retórica era metade do caminho na política. Nabuco de Araújo teria se orgulhado desse filho, que o citava em discursos, que secundava suas posições e que logo o suplantaria em estilo e oratória. Mas o pai teria moldado o presente de modo a não perder o futuro, recomendado menos insolência e mais reverência, quando Nabuco apressou o trote na questão mais delicada do Império.

Foi em 1879. Nabuco içou ao debate parlamentar a abolição da escravidão, que era item do programa liberal, mas que passava longe de prioridade para o governo. Aliás, o Segundo Reinado nunca teve pressa em se desfazer de seu pilar. A escravidão era base tanto da sociedade agrária como da urbana, estava nas casas como nas ruas, entranhada nos negócios e no cotidiano, base da economia e da própria política, pois as candidaturas se baseavam na propriedade de bens e de pessoas. Da agenda a questão nunca chegou a sair desde o fim do tráfico até produzir a Lei do Ventre Livre, em 1871, recebida por muitos como o juízo final. Mas desde aí as instituições políticas calaram. Não as ruas. Formavam-se associações e uma imprensa emancipacionista, estabeleciam-se lideranças negras: Luiz Gama, Vicente de Souza, José do Patrocínio. Nabuco viu tudo isso. E, ao levar esse clamor da sociedade ao Parlamento, deu ao abolicionismo viço, impulso, cara.

Em 22 de abril de 1879, fez seu primeiro discurso abolicionista na Câmara: "nesse sol há uma grande mancha que o tolda", a escravidão. Para surpresa de seu partido, apresentou projeto, com indenização aos proprietários, de extinção progressiva da escravidão até 1890. Nisso seguia o pai, um emancipacionista. E mirava-se nos abolicionistas ingleses, querendo como eles formar uma coalizão na Câmara e robustecê-la com o apoio da opinião pública. Alçava-se a pivô entre as instituições políticas e o abolicionismo das ruas, dos que, como Patrocínio, não tendo nascido na elite imperial, nunca chegavam ao Parlamento. Com o abolicionista André Rebouças, que vinha em campanha desde 1868, Nabuco criou, em 1880, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, inspirada na congênere inglesa, e lançou um jornal de propaganda, O Abolicionista. Fazia então discursos apaixonados, apaixonando o público.

Ante a resistência interna, Nabuco foi mobilizar a opinião pública internacional, com uma "missão abolicionista" pela Europa. Por lá aprendeu técnicas de propaganda e obteve o apoio de abolicionistas cubanos, franceses e ingleses. A viagem consolidou sua liderança. O Times (24/02/1880) reconheceu-o como "o líder parlamentar do Partido Anti-Escravidão no Brasil".

Henry Hilliard, ministro norte-americano no Brasil, conheceu Nabuco justo nessa hora em que ascendia a príncipe do abolicionismo:

Jovem, altamente educado, [...] de físico esplêndido e maneiras cativantes, um membro da Câmara dos Deputados e estadista de grande promessa [...]. Ao longo da minha vida eu nunca encontrei alguém cujo futuro parecesse mais brilhante [...]. Ele cintilava no firmamento de seu país como a estrela da manhã"5 (Hilliard, 1892, p. 391).

Apesar de conterrâneos e estrangeiros estarem de acordo quanto aos seus talentos, nas eleições seguintes Nabuco deu com a cara na porta da Câmara. Ao insistir na abolição contra o gabinete de seu partido, ele transgredira hierarquias e perdera preciosos apoios eleitorais.

Sem cadeira no Parlamento e cioso de sua independência em relação ao governo, foi ser correspondente do tradicional Jornal do Comércio e consultor jurídico de empresas inglesas com negócios no Brasil. Em Londres, sob a pressão de seu exigente editor, Francisco Picot, Nabuco inventou-se então como jornalista, apurando o estilo e se inteirando de política doméstica britânica, economia e geopolítica.

Ainda assim permanecia conectado com a campanha abolicionista. Mirando-se em William Gladstone, o grande reformista do período, e na experiência dos abolicionistas ingleses,6 Nabuco exportou para o Brasil uma petição e um livro de propaganda. O Abolicionismo, que saiu em 1883, tomava o ângulo socio-econômico para denunciar a escravidão como instituição total, base da sociedade, da economia e do estado brasileiros. Como Hamlet, Nabuco denunciava o que via de podre em seu reino, erigido sobre o escravismo. Livro escrito de olho na conjuntura, mas que ao desvendar as entranhas de nossa sociedade sobreviveu como obra de interpretação do Brasil, vindo a ser talvez o mais famoso e mais influente de nossos panfletos políticos.

