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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

Tempo em quatro atos

 

Time in four acts

 

 

Thiago Pereira Majolo

Psicanalista e mestre em história social, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro da comissão editorial de Debates, da Revista Percurso, e membro do grupo Psicanalistas Atentas(os) às Relações Raciais, do Instituto AMMA - psique e negritude

Correspondência

 

 


RESUMO

Como percebemos a passagem do tempo? Para responder essa pergunta, o artigo vai se apoiar no conceito de narcisismo e nas relações que ele estabelece com a percepção sobre a temporalidade. E, para se compreender essas relações, vamos convocar a ajuda de Shakespeare, analisando quatro de suas peças e indagando como os personagens de cada uma delas lidam, em diferentes momentos da vida, com o corpo simbólico do tempo.

Palavras-chave: Tempo. Narcisismo. Shakespeare. Simbólico. Peça.


SUMMARY

How do we perceive the passage of time? To answer this question, the article will be based on the concept of narcissism and the relationships is establishes with the perception of temporality. And, in order to understand these relationships, we will summon up Shakespeare's help, analyzing four of his plays, inquiring how the characters in each play deal, at different times in life, with the symbolic body of time.

keywords: Time. Narcissism. Shakespeare. Symbolic. Play.


 

 

Gastei meu tempo, e hoje o tempo me gasta.
O tempo fez de mim o seu relógio.

(William Shakespeare, Ricardo II)

Com qual órgão ou sentido de nosso corpo percebemos o tempo?

A essa pergunta, seria impossível delimitar respostas precisas, pois a única resposta racional e primeira, mas errada, seria "com nenhum". Não percebemos o tempo quando nos dedicamos aos esforços da razão, nem sequer em estados meditativos o sentimos em nosso corpo. Dada essa obviedade, por que então a resposta acima estaria errada? Porque a única resposta correta, e abstrata, seria "com todos". Pois todos nossos órgãos envelhecem, e paulatinamente ou de roldão, nas gradativas limitações que se acumulam ou nas doenças que aparecem, descobrimos que o tempo passou. De modo semelhante, nossos sentidos nos dão notícias da passagem do tempo nas memórias, nos afetos reencontrados, nos déjà vus, nas músicas, aromas ou fotografias que nos conectam a um ser estranho do passado, um ser que fomos e se revela repleto de sentimentos anacrônicos, enquanto nós, cercados pelo vazio do presente, tentamos restaurar esse tempo perdido.

Estamos aqui falando de dois corpos: um biológico e um psíquico. Estamos falando da presença do tempo no corpo e do corpo que fundamos para o tempo ao nos fundarmos como sujeitos psíquicos. Esse primeiro, biológico, é capaz de viver anos no silêncio; o segundo, o dos sonhos, é continuamente ruidoso.

Com dedicação e alguma sorte, todos nós inventamos no tempo do corpo um corpo ao tempo; constituímos, entre nascimento e morte, a obra de nossos sonhos, nos conflitos sintomáticos e sintomas apaziguados. Cada qual dá ao tempo um corpo, por vezes lento e espesso, por vezes ágil e dinâmico. Nosso aparelho psíquico, fundado no corpo biológico e por ele sustentado, em primeira e última instância, é um aparelho de corporificar esse abstrato incontornável, esse invisível monumento, o tempo.

Mas estamos ainda na coxia, nos bastidores teóricos. Vamos abrir a cortina e pisar o palco com a ajuda do mestre Shakespeare.

 

Primeiro ato

É provável que começamos nossa vida como seres de contornos muito indefinidos. Tomados por uma série de excitações internas e externas possivelmente bem desconcertantes, não deve ser nada fácil saber o que vem de dentro e o que vem de fora nos primórdios da vida. Diluídos no espaço do mundo, passamos a empreender a incrível aventura de nos tornar uma pessoa única, delimitada, distinguível. É justo dizer que nossa primeira sensação corpórea seria de um ser aquoso lançado ao mar, em busca de forma própria.

Quando Shakespeare escreveu sua primeira peça, A comédia dos erros, o fantástico bardo, na primavera de sua obra, parece nos convidar a testemunhar o início da jornada de todos os humanos, desde esses tempos de um ser indiscriminado até a futura reconexão de um Eu já definido com seu duplo inquietante, aquele que se dividiu dentro dele para nele formar um outro, um inconsciente estranhamente familiar.

