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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

Da mãe-aranha à mãe-costureira: as formas e movimentos da maternidade na obra de Louise Bourgeois

 

From spider mother to seamstress mother: the forms and movements of motherhood in the work of Louise

 

 

Camilla Baldicera Biazus

Psicóloga (UFN), mestre em Psicologia Clínica (UNISNOS), doutora em Letras (UFSM) e pós-doutoranda em Psicologia (PNPD/CAPES - UFSM). Professora do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI - Campus Santiago)

Correspondência

 

 


RESUMO

Louise Bourgeois foi precursora da arte feminista dos anos 1970, em Nova York, pela identidade autobiográfica apresentada em suas obras e, também, por ser uma das primeiras artistas a levantar o tema da maternidade a partir da sua arte. Este estudo buscará refletir sobre os movimentos da maternidade considerando três obras da artista, sendo elas respectivamente: "Mulher em espiral" (1952/2003), "A criança tecida" (2002) e "Mamãe" (1999). A partir dessas esculturas, problematiza-se o lugar da maternidade na contemporaneidade, refletindo sobre os atravessamentos dessa experiência para/no corpo da mulher e utilizando-se da teoria winnicottiana como sustentação para tecer essas reflexões. Assim, espera-se com este artigo usar a arte de Louise Bourgeois em articulação com a teoria de Winnicott como um dispositivo mobilizador de novas narrativas sobre o lugar da maternidade na constituição da mulher e do feminino.

Palavras-chave:Louise Bourgeois. Maternidade. Psicanálise winnicottiana.


SUMMARY

Bourgeois Louise Bourgeois was a forerunner of feminist art in the 1970s, in New York, for the autobiographical identity presented in her works and, also, for being one of the first artists to raise the theme of motherhood from her art. This study will seek to reflect on maternity movements considering three works by the artist, namely: "Spiral Woman" (1952/2003), "The Woven Child" (2002) and "Maman" (1999). From these sculptures, the place of motherhood in contemporary times is problematized, reflecting on the crossings of this experience to / in the woman's body and using Winnicott's theory as support to weave these reflections. Thus, it is expected with this article to use the art of Louise Bourgeois in conjunction with Winnicott's theory as a device that mobilizes new narratives about the place of motherhood in the constitution of women and the feminine.

keywords: Louise Bourgeois. Maternity. Winnicottian psychoanalysis.


 

 

Criar é abrigar o vazio incerto dos começos.

(Panadés, 2017, p. 51)

A artista, sua história e sua arte

Louise Bourgeois nasceu na França em 1911 e foi precursora da arte feminista dos anos 1970, em Nova York. Foi uma das primeiras artistas a falar sobre a maternidade através das suas obras, abordando também temas referentes à família, ao lar, à histeria, a figuras mitológicas femininas e à sexualidade. Louise não restringiu a sua arte a apenas uma forma de expressão, se utilizando, ao longo da vida, de "diferentes suportes tais como a pintura, a performance, a gravura, a fotografia e a escultura" (Laurent IIs, 2017, p. 24). É interessante destacar aqui a palavra suporte elencada por Laurent IIs para fazer referência às materialidades utilizadas por Louise para compor suas obras. Suporte parece ser mesmo o lugar e a função que a arte veio ocupar na vida e história dessa artista. Arte como holding, talvez nos dissesse Winnicott.

Filha de uma mãe artesã, Louise cresceu em um ambiente de agulhas, linhas, costuras e restauros. Sua família possuía uma empresa de restauração de tapeçarias antigas e foi nesse espaço que, ainda criança, foi iniciada como artesã:

Aos doze anos de idade, ela já trabalhava na empresa de sua família: uma oficina de restauro de tapeçarias antigas. Sua mãe conduzia o trabalho no ateliê como uma exímia reparadora. Com ela, Louise aprendeu o ofício de coser para o reparo de fibras rompidas. Talvez, na antiguidade desse traço biográfico, resida algo da singularidade prolífera de sua obra. (Panadés, 2017, p. 160)

A relação com a mãe, vista pela artista como uma mulher frágil e submissa, também, com esse espaço, tornou-se tema frequente em suas obras. Aparentemente, as experiências vividas na infância dão à Louise o material/impulso para restaurar o corpo e recompor sua vida, tendo a arte como suporte para esse processo de reinvenção de si e de sua história: "Uma mulher tecelã, restauradora de tecidos desfeitos, e uma criança aprendiz dessa linguagem: o traço da linhagem materna de Louise Bourgeois parece ter deixado como herança a matéria do restauro: a ternura da curva no trabalho com o resto pelo gesto de coser" (Panadés, 2017, p. 161).