Mas não bastava um livro. Quando os abolicionistas lograram a abolição no Ceará, em 1884, e se formava um gabinete do Partido Liberal simpático à causa, o de Manuel de Souza Dantas, o movimento abolicionista chamou-o de volta. O líder das mobilizações no Ceara, José Corrêa do Amaral, escreveu-lhe então: "Sua presença no Rio de Janeiro agora é mais que urgente".7 Dada sua origem na elite e suas qualidades de bom orador, Nabuco era perfeito para funcionar como elo entre a mobilização civil abolicionista e o parlamento. Voltou sagrado candidato oficial do movimento nas próximas eleições.

Foi o auge desse seu principado. Inflamava comícios e artigos,8 crispados de críticas à elite política e ao imperador, que, dizia no Jornal do Comércio, era o "baluarte" da escravidão. Em fins de 1884, o país se dividiu entre escravocratas e abolicionistas. O gabinete em crise chamou eleições. Os abolicionistas então tomaram as ruas, na primeira grande campanha eleitoral brasileira. Nabuco pediu votos de casa em casa no Recife e, em concorridos comícios em praças e no teatro Santa Isabel, condenou a "política do chicote", por produzir "um país de algumas famílias transitoriamente ricas e de dez milhões de proletários".9 Agora pedia abolição imediata e sem indenização aos proprietários, em par com reforma agrária.

Nabuco enfrentava então um grande chefe político local. Uma briga que acabou à bala, com a eleição anulada. Na nova campanha, foi consagrado príncipe abolicionista em jornais, comícios e versos; seu rosto, impresso em lenços, cervejas e cigarros. Mesmo assim a Câmara não reconheceu seu mandato e Nabuco só o obteve quando deputados renunciaram, provocando nova votação. As comemorações foram então delirantes em várias cidades, com passeatas no norte e no sul do país, com discursos e poemas, incluindo um "Glória a Nabuco".

Mas os conservadores voltavam ao poder. Reduziram a reforma Dantas à libertação de escravos idosos - a Lei dos Sexagenários. Muitos abolicionistas descorçoaram das vias oficiais e investiram em fomentar fugas de escravos.10 Nabuco escrevia panfletos cada vez mais ácidos contra os escravocratas11 e, na campanha eleitoral seguinte, em 1887, virou nome de chapéu e tema de Carnaval. Cercado por seus súditos, o "chefe do abolicionismo", como Antonio Bento então o chamou,12 elegeu-se apesar do empenho contrário do governo. E assim ungido pelos seus retornou à Europa, pedir apoio do Papa à abolição.

Diante da avalanche abolicionista, a resistência esmoreceu. O Partido Conservador, sempre pragmático, abandonava a escravidão na hora em que o Império afundava com ela. Nabuco ajudou a apressar o processo legislativo e aprovar num domingo, 13 de maio, o fim da escravidão no Brasil. Foi seu grande dia de príncipe, sufocado de abraços e vivas. Herói nacional, festejado com girándolas e bandeiras, desfilando por ruas iluminadas com tochas, banhado por chuvas de flores.

Curto reinado. Nabuco logo se viu príncipe deposto. Muitos de seus súditos eram republicanos e foram fazer a República. Assim, seus planos reformistas soçobraram com o Império. Foi abaixo sua carreira política, seu estilo de vida cortesão, sua perspectiva de futuro. Combalido, Nabuco refugiou-se em sua Londres, no bálsamo do catolicismo de origem13 e na vida de família. Casara-se em 1888, não com a impetuosa Eufrásia, mas com Evelina, esposa serena que o serenou. Amparado nesses novos pilares, o príncipe ressurgiu do exílio para um novo reinado, o de intelectual monarquista.

Qual Hamlet, príncipe sombrio, cujos textos espargem nostalgia e pessimismo. Em ensaios, artigos,14 manifestos e em dois livros, Balmaceda (1895) e A intervenção estrangeira durante a Revolta (1896), Nabuco defendeu a tradição monárquica e criticou as ideias positivistas, norteando o novo regime e suas lideranças militares. Combinação que, supunha, levaria o país a se enfileirar com a América Espanhola, rumo a caudilhismo, despotismo, separatismo (Alonso, 2009). Nabuco lamentava ainda a ascensão de uma elite de parvenus, que subia as escadarias da sociedade e da política sem o refinamento que fora o mínimo denominador comum da sociedade de corte.