O enredo da peça é simples: dois pares de irmãos gêmeos (dois senhores e dois servos) são separados entre si após um naufrágio, e cada irmão passa vinte e cinco anos sem saber do seu gêmeo. O início da trama narra o momento em que seus caminhos se cruzarão novamente. Sem saber que seus duplos se encontram no mesmo território, dá-se início a uma sucessão de enganos e erros hilários aos olhos do espectador, trágicos às personagens. Ao se depararem com atos absurdos e o caos que cada engano promove, os pares de gêmeos vão ficando atônitos e sentem-se cada vez mais estrangeiros de si próprios, como se algo lhes roubasse o sentido de suas vidas. Nada faz sentido, nem nas ordens trocadas dos senhores, que confundem os servos, nem nas tarefas executadas pelos servos, que confundem os senhores. Gradativamente, os gêmeos passam a desconfiar de tudo, a estranhar tudo, o mundo e suas próprias ações.

É esse o mesmo sentimento de quando nos deparamos com nosso inconsciente, como nos atos falhos que nos atropelam. É quando descobrimos que aquele Eu, que com tanto trabalho conquistamos para nos diferenciar do mundo, não era senhor em sua casa, como diria Freud; com ele competem outros desejos de um ser com vontades próprias e aparentemente tão diversas da nossa vontade consciente. Antes éramos unos, perfeitos, invencíveis, sentíamo-nos então dotados de um tempo eterno que parecia transcorrer como uma linha reta e indefinida, sem percalços. Mas essa percepção que tínhamos do tempo se desfez; agora, algo parece retornar, algo que nem sequer sabíamos que tínhamos deixado para trás. Uma parte nossa seguiu, mas uma parte ficou - e resolveu nos confrontar. É quando nos descobrimos dividimos em temporalidades diversas: somos o que somos e também o que fomos, e não sabemos mais o que seremos, porque a ilusão de nosso controle sobre o enredo de nossa vida se perdeu.

"O que está acontecendo, que tu estás afastado de ti mesmo?" (Shakespeare, 1594/2004, p. 36) - essa pergunta, posta na boca de um dos personagens, seria um bom questionamento para se começar um processo psicanalítico. Boa e de difícil resposta, pois esse ser destronado, que anda afastado de si, até agora apenas conhecera sua face consciente; era dono do seu tempo, senhor de suas ações e jamais suporia estar dividido. O que ele conhecia eram apenas as sensações de corpo e os pensamentos da razão, não poderia adivinhar que a marca dessas sensações unida a outros pensamentos, esses desconhecidos, haviam criado nele um segundo corpo, o corpo inconsciente, fundado pelos mesmos processos de deslocamento e condensação que criam os sonhos. Suas experiências deram ao tempo um corpo feito de traços mnêmicos, fragmentos difusos de memória que, ao se agruparem, geraram e pariram um gêmeo interno. Esse novo ser tem desejos próprios, obedece unicamente a si mesmo, desdenhando do irmão. Quem então agora pode ser chamado de senhor e de servo?

"No mundo, sou como uma gota d'água que no oceano procura outra gota; em lá caindo para encontrar seu companheiro, confunde-se (invisível, curiosa) consigo mesma" (Shakespeare, 1594/2004, p. 19). Pois temos que mergulhar nesse oceano feito de espelhos à procura de um outro que nada mais é que um gêmeo interno para que possamos deixar de ser servos de nós mesmos. É lá, nesse lugar de múltiplos objetos e imagens embaralhadas, um lugar de reconhecimento de si no estranhamento, onde poderemos carrear de volta ao presente os passados anacrônicos que ainda não passaram e os futuros ilusórios que fecharam os caminhos de futuros possíveis. É preciso, então, palavras que pesquem vivências de um tempo etéreo e as transforme em uma narrativa que dê novo corpo ao tempo, um corpo que faça presença no presente.

