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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

A dialética do valor da vida: encontros e sínteses

 

Dialectic of the value of life: encounters and syntheses

 

 

Bruno Profeta Guimarães Figueira

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Reflete-se sobre o processo de análise como movimento dialético entre o eu e o outro nos planos do pessoal e da cultura, tendo nas sucessivas sínteses aquilo que dá sentido de verdade e valor à vida. Apresenta trechos de depoimentos do músico brasileiro Mateus Aleluia para se pensar no tema.

Palavras-chave: Dialética. Colonização. Opinião. Intersubjetividade. Mateus Aleluia.


SUMMARY

The article reflects on the process of psychoanalysis as a dialectical movement between the self and the other in the personal and cultural planes, taking in those successive syntheses what gives meaning of truth and value to life. It presents excerpts from the testimonies of the Brazilian musician Mateus Aleluia to think about the theme.

keywords: Dialectic. Colonization. Opinion. Intersubjectivity. Mateus Aleluia.


 

 

 

E até hoje me pergunto
Quem fomos, quem somos, quem seremos?
\...]

Também Cachoeira me disse:
O homem que eu falo é você
Mergulhe bem dentro de si!
Se encontre e pergunte por quê - ah!
\...]

Cachoeira
Foi de Luanda que entendi
Sua ancestralidade
Olhem pra mim! Sou de Cachoeira
Penso, falo, canto e sou sua liberdade

Trechos da letra de "Homem! O animal que fala",
de Mateus Aleluia, no disco Cinco Sentidos (2009)

É conhecida a imagem de explorador associada a Freud em sua invenção e fundação da psicanálise. Em entrevista concedida ao jornalista norte-americano George Sylvester Viereck em 1926, Freud expande a metáfora ao reiterar o quanto a aventura psicanalítica estava apenas em seu alvorecer: "Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes". Primeiro movimento, a conquista.

O grande desbravador, porém, na longitude de seus 70 anos, afirma "aceitar a vida com serena humildade", não permitindo que "nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida", e mais, apontando ao horizonte do trabalho analítico, que "a psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise". Segundo movimento, o assentamento.

Podemos pensar na hipótese de que a nova síntese alcançada no contrapasso do processo de análise seja de natureza análoga ao movimento dialético da história do Espírito tal como proposto pelo filósofo alemão Hegel (1770-1831):

O caminho é feito de verdades parciais que vão sendo reunidas até que se chegue a uma verdade totalizadora que as engloba. [...] Cada tese e cada antítese foram momentos necessários para a razão conhecer-se cada vez mais. Cada tese e cada antítese foram verdadeiras, mas parciais [...] a razão não pode ficar estacionada nessas contradições que ela própria criou por uma necessidade dela mesma: precisa ultrapassá-las numa síntese que una as teses contrárias, mostrando onde está a verdade de cada uma delas e conservando essa verdade. (Chaui, 2014, p. 102)

Através dos movimentos, o processo de colonização de si mesmo se desenvolve no interior do que é experimentado como verdadeiro.

A vida mais simples, assim, não seria facilidade de aceitação, superficialidade ou ingenuidade e credulidade. Ao contrário, seria o produto de sucessivas e sobrepostas jornadas na busca por aquilo que é verdadeiro, colocada em marcha pela necessidade de realização do potencial de vida e pelo desenvolvimento da capacidade de tomar a verdade como bússola um valor com a "consciência da ignorância, do espanto, da admiração e do desejo de saber" (Idem, ibidem, p. 121). Experimentar o solo firme do que é tocado como verdadeiro, nesse sentido, é simples. Simplório é o falso e complexas são as batalhas da conquista e as contradições do assentamento.

Dito de outro modo, a serena humildade encontrada a cada síntese consistiria na abertura ao sabor de verdade encontrado a cada degustação que se segue à mordida na vida, fresca como se apresenta e não ultraprocessada e enlatada pela máquina das opiniões acumuladas.

 

O continente colonizado

Muitos psicanalistas não só continuam desencavando templos e descobrindo continentes como também iniciaram os assentamentos de colonização nesse pouco mais de um século do pioneirismo freudiano.