A partir das obras "Mulher em espiral" (1952), "A criança tecida" (2002) e "Mamãe" (1999), buscar-se-á refletir sobre os tensionamentos acerca da experiência da maternidade, problematizando a contemporaneidade e seus atravessamentos para/ no corpo da mulher. As formas criadas por Louise e selecionadas para este trabalho parecem colocar a maternidade como um corpo em obra, repleto de histórias, afetos, sentidos e, também, potência de vida. A partir da invenção de paisagens corporais, Louise tece formas de ser. Costura, remenda e alinhava fatos de uma história que sem a arte não seria possível sentir, significar. O que as paisagens corporais de Louise dizem sobre nós? Sobre o ser mulher/mãe na contemporaneidade?

A fim de tentar movimentar esses questionamentos, irei tecer aqui a construção de uma análise sobre as obras, com o objetivo de criar possíveis versões e sentidos para a arte de Louise, e não uma verdade ou interpretação incontestável acerca de suas obras. Reitero, assim, que trata-se apenas de um gesto de interpretação, atravessado pelas minhas leituras, histórias, experiências e pelo modo como a sua arte me tocou. Dessa forma, inicio este percurso articulando a cada obra escolhida uma forma de se pensar o corpo-mulher na história e no social.

 

O corpo-casulo: "Meu corpo é a minha escultura"

 

 

Na obra "Mulher em espiral", o corpo feminino se encontra pendurado/suspenso por um fio de arame - vê-se apenas os pés e as pernas. O resto do corpo, bem como a cabeça, se encontra envolvido por uma espécie de casulo. O corpo-casulo perde a base e, suspenso no ar, ganha um movimento pendular que, segundo Bourgeois, "é importante porque permite que as coisas girem" (Panadés, 2017, p. 266).

A partir dessa obra, pode-se pensar que Louise retrata um corpo feminino em gestação, que se encontra contido em um casulo, suspenso e preso a um fio que limita seus movimentos, que impede o seu olhar, sua ação e que, assim, evidencia certa vulnerabilidade e passividade que permeiam o encontro entre o feminino e a maternidade. A obra torna possível pensar numa certa desconexão da mulher com o seu próprio corpo, uma vez que o vigor corporal permanece enclausurado, impedindo a experiência de vitalidade. O corpo-casulo se aproxima aqui das reflexões feitas por Winnicott (1957) acerca da despersonalização que, segundo o autor, diz de uma desconexão entre o corpo e a mente, o que por sua vez facilita o surgimento do sentimento de não ser real para si mesmo.

O corpo-casulo parece refletir um corpo feminino que é desejado e valorizado pelo seu potencial reprodutivo e sexual - por aquilo que está exposto e marca a sua superfície -, mas que acaba sendo desrespeitado no que tange a subjetividade da mulher, situação essa que pode provocar efeitos de despersonalização significativos. É como se a história, o desejo e a singularidade dessa mulher fossem anuladas e/ou reduzidas ao seu órgão genital, tornando-a um mero objeto. A potência de agir desse corpo perde a sua força frente à imposição do ambiente. Não há comunicação. Não há encontro. Há submissão e um território existencial restrito aos limites do casulo.

 

Corpo-receptáculo: "Uma pessoa imóvel no despertar do medo"

Na obra "A criança tecida", podemos perceber de acordo com a análise de Panadés que: "A condição gestacional da criança ocupa de tal modo o movimento em cena, que os demais elementos da composição parecem servir como sustentáculo à pequena figura tecida, secundários e reduzidos ao mínimo, se comparados à integridade de uma anatomia humana" (2017, p. 168).