"Tarefa mais dura do que esta não me poderia ter sido imposta: narrar minhas dores inenarráveis" (Shakespeare, 1594/2004, p. 12). Tarefa árdua a de nos reencontrar, a de perceber que muito daquilo que, por ser estranho, projetamos no exterior é, na verdade, uma parte não assumida do nosso ser. Daí a genialidade da peça em separar, em dois pares de corpos, desejos tão díspares e desencontrados, mas apenas para que eles possam vir a se reencontrar. Caso o reencontro final falhasse, tudo não passaria de um eterno desengano, desencontros sucessivos, e a peça seria uma tragédia.

Podemos resistir à tarefa do reencontro, podemos querer atribuir ao mundo o que não reconhecemos em nós: "Ah, canalha, roubaste meu posto e meu nome; um não me deu crédito algum, e o outro me deu todas as culpas do mundo" (Shakespeare, 1594/2004, p. 44); podemos tentar destruir a reputação desse gêmeo, mas estaríamos apenas atacando a nossa própria, fugindo da tarefa. "Uma vez que minha própria porta recusa-se a me receber, estarei batendo em porta alheia, para ver se me desdenham" (Shakespeare, 1594/2004, p. 48) - e assim, evitando escancarar a porta certa, bateríamos de porta em porta, numa sucessão de autoenganos.

A peça, sob a pena magistral de Shakespeare, é composta mais de ação do que de reflexão, para nos mostrar, na sua forma, que enquanto andamos distantes de nós mesmos não encontramos tempo de refletir sobre nossos desejos e, como servos, apenas obedecemos às demandas pulsionais. Somente quando reconhecemos que não somos senhores, podemos também deixar de ser servos e nos reconectar com um tempo que, tendo ficado para trás, cobra-nos presença e comunhão.

 

Segundo ato

Em Romeu e Julieta, Shakespeare nos transporta ao tempo das paixões juvenis, o tempo do furor que toma os corpos adolescentes. Romeu, com 17 anos, e Julieta, com 13, são os heróis da peça. Ainda que a cultura popular tenha celebrado essa história como uma consagração da força do amor, não parece ser isso que encontramos se nos detivermos atentamente à trama. Romeu e Julieta é, sim, sobre o amor, mas não a ligação amorosa de um Eu com um outro, mas de um Eu consigo mesmo, uma ligação narcísica, furiosa e implacável.

Retomemos: começamos a vida como que diluídos no mundo, uma espécie de gota lançada ao mar, e será uma enorme empreitada definir um contorno individual. Nessa jornada, tendemos a odiar o externo, que nos incomoda, e odiar também tudo o que nos incomoda interiormente, e projetamos esse incômodo para fora, atribuindo ao mundo o que não desejamos espelhar em nós. As primeiras ligações afetivas constituem um esforço em direção ao mundo, o que requer que possamos abrir mão de uma ilusão de perfeição narcísica e a assunção de que carecemos dos outros e precisaremos abandonar nosso Eu Ideal para amar e sermos amados. Com sucesso, assim o fazemos até a juventude.

Pois então o tempo resolve fazer sua primeira aparição mais evidente em nosso corpo biológico. Tudo muda na juventude, não há como fugir das transformações biológicas que a passagem do tempo traz. Aquele que éramos já não somos, aquilo que fazíamos não faremos mais, e uma montanha de coisas que apenas víamos à distância, ou nos aludíamos de ver, agora estão ao nosso alcance, são tarefas nossas.

Ainda que estivessem em cena há muitos anos, os jovens têm diante de si a missão de desempenhar papéis que desconhecem. Não é de se estranhar que se sintam inseguros, que entrem em estados depressivos, recuados diante da vida que se abre, ou que, com uma arrogância defensiva, empenhem-se em projetos homéricos, num grande arroubo intempestivo que lhes dá a ilusão de que podem resolver tudo à base do voluntarismo. É o tempo que ganhou forma inédita no corpo, e esse ineditismo assombroso, esse salto biológico, ainda carece de repertório simbólico; o tempo psíquico precisa fazer seu corpo.