No Brasil, primeiro país de implantação do freudismo na América Latina (Roudinesco & Plon, 1998, p. 86), a sua fundação como colônia da expansão marítima portuguesa nas descobertas europeias do Novo Mundo pode nos ajudar a compreender, e fazer uso metafórico, através dos movimentos de ocupação e subjugação de territórios e povos desconhecidos e seus desdobramentos.

Alfredo Bosi (1936), professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em seu Dialética da colonização, obra crítica sobre a(s) cultura(s) brasileira(s), define a colonização como

um processo ao mesmo tempo material e simbólico: as práticas econômicas dos seus agentes estão vinculadas aos seus meios de sobrevivência, à sua memória, aos seus modos de representação de si e dos outros, enfim aos seus desejos e esperanças [...] não há condição colonial sem um enlace de trabalhos, de cultos, de ideologias e de culturas. (2001, p. 377)

E que "A ação colonizadora reinstaura e dialetiza as três ordens: do cultivo, do culto e da cultura. (Idem, ibidem, p. 19).

A cada uma dessas ordens corresponde uma dimensão temporal: presente (cultivo: exploração da terra e da força de trabalho), passado (culto: expressões afetivas e simbólicas, religiosas e tradicionais) e futuro (cultura: projetos, ideias e técnicas). E é a relação entre essas dimensões e suas combinações, harmônicas ou contraditas a cada momento histórico que nos permitem compreender as implicações mútuas nos processos formativos brasileiros, tendo como uma de suas linhas de base a hipótese, persistente nas ciências humanas, de uma formação cultural brasileira "múltipla e mestiça" (Idem, ibidem, p. 385).

Cabe destacar sua reflexão sobre o que é o processo de colonização na soleira do século XXI, na chamada pós-modernidade emergente nos anos 1970:

Enfim, à proporção que o nosso olhar se move no rumo da vida mental contemporânea, uma teia de signos tecnicamente nova marca a sua presença imperiosa: são os meios de comunicação de massa. Dos meados do século XX em diante, passa a ser colonizada em escala planetária a alma de todas as classes sociais. Colonizar quer dizer agora massificar a partir de certas matrizes poderosas de imagens, opiniões e estereótipos. (Idem, ibidem, p. 383)

Nesse momento, cabe perguntar: o que significa a colonização/massificação (ou os processos de subjetivação) das almas a partir de opiniões e estereótipos?

 

A metrópole da opinião

Ecléa Bosi (1936-2017), professora emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), contribui para o entendimento da função psicológica da opinião como caminho para a resposta à essencial pergunta de como passar da opinião ao conhecimento (ou, diríamos, ultrapassar o falso em direção ao verdadeiro).

Partindo da noção de estereotipia (E. Bosi, 2003) como estreitamento mental e produto de mediações impostas (usualmente associadas aos poderes e culturas dominantes) ao processo perceptivo em detrimento da sensibilidade ao mundo ao nosso redor (Idem, ibidem, p. 115), é retomada, com o intelectual alemão Adorno (1903-1969), a noção de opinião como "posição de uma consciência subjetiva, tida como válida, mas sem a universalidade da verdade [e assim, então] O conhecimento é a opinião verificada" (Idem, ibidem, p. 121).

A opinião, ligada às crenças e suposições, tem sentido pejorativo se considerada como arbitrariedade e falsidade na medida em que está sempre à frente das condições de conhecimento sobre os objetos, seja pela falta de oportunidade de sua verificação, seja pela dinâmica da vida prática. "É como uma excrescência além dos realia, um grão de loucura que pode germinar e se desenvolve selvaticamente" (Idem, ibidem, p. 121). À opinião, "falta-lhe a liberdade para o objeto, de que fala Hegel, que é a liberdade que o pensamento tem de assumir a diferença das coisas. E a coisa pertence ao mundo, não é reiteração mecânica da opinião" (Idem, ibidem, p. 121).

A própria autora oferece uma saída:

o corretivo é a relação do pensamento com o objeto que o liberta do capricho, da volubilidade da opinião pela adesão humilde às coisas. Essa adesão humilde às coisas, muitas vezes perdida e sempre a reconquistar, impede que as opiniões continuem a se repropor e a proliferar numa projeção doentia". (Idem, ibidem, p. 122).