Com outros monarquistas, como Eduardo Prado, que compartilhavam seu diagnóstico e seu desgosto, Nabuco voltou à política partidária, criando um Partido Monarquista, em fins de 1895, cujo manifesto redigiu.15 Mas os velhos líderes monarquistas queriam restaurar também as antigas hierarquias, deslocando Nabuco para os bastidores. Ele então fechou de vez sua vida partidária e se insulou nos livros.

Saía quase que só para ter com Machado de Assis e sua roda da Revista Brasileira, que engendrava uma instituição suprapartidária para homens públicos extenuados de política: a Academia Brasileira de Letras (Alonso, 2009). Com sua nova identidade, de intelectual, Nabuco tornou-se secretário vitalício da nova agremiação. Príncipe imortal.

Essa aristocracia do talento recebeu de braços abertos a pérola que Nabuco extraíra de seu ostracismo: Um estadista do Império. Nabuco de Araújo: sua vida, suas opiniões, sua época (1897-1899). Era seu balanço do Segundo Reinado. História parlamentar, que reconstrói a formação do regime a partir dos feitos de suas lideranças, responsáveis, para Nabuco, por momento alto da história nacional, "a grande era brasileira". Bem escrito, apoiado em documentos e depoimentos, Um Estadista foi dos livros de Nabuco o que mais sucesso de público e de crítica angariou durante sua vida e é ainda hoje obra de referência da historiografia do Segundo Reinado.

Foi como príncipe dos historiadores que Nabuco voltou à política, mas pela porta da diplomacia. O monarquismo perdera sentido com a consolidação da República civil. Em 1899, o presidente Campos Sales instou seu ex-colega de parlamento a produzir defesa brasileira num contencioso diplomático em torno das Guianas Inglesas. Nabuco já recusara convites semelhantes, dessa vez aceitou.

Monarquistas se ressentiram. Nabuco acertou suas contas com eles no mais lírico de seus livros, Minha formação, que saiu em 1900, quando já deixara o país. Aí reconstrói sua educação sentimental, a infância no engenho, o fascínio do grande mundo, a carreira política. E, como em Escritos e discursos, publicado em seguida, exprime sua vinculação emotiva ao modo de vida aristocrático, mas redefine-se antes como liberal do que como monarquista. É que Nabuco entendeu que já não podia prender o futuro ao passado morto.

Seu último reinado foi de príncipe cosmopolita. Primeiro na Europa, depois nos Estados Unidos, Nabuco recriou-se como diplomata americanista. Por causa da questão das Guianas, avançou pela história diplomática, produzindo mais uma obra, O Direito do Brasil (1904). Embora tenha perdido a causa, ganhou autoridade no campo das relações internacionais, elevado sucessivamente a chefe da legação brasileira em Londres (1900-1905) e primeiro embaixador brasileiro nos Estados Unidos (1905-1910). Seu refinamento seduziu tanto a nobreza inglesa quanto a burguesia ianque. Em Washington, logrou relações excelentes com o secretário de estado e com o presidente Roosevelt. Vendo que o eixo da geopolítica se deslocava da Europa para os Estados Unidos, Nabuco defendeu aliança do Brasil com os norte-americanos e virou propagandista desse panamericanismo, em conferências pelos Estados Unidos. Amealhou o apreço de políticos e diplomatas, recebeu títulos de doutor honoris causa, elogios da imprensa e, apesar da velhice, suspiros das senhoras. No tempo que sobrava, reuniu suas reflexões morais em Pensamentos soltos (1906). Foi seu último livro, em francês como o primeiro.

Como diplomata respeitado, Nabuco voltou ao Brasil, pela última vez, em 1906, para a Terceira Conferência Pan-Americana, que promoveu e presidiu. Estava meio surdo e acometido pela policitemia que o mataria em 17 de janeiro de 1910. Mas era ainda senhor galante, perfeito gentleman, conservador moderado nas opiniões, que circulou desenvolto pelo país, arrebatando pela última vez sua plateia. O russo Conde de Prozor, que o viu então, narrou sua "entrada triunfal": "Passadas largas, a cabeça erguida, o olhar franco e luminoso, o sorriso nos lábios, [...] ele exercia sobre ela [a multidão] o prestígio de sua alta estatura, de sua máscula beleza e de sua palavra sonora"16 (Prozor, 1912, p. 335).