"Ficar incomodado implica mexer-se" (Shakespeare, 1595/ 1998, p. 13), pensam os jovens, pois lhes falta escopo para o pensamento, arcabouço simbólico para darem vazão, de outras maneiras, à inquietude. A peça, por isso, é toda feita de ações desmedidas por parte de Romeu e de Julieta, sob um pano de fundo mais lento, composto por outros personagens que tentam atrasar os movimentos dos heróis, convidá-los à espera e à reflexão. Tal como a ama de Julieta, que insiste em um falatório que incomoda a jovem heroína. "A desculpa que dás para essa tua demora em falar é mais longa que a fala que tens para me dar" (Shakespeare, 1595/1998, p. 75), reclama Julieta a certa altura. O único que compactua com o jovem casal é Frei Lourenço, que, assim como eles, acaba por acreditar que grandes questões possam se resolver por elixires misteriosos, por magia. É ele que lhes fornece a poção que os faria enganar a todos e concretizar o amor.

Romeu começa a peça em um estado depressivo, apaixonado por uma moça chamada Rosalina, que não corresponde seu amor. Em menos de uma semana, Romeu se esquece de Rosalina, apaixona-se por Julieta, moça de uma família rival à sua, e o casal tem, nesse curto tempo, seu primeiro beijo, sua primeira noite e, acreditando terem perdido para sempre seu venerado objeto de amor, suicidam-se. O amor que precisaria vencer o ódio entre as famílias, e para isso precisaria de um tempo de negociação, espera e possível frustração, nasce e morre rapidamente, conhecendo apenas lugares encobertos por um véu de segredos, madrugadas varadas, elixires mágicos e, por fim, a catacumba. Pois os jovens não admitem o tempo da espera; esperar significa debruçar-se para dentro, e o mundo interior, que parece desabado na juventude, é um lugar em que o passado não é mais amigo, incapaz de fornecer respostas.

Assim, desesperados, Romeu e Julieta sentem-se vazios, carecem de uma comunhão que lhes preencha. Querem, acima de tudo, reencontrar-se. E por isso amam desesperadamente, porém não ao outro, mas a uma projeção de si mesmos. Como odeiam o mundo, que parece ter lhes roubado a força vital, os heróis da peça passam a amar um membro de uma família rival, tentando transformar o ódio novamente em amor, na busca pela restituição dos poderes de Eros. Mas não desejam conhecer uma alteridade e, sim, domesticar o mundo, projetar-se nele para que, estando o externo novamente preenchido pela sua própria imagem, possam apaziguar o desamparo que sentem e, quiçá, retornar a um tempo em que o mundo lhes fazia sentido. "Meu único amor, nascido de meu único ódio" (Shakespeare, 1595/1998, p. 47). É um amor narcísico, que tende mais a destruir o objeto do que se encantar por sua alteridade enigmática.

"O amor dos jovens encontra-se não verdadeiramente em seus corações, mas em seus olhos" (Shakespeare, 1595/1998, p. 62), porque é um amor narcísico, que ama nas aparências apenas o que depreende de seu narciso, seja aquilo que em si é objeto de amor, seja o que é objeto de ódio e que, destruído no outro, pode dar a ilusão de estar destruído em si próprio. Ama para se reencontrar, ama para aniquilar o que odeia. E, assim, não cabe o tempo da reflexão, da espera, do amadurecimento, porque desse tempo de interiorização poderia advir a descoberta do engano e da ilusão dessa empreitada projetiva, e o projeto narcísico viria abaixo. É um amor que brilha intensamente, apenas uma vez e por um curto período. Estamos no tempo do corpo, das sensações, do êxtase, e "esses prazeres violentos têm fins violentos e morrem em seu triunfo, como o fogo e a pólvora, que, ao se beijarem, se consomem" (Shakespeare, 1595/1998, p. 77).

O plano que Frei Lourenço bola parece infalível: com o elixir mágico, Julieta parecerá morta aos olhos de todos, e somente Romeu saberá a verdade. Assim que ela despertar da magia, eles poderão fugir e viver juntos, longe das famílias que se odeiam e que não permitiriam o amor entre os jovens. Mas Romeu não recebe o recado sobre o plano e, ao encontrar Julieta aparentemente morta, mata-se em desespero. Ao acordar e ver seu amado morto, ela também se mata.