 

 

O corpo-receptáculo perde o casulo como proteção/defesa e passa a ter que sustentar uma outra vida/ um outro corpo a partir do seu. Mas como ser sustentação sem antes ter vivenciado a experiência de ser sustentado? Do corpo-casulo deriva um corpo despedaçado, sem pernas, sem braços, sem cabeça, sem identidade, e que tem agora uma função: ser receptáculo. Um dos significados possíveis para a palavra receptáculo no dicionário faz referência a "qualquer vasilha" que possa conter algo. O uso do pronome indefinido "qualquer" parece vir ao encontro desse corpo que significa uma pessoa sem especificação, sem história, sem subjetividade, que sai de cena para dar espaço à criança que é tecida. Esse corpo-receptáculo composto apenas pelo tronco faz ver duas funções condicionadas ao feminino ao longo da história: a procriação e a amamentação. Novamente um corpo reduzido a um mero objeto, com funções determinadas e esvaziado de sua subjetividade/história.

A partir do que vem nomeando-se aqui como corpo-casulo e corpo-receptáculo para se pensar os movimentos entre a mulher, o feminino, a maternidade e o social ao longo da história, é possível inferir que a mulher parece não ter encontrado um ambiente seguro e facilitador para a construção de uma trama psicossomática que lhe possibilitasse o sentimento de habitar o próprio corpo. De acordo com Boraks: "A submissão excessiva, que eclipsa o singular e substitui o gesto espontâneo por organizações reativas, é a essência do que Winnicott considera não vida" (2008, p. 120). Através das duas obras de Bourgeois analisadas aqui, é possível refletir sobre o peso da história e da cultura na construção da maternidade como determinante do reconhecimento do feminino na sociedade. É possível pensar sobre a construção de um ideal de mulher e mãe que se inicia no fim do século XVIII e que atua a partir de significativas exigências e opressões que passam a regular a vida das mulheres nas suas mais variadas formas. Assim, pensa-se que o corpo-casulo e o corpo-receptáculo, retratados por Bourgeois, parecem dar voz e visibilidade à luta da mulher em manter organizações protetoras rígidas que evitassem, de certa forma, estados de agonia, ao preço de uma não-vida.

 

Corpo-aracnídeo: "EU faço, EU refaço, EU desfaço"

Parece ser através da obra "Mamãe" que Louise busca encontrar uma via para solucionar a fragilidade, vulnerabilidade e passividade que cercaram a mulher ao longo da história e que se imprimem como marcas significativas na sua experiência com a maternidade. Nessa obra, observa-se um corpo completamente dissociado da imagem do humano, revestido pela estrutura de uma aranha robusta e grandiosa. Com seus dez metros de altura e pesando dez toneladas, a mulher-mãe antes frágil e submissa se torna grande e pesada o suficiente para não passar despercebida. Se antes não existiam braços, pernas nem cabeça ou se, ainda, parte do seu corpo estava envolto por um casulo, agora a mulher no corpo-aracnídeo ganha oito patas que, além de tecerem a teia, atacam, devoram e alimentam suas crias. A aranha é aquela que "tira de si a matéria-seiva da qual seu modo de vida depende, tem a artesania da tecelagem, despende e oferta a superfície tecida no prolongamento do próprio corpo" (Panadés, 2017, p. 120).

 


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A mulher/mãe no corpo-aracnídeo parece esconder suas fragilidades, lutando bravamente para ter sua existência reconhecida, para sentir-se real. É preciso recorrer à anatomia animal para tentar recuperar a vida desse corpo. Contudo essa tentativa parece se fazer presente a partir da construção de uma nova "barreira protetora" - representada na obra pelo tamanho, peso e estrutura da aranha -, que busca proteger a mulher/mãe das imposições externas, o que na teoria winnicottiana poderiamos chamar de falso-self. O corpo-aracnídeo agora reage ao ambiente, se tornando a sua própria defesa, se adaptando vorazmente aos diversos espaços, mas tendo que pagar um preço alto para manter essa ilusão de autossuficiência: o de "estabelecer um solipsismo dificilmente quebrado pelo contato com a diferença provocada pelos encontros" (Marques, 2012, p. 111). A mulher/mãe no corpo-aracnídeo parece ser essa que busca responder/reagir a todas as demandas e imposições externas, mas que acaba presa à própria teia, se afastando da mãe suficientemente boa de Winnicott.