Mesmo Oliveira Lima, que não tinha papas na língua, reconheceu em Nabuco uma "fidalguia d'alma" (1937, p. 174).

Mas o fidalgo de tantos principados nunca chegou a rei. O príncipe de engenho não se converteu em fazendeiro, o dândi não chefiou grande salão, o abolicionista não virou primeiro ministro, o escritor não chegou à presidência da Academia Brasileira de Letras, o embaixador não emplacou a linha mestra da política externa brasileira. Mas então por que será que ainda celebramos o príncipe enquanto soberanos de quase todos esses reinos dormem o sono dos mortos? Quem sabe o nome do herdeiro do Massangano? Ou do dono do maior dos salões do Império? E não é verdade que se fala mais de Nabuco que dos chefes de gabinete do Segundo Reinado? Só nos dois últimos reinos, na vida intelectual e na diplomacia, encontrou com quem se ombrear: Rio Branco e Machado de Assis. E só a este último Nabuco, de fato, se curvou em reverência.

É que Nabuco não dobrava a espinha. Tinha rara dignidade e consciência apurada de suas muitas capacidades. Com elas, mesmo sem cingir coroa, reinou em cada um de seus principados: com a personalidade cativante modelada na infância, com a elegância adquirida nos salões, com o arrojo reformista da campanha abolicionista, com sua prosa límpida e a argúcia de seus livros, com seu talento de negociador por dentre as tramas diplomáticas. Por isso nos lembramos dele como figura modelar em vários campos.

E também porque suas ideias ainda nos imantam. Elas já atravessaram duas gerações, alimentando linhagens de intérpretes do Brasil. O Abolicionismo impregna a análise do patrimonialismo brasileiro em Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda. Os retratos das grandes lideranças do Segundo Reinado de Um estadista do Império ressurgem como os "homens de mil", de Oliveira Viana, em Instituições políticas brasileiras. Não é preciso grande esforço para achar Minha formação em Casa-Grande e Senzala, seja nos temas, seja no desconsolo com a decadência da sociedade tradicional.

Não bastasse ser clássico para os clássicos do ensaísmo, Nabuco segue inspirando novas levas de cientistas sociais. Seja dos que adotam suas teses, seja mesmo dos que o combatem. "Quem precisa de São Nabuco?", pergunta Célia Azevedo, provocativa. Muitos precisam. Nabuco permeia a obra do professor Fernando Henrique Cardoso, que o carregou consigo para a presidência, único intelectual citado em seu primeiro discurso de posse.17 Nabuco é ainda uma referência para grandes historiadores contemporâneos, como Evaldo Cabral de Melo e José Murilo de Carvalho. Segue apreciado como ensaísta, pelas qualidades estéticas de seus textos, citado entre literatos e até musicado por Caetano Veloso. Objeto de interesse de editoras e de seminários. Louvado por políticos, à esquerda e à direita.

Um século depois de sua morte, Nabuco vive. Perdura imortal entre tantos esquecidos. Talvez porque tenha sido múltiplo, constantemente se reinventando. Talvez porque sua agenda siga aberta. Em cada um de seus reinos restam tarefas incompletas. Suas perguntas ainda são as nossas: que nação é essa? Qual seu rumo? Como devem ser nossas instituições políticas? Que direção deve seguir nossa diplomacia? Como afirmar uma cultura genuinamente brasileira sem secar nossa raiz europeia? Como democratizar uma sociedade tão ciosa da reprodução da desigualdade? Por quanto tempo ainda a escravidão permanecerá sendo nossa marca indelével? Questões que nos assombram como os fantasmas de Hamlet. Outro que não chegou a rei e que, por sua luta inglória, ganhou de Eric Auerbach (1976) o epíteto de "príncipe cansado". Nabuco é igualmente um príncipe cansado, que por certo consentiria em repousar no esquecimento, se os problemas que formulou encontrassem solução. Mas, enquanto eles perdurarem, Nabuco não terá descanso. Continuaremos a evocá-lo, como Hamlet aos fantasmas, ainda súditos de suas ideias e encantados com sua realeza.