Romeu e Julieta querem enganar o tempo, querem a poção mágica que os faça morrer e ressuscitar para um amor eterno. Mas o tempo se lhes impõe seu corpo invisivelmente insustentável, pois não há instante algum fora do tempo. Quando eles tentam se ausentar, disfarçarem-se de mortos, o tempo continua na sua marcha e os trapaceia. É por alguns segundos, por alguns instantes que se desencontram no fim da peça. E durante esses instantes, tomados pela culpa de talvez terem destruído o objeto de amor, só lhes resta um último ato impensado, uma última ação: suicidam-se. Conseguem, por fim, se livrar do tempo, que lhes pesava insuportavelmente.

 

Terceiro ato

Falemos agora dessa vontade desmedida entre o tudo e o nada: a ambição. Uma das peças mais curtas de Shakespeare, Macbeth narra o declínio de um homem próspero quando ele abandona um Ideal de Eu para se entregar a um Eu Ideal, ao desejo incondicional de ser rei a qualquer custo.

A curta duração da peça nos mostra a habilidade do bardo em perceber que a ambição não se sustenta por muito tempo - é como um lampejo, um raio que corta o céu, impondo ao sujeito uma impossibilidade, uma ação final; a ambição não espera, não dá ao corpo tempo de construir um espaço de possibilidades para a concretização dos planos; ela quer tudo e quer agora. E em nome de quê? Novamente, em nome de uma ilusão narcísica, pois no tempo do narcisismo primário somos todos reis. Essa temporalidade que experimentamos no início da vida jamais nos abandonará, será sempre preciso negociar com suas demandas; do contrário, submissos às suas exigências, passamos a acreditar em uma espécie de destino que nos seria reservado, o de sermos uma divindade em potencial, de termos uma majestade na alma, uma coroa à nossa espera ou uma que nos foi roubada.

Macbeth, guerreiro próspero e dileto, inicia sua jornada de volta para casa junto de seu companheiro de luta. Vitoriosos e orgulhosos de si, eles caminham, até que se deparam com três bruxas. Vendo esses homens vaidosos, elas resolvem lhes armar uma peça. Aos seus ouvidos, elas profetizam: Macbeth será rei, e depois seu companheiro de batalha dará origem a uma linhagem de reis. Macbeth pensa: como é possível ser rei, uma vez que o rei ainda vive? E como é possível ser rei e depois deposto pelos descendentes do companheiro?

Assim, atiçando a ambição de ambos os homens, as bruxas dizem o que eles querem ouvir, e apenas isso. Eles agora se envaidecem com seus destinos e temem um ao outro, mas principalmente Macbeth, herói trágico da peça, a quem foi confiado um destino majestoso de curto prazo: rei e deposto. Ele vê diante de si uma dupla tarefa narcísica: é preciso se entregar ao desígnio divino e levar a cabo, custe o que custar, sua ambição à coroa. E também é preciso lutar contra a segunda parte da profecia e não permitir que, uma vez rei, perca a majestade.

"Tão feio e tão lindo, dia assim eu nunca tinha visto" (Shakespeare, 1606/2000, p. 18), pensa Macbeth, intuindo que seu dia não verá mais a aurora, pois passou a desejar não mais construir o tempo da sua vida com as possibilidades do presente, mas enlaçar o tempo, ludibriá-lo e moldar o mundo à imagem de um espelho fantasioso. "Os temores do presente são menores que as horríveis figuras da imaginação" (Shakespeare, 1606/2000, p. 23), reflete sabiamente. Mas não se escuta, quer se livrar de sua reflexão, de sua consciência moral. Eis então que adentra no palco da peça Lady Macbeth, a mais terrível vilã que a literatura já ousou construir.

É Lady Macbeth quem costura a trama subterrânea da peça. É ela que, fala após fala, dizima o espaço de respiro e interiorização de Macbeth, corrói o tempo de espera e de negociação com a realidade. Lady Macbeth diz para o marido apenas o que ele precisa ouvir para matar o rei e tomar seu lugar; diz apenas o que inflama seus impulsos, o que cutuca seu narcisismo inflado, ora dizendo que titubear é o fracasso em si e que a ação irrefletida é o que move a história, ora chamando-o de fraco e covarde, insultos insuportáveis à majestade do rei narcísico que Macbeth alimenta. "Para enganar o tempo, compõe-te de acordo com o momento" (Shakespeare, 1606/2000, p. 30), ela incita, com a consciência de que, quando os homens se abandonam ao puro êxtase do instante, estão mais perto dos animais do que da civilização e, portanto, prontos para romper os pactos sociais, derrubarem o totem e transgredirem os tabus.