A passagem da opinião (e seu degenerado, o estereótipo) para o conhecimento passa pelo exercício do pensar (possível apenas em serena humildade), que implica um relacionamento entre sujeito e objeto, um voltar-se do sujeito para os objetos do mundo (e, diríamos, a si mesmo, como reflexão e análise) de modo a vê-los como se apresentam, e não como nos esquemas perceptivos que lhe ditam como apreendê-los.

 

Independência: entre a teoria e a associação livre

Se a cultura, no sentido de estabelecimento de certas maneiras de pensar e de agir que projetam a reprodução de certas formas materiais e simbólicas para sua manutenção no futuro, é uma dimensão do processo colonizador, como o pensamento conquista sua independência, ou melhor, sua autonomia, do tacão das opiniões?

Como sabemos, na formação em psicanálise, o estudo teórico é um de seus eixos de sustentação, ao lado da análise pessoal, supervisões clínicas e do envolvimento na comunidade psicanalítica com suas instituições. Mas há risco de tomar uma teoria psicanalítica como opinião? Sim, se a apreensão teórica não for fruto de realizações pessoais operadas através do trabalho de reflexão e experiência, consistindo, assim, na crítica de Freud (1988) aos então inteligentes divulgadores norte-americanos ou à popularização com base na repetição de jargões.

O que é uma teoria, afinal? Do grego, theoría é ação de ver, observar, examinar para conhecer; contemplação do espírito, meditação, estudo; especulação intelectual por oposição à prática (Chaui, 2002, p. 512). Sem desenvolver aqui a diferenciação grega entre poíesis e práxis (para Aristóteles, no último - campo da ética e da política - não haveria separação entre o agente, ato ou ação e o seu resultado, enquanto que para o primeiro o agente e o resultado da ação estão separados ou são de natureza diferente), cumpre notar que a teoria requer alguma atitude de recepção ao que se apresenta.

Nesse sentido, o psicanalista americano-britânico Christopher Bollas reconhece a existência de uma "ética da percepção" (2013, p. 59), considerando que as teorias, quando praticadas, tornam-se decisões éticas, na medida em que "influenciam a maneira como o analista transforma seus analisandos. A prática segue a teoria" (Idem, ibidem, p. 58).

É com base nessa argumentação que Bollas defende a legitimidade da multiplicidade de teorias psicanalíticas, pois cada uma dá acessos perceptivos distintos umas das outras, aumentando a capacidade de recepção de pacientes através da expansão da mente do analista obtida pelas passagens entre as diferenças teóricas, entre os diferentes assentamentos psicanalíticos cultuados e cultivados ao longo do tempo. Lembremos, porém, que não abordaremos aqui a questão do processo de legitimação no desenvolvimento das teorias psicanalíticas, pressupondo sua validade clínica como ponto fulcral.

As teorias são sínteses do movimento de reflexão sobre a experiência. Ao mesmo tempo, enquanto o exercício teórico é, em boa medida, trabalho da consciência, uma vez incorporado ao analista, mescla-se ao seu funcionamento psíquico de modo integrado - pensa-se também com o inconsciente. A capacidade de recepção do analista é percebida de modo inconsciente pelos pacientes naquilo em que Freud, recuperado por Bollas, "situa o trabalho da psicanálise inequivocamente dentro da intersubjeti-vidade inconsciente. Embora ambos estejam conscientes, a consciência não desempenha um papel de mediação" (2012, p. 28).

Tal processo só é compreensível quando voltamos de forma radical a uma das proposições freudianas, qual seja, que somos habitados por pensamentos inconscientes e capazes de pensar inconscientemente, ainda que não conheçamos quem sejam os sujeitos que pensam em nós.

Ainda com Bollas, acompanhamos em nossas clínicas como cada analisando

em livre associação carrega sua própria maneira de ser, discurso e modo de se relacionar, "instruções implícitas" que se comunicam com a capacidade do analista de enxergar "padrões reconhecíveis". Leva tempo para o analista decodificar as associações livres do analisando, mas isso ocorrerá por meio do ato de recepção e tradução do analista. (Idem, ibidem, p. 30).

Bollas chama a atenção para o trabalho de recepção inconsciente, vinculado ao primitivo "mundo da comunicação mútua entre o bebê e a mãe, que forma a base do próprio insconsciente" (Idem, ibidem, p. 29), em contraste com o papel desempenhado pela repressão no sistema inconsciente (este, vinculado ao eixo paterno, na dinâmica da sexualidade e agressão). Na evolução do pensamento psicanalítico, este seria um povoado à margem da formação inicial dos centros urbanos do novo território.