 

Referências

Alonso, A. (2007). Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

______. (2009). A década monarquista de Joaquim Nabuco. Revista USP, 83,53-63.         [ Links ]

Auerbach, E. (1976). O príncipe cansado. In E. Auerbach. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Azevedo, C. M. (2001). Quem precisa de são Nabuco? Estudos Afro-Asiáticos, 23(1),85-97.         [ Links ]

Cardoso, F. H. (1995, 1 de janeiro). Discurso de posse do presidente da República Fernando Henrique Cardoso no Congresso Nacional. Brasília. Recuperado em 10 de novembro de 2019, de Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/tv/218858-discurso-de-posse-do-presidente-da-republica-fernando-henrique-cardoso.         [ Links ]

Celso Jr., A. (1998). Oito anos de Parlamento. Brasília: Senado Federal. (Trabalho original publicado em 1901)        [ Links ]

Hilliard, H. W. (1892). Politics and pen pictures at home and abroad. Londres; Nova York: Putnam's Sons Publishers.         [ Links ]

Lima, O. M. (1937). Memórias (Estas minhas reminiscencias...) (Coleção Documentos Brasileiros). Rio de Janeiro: José Olympio Editora        [ Links ]

Nabuco, J. (1949). Cartas a amigos (v. 1, C. Nabuco, org.). In J. Nabuco. Obras completas (v. 13). São Paulo: Instituto Progresso Editorial.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
ANGELA ALONSO
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária
05508-010 - São Paulo/SP
Tel.: 11 3091.3766
amalonso@usp.br

Recebido 31.08.2020
Aceito 14.09.2020

 

 

1 Versão baseada na conferência proferida no Seminário Joaquim Nabuco e a Nossa Formação, na Fundação Joaquim Nabuco, Recife, em 19 de agosto de 2010, assim como em meu livro Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo, Companhia das letras, 2007.
2 Carta de Joaquim Nabuco a Barão de Penedo, 1° de fevereiro de 1887. In Nabuco, 1949.
3 Coligidos em ¡'Amour et Dieu, 1874.
4 Carta de Joaquim Nabuco a Salvador de Mendonça, 4 de junho de 1878. In Nabuco, 1949.
5 "Young, thoroughly educated, [...]; of splendid physique and captivating manners, a member of the Chamber of Deputies, and a statesman of high promise [...]. In the whole course of my life I had met no one whose future seemed brighter. [...] He glittered in the firmament of his country like a morning star"
6 Logo feito membro ativo da British and Foreign Anti-Slavery Society.
7 "Sua presença no Rio de Janeiro agora é mais que urgente. Refiro-me ao movimento emancipador que vai acelerando sua marcha" (Carta de José Corrêa do Amaral a Joaquim Nabuco, 9 de maio de 1884. Arquivo Joaquim Nabuco, Fundaj).
8 Nabuco então escrevia para o Jornal do Comércio, sob condição de não assinar os artigos, que apareciam sob o pseudônimo "Garrison".
9 Segunda Conferência no Theatro Santa Isabel no 1° de novembro [1884]. In Nabuco, 1885, p. 31.
10 Havia, d'outro lado, um crescimento do federalismo, que Nabuco endossou no manifesto "Abolição, Federação, Paz", defendendo a federalização da monarquia.
11 Agora no jornal republicano O País.
12 Antonio Bento se refere em editorial ao "nosso ilustre chefe Joaquim Nabuco" (A Redempção, 6 de janeiro de 1887). Logo em seguida, ao noticiar viagem de Nabuco, o jornal reitera o tratamento: "nosso prestimoso e dedicado chefe Joaquim Nabuco" (A Redempção, 20 de fevereiro de 1887).
13 Celebrado em livro que redigiu entre 1892 e 1893, mas que nunca publicou: Minha Fé Foi Voulue. Mysterium Fidei.
14 No Jornal do Comércio, no Jornal do Brasil e no Comércio de São Paulo.
15 O manifesto dos monarquistas paulistas saiu em 15 de novembro de 1895, redigido por João Mendes de Almeida. Em 12 de janeiro de 1896, foi a vez dos cariocas lançarem o seu.
16 "Grands pas, la tete haute,le regard franc et lumineux,le sourire aux levres, [...] il avait exerce sur elle [la foule] le prestige de sa haute stature, de sa male beaute et de son verbe sonore."
17 "Joaquim Nabuco, o grande propagandista do abolicionismo, pensava em si mesmo e em seus companheiros como titulares de um 'mandato da raça negra'. [...] Tal como o abolicionismo, o movimento por reformas que eu represento não é contra ninguém. Não quer dividir a Nação. Quer uni-la em tomo da perspectiva de um amanhã melhor para todos" (Cardoso, 1995).

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