"Estrelas, escondam o seu brilho; não permitam que a luz veja meus profundos e escuros desejos. Que o olho se feche ao movimento da mão; e, no entanto, que aconteça" (Shakespeare, 1606/2000, p. 26). Macbeth quer se fechar ao que sente e pensa, quer ser tomado unicamente pelo corpo impensado, pelo automatismo desgarrado do tempo, desunir-se do corpo simbólico para simplesmente ser e acontecer; quer agir e reagir por impulsos, como um joguete do destino profético que lhe foi revelado. Seus membros se movem sem a consciência dos movimentos, seu corpo é tomado como se sofresse de um transtorno. "É isto uma adaga, que vejo diante de mim, o cabo voltado para minha mão?" (Shakespeare, 1606/2000, p. 39), surpreende-se antes do assassinato. E depois de cometido o ato: "Para lá não volto. Tenho medo de pensar no que fiz. Olhar a cena uma vez mais? Não me atrevo" (Shakespeare, 1606/2000, p. 43).

Então, depois de cometido o assassinato, a consciência começa a lhe retornar, e com ela, a culpa. O corpo simbólico do tempo, suas memórias, suas marcas, os totens e os tabus, tudo cobra presença, e Macbeth passa a refletir sobre o que fez e nunca deveria ter feito. "Tivesse eu morrido uma hora antes dessa fatalidade, e eu teria vivido uma vida abençoada" (Shakespeare, 1606/2000, p. 49). Mas é tarde demais, tudo o que lhe volta do tempo deixado para trás é a culpa, o sentimento de não mais pertencer ao mundo dos homens. "Não temos como fugir daqui nem temos como aqui permanecer" (Shakespeare, 1606/2000, p. 111). Não há mais lugar no presente, e não haverá no futuro, a não ser que Macbeth e sua Lady retomem o passado e a consciência e talvez reparem os nós desenlaçados de suas histórias. Mas isso seria abandonarem a profecia e a majestade de suas ambições, e isso eles não querem.

No lugar da culpa, compõem suas loucuras. Primeiro, é Lady Macbeth quem adoece louca e fatalmente. Macbeth convoca um médico, pede que ele a cure com algum antídoto milagroso, alguma poção, ao que o médico responde: "Nesses casos, o paciente deve encontrar o seu próprio remédio" (Shakespeare, 1606/2000, p. 110). Mas nem ela, nem seu marido estão dispostos a enfrentarem a si próprios.

E por que Lady Macbeth é a primeira a enlouquecer e não o seu marido, que cometeu o ato? Essa é a chave secreta da peça. Para responder a isso precisamos compreender a estrutura narrativa do texto. Vamos lembrar que Lady Macbeth só aparece na história depois que ele já ouviu a profecia das bruxas e é apenas a ela que Macbeth revela o conteúdo. E a quem mais revelamos nossos mais secretos desejos, aqueles que para acontecerem exigem de nós os piores gestos? A quem pedimos anuência em atos perversos a não ser a nós mesmos ou a cúmplices silenciosos? Mas Lady Macbeth não é silenciosa, pelo contrário, são dela todas as palavras de incentivo ao assassinato. Pois é ela, que não tendo um nome próprio, aparece assim diante de nossos olhos como uma projeção que Macbeth faz de si, um interlocutor perverso, anuente, uma espécie de Mefistófeles; é com ela, ou seja, com ele mesmo, com seu perverso polimorfo, que ele se casou narcisicamente e com quem sela o pacto de sangue.