Assim, deixar-se levar pela fala do analisando "abandonando o pensamento racional em favor do pensamento associativo" (Idem, ibidem, p. 33) é arar o campo do "par freudiano" (p. 32). Seguir o fluxo do analisando, por parte do analista, é deixar que o estado de atenção uniformemente suspensa ocupe o espaço de modo a se abrir para a observação (e auto-observação) do trabalho da associação livre no encontro com o analisando, e não sobre o analisando ou, na pior das hipóteses, apesar do dele.

 

A dialética da colonização em Mateus Aleluia

A obra de Mateus Aleluia pode ser interpretada como uma síntese artística de alguns dos processos fundamentais da formação cultural do Brasil, e também pensamos - através de seus discos, recitais, palestras musicais em ambientes culturais e universitários - desde uma perspectiva psicanalítica, no modo singular como o artista é capaz de conjugar e integrar os elementos constitutivos da dialética entre a conquista e o assentamento, entre a teoria e a associação livre, entre os encontros e as sínteses.

Nascido em 1943, natural de Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano, Mateus Aleluia é pesquisador da cultura afro-barroca com longa experiência em Angola, onde viveu entre os anos de 1983 e 2002 (e ainda mantém um intenso intercâmbio), inclusive tendo servido como pesquisador cultural credenciado pela Secretaria de Estado e Cultura naquele país. Compositor, cantor, percussionista e violonista, foi integrante do grupo musical Os Tincoãs, de grande repercussão entre as décadas de 1960 e 1980, através do qual introduziu e aprofundou elementos rítmicos e temas do culto aos Orixás numa sonoridade marcada pelo trabalhado com as vozes do trio abertas em diferentes alturas.

Para os limites deste nosso exercício de reflexão, entretanto, escolhemos nos debruçar não sobre sua produção musical, mas selecionamos trechos recolhidos de um depoimento que nos tocou de forma significativa a respeito de suas origens pessoais e artísticas e que reproduzimos a seguir:

Mateus, como toda criança cachoeirana cresceu embalado pelo sino da igreja da matriz [...] e todas as noites de Mateus, como qualquer garoto cachoeirano, era embalado pelos toques dos candomblés.

[...]

Eu cantava no coro da igreja, naquela época em que as missas eram cantadas em latim. [...] O padre falava e ninguém entendia, mas todo mundo se achava que estava fazendo realmente um religare, estava se ligando a Deus.

Nos momentos de seriedade ritualística católica eu me sentia católico. Nos momentos de paz comigo próprio eu me sentia totalmente envolvido pelo candomblé que entrava em todos nós de forma contornada. [...]

E paulatinamente nós [Os Tincoãs] fomos começando a cantar pontos de candomblé. E dávamos a ele um tratamento como o que a gente achava que era o mais aproximado, talvez, da música sacra, que era para nós o nosso erudito, que era a música sacra barroca católica. Aqueles harmônicos dos órgãos, aquilo nos conduzia a uma harmonia natural.

E pegamos o candomblé e pronto, aquilo era como se os cânticos de candomblé, quando ressoassem no vale ali do Paraguaçu, eles também adquirissem esse contorno que tem nos harmônicos do órgão. É como se a marimba africana, que também é harmônica, naquele momento ela dissesse 'tudo isso veio de mim... Eu existo! Antes de tudo isso que vocês estão vendo aí; por que me esquecem?! Peguem essa harmonia que também é nossa'

Cantamos também músicas ligadas à ancestralidade ritualística do catolicismo, também, mas já em ritmo de candomblé [...] pegávamos a música católica e colocávamos dentro da rítmica do candomblé. [...]

Quando ouviu a gente cantar, a comunidade do candomblé nos abraçou. Quando Os Tincoãs pegou os cantos do candomblé e tratou de forma harmônica, abrindo em vozes, mostrou a potencialidade que aqueles cantos tinham. Viram que o canto do candomblé tinha ritmo, tinha melodia e tinha harmonia, como qualquer outra música concebia dentro dos moldes de conservatória musical. (Aleluia, 2017)

O septuagenário compositor contextualiza sua infância se referindo na terceira pessoa. O velho evoca a criança no terreno da memória e quase brinca com ela. O menino Mateus, então, é embalado, envolvido pelas vozes e músicas que fazem parte do ambiente-mãe da infância. Os rituais, tanto os diurnos católicos quanto os dos candomblés noturnos, oferecem contornos e símbolos para a introdução da criança na comunidade humana.