 

Do corpo-aracnídeo ao corpo-tecelão: em busca de uma maternidade viva

Sabe-se que a maternidade se constitui enquanto produto da cultura e do social, sendo assim marcada por uma série de discursos e sentidos que, ao longo da história, imprimiram a essa experiência representações, imposições e opressões. O que Bourgeois nos possibilita através da sua obra é olhar/pensar sobre o quanto a maternidade parece evocar na mulher um campo de experiências emocionais primitivas que predispõem ao risco de um desequilíbrio psíquico e, também, o quanto o sentimento de habitar o próprio corpo é uma conquista difícil e árdua para a mulher ao longo dos tempos.

Acredita-se que essa mulher/mãe que sai de um corpo-casulo, passando por um corpo-receptáculo até chegar ao corpo-aracnídeo produz novas formas de subjetivação e enlace com o feminino e sua relação com a maternidade. Entretanto o corpo feminino continua sendo presa fácil de discursos que buscam regular/ determinar a vida da mulher desde o século XVIII através dos discursos religioso e patriarcal, até à nossa atualidade através do discurso da ciência e da medicina. A mulher/mãe ideal de hoje não é mais aquela que precisa "apenas" conjugar perfeitamente a dedicação ao lar, aos filhos e ao marido. Agora, além dessas funções, ela precisa também ter autonomia, independência financeira, um corpo perfeito e uma experiência materna permeada por um modelo incondicional e altruísta, que busque delimitar como ser uma boa mãe. Não à toa que o termo autossufi(ciência) contém a palavra ciência no próprio nome, pois parece ser esse o grande aliado do corpo-aracnídeo dessa mulher que tenta, à sua maneira, sobreviver a essa avalanche de demandas e expectativas que parecem querer soterrar seu corpo, seu desejo, sua história.

Para finalizar as discussões que foram tecidas ao longo deste trabalho e que tiveram como principal objetivo promover um olhar a esse corpo mulher/mãe tão bem representando e (re)in-ventando pela obra de Louise Bourgeois, propõe-se pensar em um corpo-potência, que, ao invés de esconder suas fragilidades e se colocar como escudo frente ao encontro com o outro, possa desfrutar da zona de experiência, aprendendo a conviver e criar a partir das suas ambivalências/fragilidades. Talvez a forma possível para imaginarmos esse corpo-potência, e que faz referência à arte de Louise, seja a de um corpo-tecelão, aquele que traz na bagagem não somente as próprias mãos, mas também sua habilidade e "apropriação da ferramenta, o instrumento de fabricar o tecido na urgência do alinhamento, o laço amoroso e a ruptura da trama sempre por um fio, cujo fim se ata ao começo e tende ao interminável tecido de um corpo em obra" (Panadés, 2017, p. 106). Tecer se dá no âmbito do acontecimento estético-afetivo, no encontro com a alteridade. Ter um corpo-tecelão é:

Confiar nas extremidades dos fios, no funcionamento enviesado dos gestos, na torção das entrelinhas, na consistência da matéria tecida. A arte da tecelagem oferece um ensinamento de superfície, um leito de contato, um plano táctil, uma parede porosa, como o aglutinado calcário que protege o ovo, como o vazio pleno do voo liberta a linha fina e sustenta o recuo, a curva, a laçada, o avanço, o deleite do novo se fazendo. (Panadés, 2017, p. 121)

 

Referências

Boraks, R. (2008). A capacidade de estar vivo. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(1),112-123.         [ Links ]

Laurentiis, G. (2017). Louise Bourgeois e modos feministas de criar. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Marques, M. R. (2012). Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. W. Winnicott. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica (PUC/PPGP). Rio de Janeiro, Brasil.         [ Links ]

Panadés, J. G. (2017). Ela, a criação também em Clarice Lispector e Louise Bourgeois. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/PPGL). Belo Horizonte, Brasil         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1957). O conceito do indivíduo saudável. In Tudo começa em casa (P. Sandler, trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
CAMILLA BALDICERA BIAZUS
Rua Maurício Cardoso, 98/301, Bairro Fátima
97015-400 - Santa Maria/RS
Tel.: 55 99638.8149

Recebido 13.01.2020
Aceito 18.04.2020

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