Lady Macbeth seria como uma sombra com quem Macbeth se une. E a partir de então a composição do tempo de sua vida não mais lhe pertence, mas à sua sombra, a qual segue arrastando-se como um morto-vivo. "Era o tempo em que meu couro cabeludo teria se eriçado com um relato lúgubre, como se vivo estivesse cada fio de cabelo meu" (Shakespeare, 1606/2000, p. 113). Não, ele não está mais vivo, ao menos não para a comunhão com outros homens. "A vida não passa de uma sombra que caminha" (Shakespeare, 1606/2000, p. 114). "Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos" (Shakespeare, 1606/2000, p. 114). Macbeth se desvencilhou de qualquer possibilidade de elaboração de seus atos, e o tempo, para ele, transformou-se apenas no rastejar dos relógios, numa caminhada mortífera "cheia de som e fúria e vazia de significado" (Shakespeare, 1606/2000, p. 114).

 

Quarto ato

Numa ilha remota, longe da presença de outras pessoas, um homem e sua filha vivem desde que foram banidos da terra natal. Durante o exílio, esse homem chamado Próspero adquiriu poderes mágicos e controla dois espíritos da ilha, que lhes obedecem e fazem com que suas vontades se transformem magicamente em realidade. Um dos espíritos, Caliban, é uma espécie de ser indomável, que se submete apenas pela força, e está buscando sempre meios de se voltar contra Próspero, ainda que para isso precise seguir outro mestre. Ariel é o espírito da criação, aquele que detém o engenho e a arte do feitiço. Controlando os poderes mágicos da ilha, tudo o que Próspero deseja é se vingar de quem o baniu de sua terra e levar sua filha ao poder. E quando um barco se aproxima da ilha, levando os homens de quem deseja se vingar, Próspero envia, pelas mãos de Ariel, uma tempestade que os naufraga, carregando-os à ilha que controla.

Assim começa o último ato de Shakespeare, sua derradeira peça, A tempestade, a despedida dos palcos. Trata-se do ocaso de sua arte, que com sua percepção aguda nos revela que seus dons exuberantes escasseiam assim como os de Próspero. Ariel, o espírito criador, clama liberdade. A vingança então parece ser o seu último ato. Mas algo está acontecendo na alma do bardo, algo que impregna toda a peça de um sentimento de renovação e comunhão, algo que só poderia advir de alguém que não deseja mais viver na ilha da magia, que quer escapar desse sentimento oceânico e onipotente que nos isola em nós mesmos, que nos faz crer em ilusões e cometer atos impensados.

A temporalidade da narrativa evoca a memória, a reconciliação, a reconexão com o passado em busca de um novo futuro e a uma transposição de um narciso primário em direção à alteridade. "Ai, como eu sofri/ com os que vi sofrer" (Shakespeare, 1611/2018, p. 19), comenta um personagem logo no começo da narrativa, anunciando que essa história não terá um fim trágico, pois o sentimento que predomina é o da empatia com uma coletividade desejada, o compartilhamento e a possibilidade de integração. Para isso, é preciso que todos se escutem, que o corpo simbólico de cada um possa impactar o outro, que o tempo passado possa ser trazido ao presente para que se encontre saídas antes não vislumbradas e, assim, que se desvencilhe da eterna repetição. É o desejo de abandonar a vontade de vingança, esse sentimento que prende o sujeito apenas ao que passou. Pois a passagem do tempo foi sentida, e a maturidade, que não é um processo cronológico, mas simbólico, foi alcançada, apreendida.

Quando escapamos da pura compulsão irrefletida, abrimos espaço para que o tempo forme corpo, forme psiquismo, e ganhamos liberdade daquilo que faz com que nos acreditemos onipotentes. Não cabe mais magia, não cabe mais o viver solitariamente; é preciso falar e se dedicar às falhas inerentes à comunicação. Estamos no reino das palavras, do simbólico, da castração.

"Seu relato cura a surdez" (Shakespeare, 1611/2018, p. 22), diz uma personagem; essa surdez da solidão narcísica em que as alteridades não existem, ou apenas existem para nos incomodar em nosso projeto de sermos reis de nós mesmos. Mas "o que é um rei para essas ondas?" (Shakespeare, 1611/2018, p. 16), pergunta-se um outro personagem diante do iminente naufrágio. O tempo chega, a tempestade avança, e seremos todos afogados se não pudermos contar com os outros e deixar os outros contarem conosco.