Crescido, o jovem parte das identificações e das formas aprendidas na cultura circundante (incluindo aí a hegemônica) para o resgate dos cânticos de sua infância. Resgate que é chamado, algo com forte capacidade de atração, ecos do passado (e da ancestralidade) que dizem algo de si que se conhece mas que demanda ser pensado (usando aqui a psicanálise do conhecido não pensado de Bollas, 2015).

O tratamento polifônico aos pontos do candomblé contém o conflito e as contradições entre as culturas dominadora e subjugada, produzindo uma síntese capaz de não só reparar uma ancestralidade colocada às margens do esquecimento (na linda fala onírica da marimba africana), mas também de promover uma experiência de encontro da cultura estabelecida literalmente no ritmo (ou seja, no tempo interno) da identidade reencontrada do candomblé, que também já está em transformação pelo próprio encontro. E de tal forma que a cultura antes fechada da comunidade de candomblé - provavelmente como defesa contra a invasão e ameaça de aniquilamento da cultura dominante (que, à época, assim como hoje, de fato a reprimia) - abraça a nova expressão de suas músicas, identificando-se, agora de forma legítima, com os elementos de beleza da cultura hegemônica (os moldes da conservatória musical). A abertura ao outro, criando oportunidades de identificação e de síntese, traz consigo as possibilidades de reconhecimento mútuo em dignidade.

No melhor estilo freudiano de O mal-estar na civilização (1930/2010), Mateus Aleluia chega a ser didático:

À noite a gente ouvia [...] era o candomblé. A noite toda isso. De manhã logo cedo - olha que coisa bonita e quebrando paradigmas - nós éramos acordados pelo sino da igreja católica que reprimia o candomblé. Aquilo era bonito, mostrando que nós nascemos para poder viver incluído e não viver desassociado. A natureza tem suas leis, o homem é que tem moral e com sua moral vai afastando o homem do próprio homem. (2019)

Se, na entrevista de 1926, Freud já apontava que a maldade (diferentemente da crueldade animal) do homem era um derivado da desintegração do ego no conflito entre a adaptação aos padrões elevados de civilização confrontados e seus mecanismos intelectuais e psíquicos, o valor da vida talvez só seja possível encontrar na contínua capacidade de síntese e de integração daquilo que somos com aquilo que nos constitui, num processo de criação/encontro que só se dá na recepção ao outro. Dito de outro modo numa fala que ouviríamos como de caráter metapsicológico de Mateus Aleluia: "A gente nunca descobre nada. A gente apenas volta pra tudo aquilo que nós somos e que nos esquecemos que somos" (2019).

 

Referências

Aleluia, M. (2009). Cinco sentidos [álbum realizado por Cada Macaco No Seu Galho/ Garimpo Música/ Sanzala Cultural e produzido por Mateus Aleluia e Ubiratan Marques]. Recuperado em julho de 2020, de Mateus Aleluia: http://mateusaleluia.com.br/cinco-sentidos/#10.

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Bollas, C. (2012). A questão infinita. (R. C. Costa, trad.). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

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Bosi, E. (2003). Entre a opinião e o estereótipo. In O tempo vivo da memória. Ensaios de psicologia social. (pp. 113-126). São Paulo: Ateliê Editorial.         [ Links ]

Chaui, M. (2002). Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, vol. 1 (2ª ed., rev. e ampl.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

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Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

______. (1988). O valor da vida (uma entrevista rara de Freud) (P. C. de Souza, trad.). Ide, 15, 54-58.         [ Links ]

Roudinesco, E.; Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise (V. Ribeiro e L. Magalhães, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
BRUNO PROFETA GUIMAR ÃES FIGUEIRA
Rua Gonçalo Fernandes, 153/24
09041-410 - Santo André/SP
Tel.: 11 96625.1272
bruno.figueira@icloud.com

Recebido 20.09.2020
Aceito 27.10.2020

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