"Ouça mais,/ para eu trazê-la até os fatos de hoje/ que estamos vendo, sem o que a história/ não faz sentido" (Shakespeare, 1611/2018, p. 24). Precisamos recorrer à história, àquilo que nos marcou para podermos escapar desse vértice mortal do narcisismo primário e nos ligar ao mundo. E, para recorrer à história, precisamos admitir que o tempo nos formou e passou, que somos limitados e mortais, sem o que somos apenas uma ilusão de eternidade, corpos se chocando irrefletidamente com o mundo e desejando destruí-lo. Pois a tempestade chegará de toda forma e será tarde demais quando, no leito de morte, se revele a verdade de que o rei está nu, sempre esteve, e que nem rei era.

"O que vê no escuro abismo do passado?" (Shakespeare, 1611/2018, p. 20) - o que vemos de nós mesmos, sob o estranho espelho da memória, quando desdobramos nossas experiências? Vemos um ser que só podemos reconhecer se nos dedicarmos à tarefa de trazer à consciência os atos de nossa vida e a responsabilidade por eles. Ainda que não se faça perceber facilmente, o tempo, essa linha tênue, quase invisível, uniu toda nossa trajetória, compondo-nos da vida que nos orgulha e daquela que nos envergonha. "Bem de longe, parece mais um sonho que certeza/ que a memória garanta" (Shakespeare, 1611/2018, p. 20). Pois precisamos acreditar nesse sonho, porque é dele que fomos formados, e não das certezas. Toda certeza é um projeto narcísico, que ignora a dúvida, o enigma e, obviamente, a perspectiva alheia. Já os sonhos, esses seres de vida rara, eles nos acordam por dentro com suas imagens oraculares e nunca totalmente respondíveis. São eles que costuram com imagens todas as temporalidades que nos formam, restaurando nossa forma e nosso conteúdo psíquicos e garantindo a única solidez que temos: a da constante transformação. Temos que despertar para dentro dos sonhos para garantir a vida e comunhão com outras vidas. "Se a vida quer protegida/ abandona essa dormida./ Desperta! Despertai" (Shakespeare, 1611/2018, p. 53).

E então, pouco a pouco, a consciência de Próspero desperta, seus sonhos vão sendo renovados, e ele abandona seu projeto de vingança e também seus poderes mágicos. No fim, conclama seus adversários a se sentarem em sua mesa e dividirem um banquete, compartilharem o pão. Pois não há mais lugar para a solidão na ilha. A consciência do fim, da morte, da tempestade, das ondas que irão nos naufragar inapelavelmente e sem restrição transforma Próspero. E então ele já está disposto a ser um homem como todos os outros homens, numa polifonia de sonhos que se cruzam, por vezes se harmonizam, noutras se atropelam, mas que não se recolhem num narcisismo mortífero e solitário. A passagem do tempo, ainda que quase sempre imperceptível, equalizou a todos.

E assim, desperto de um sono etéreo, Próspero está novamente pronto para sair da ilha e habitar o continente. Já Shakespeare lentamente abandona seus lindos sonhos, enredos que compuseram o que de mais fantástico se criou na cultura literária, e caminha em direção a se tornar somente palavras registradas no tempo. Seu corpo biológico se esvai, mas seu corpo simbólico será capaz de atravessar séculos.

Nossa festa acabou. Nossos atores,
que eu avisei não serem mais que espíritos,
derreteram-se em ar, em puro ar;
e como a trama vã desta visão,
as torres e os palácios encantados,
templos solenes, como o globo inteiro,
sim, tudo o que ela envolve vai sumir
sem deixar rastros. Nós somos do estofo
de que se fazem sonhos; e esta vida
encerra-se num sono.
(Shakespeare, 1611/2018, p. 84)

 

Referências

Shakespeare, W. (2004). A comédia dos erros. São Paulo: L&PM. (Trabalho original publicado em 1594)        [ Links ]

______. (2018). A tempestade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1611).         [ Links ]

______. (2000). Macbeth. São Paulo: L&PM. (Trabalho original publicado em 1606)        [ Links ]

______. (1998). Romeu e Julieta. São Paulo: L&PM. (Trabalho original publicado em 1595)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
THIAGO PEREIRA MAJOLO
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Recebido 06.06.2020
Aceito 15.06.2020

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