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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE

 

De volta a arte, dor

 

Back to art, pain

 

 

Camila Salles Gonçalves

Professora de filosofia e doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de várias publicações sobre filosofia e psicanálise

Correspondência

 

 


RESUMO

Este pequeno ensaio é uma nova leitura, dez anos depois, do livro Arte, Dor do ponto de vista da atual pandemia, com foco em interpretações de compaixão e na concepção do espectador como produtor de vários sentidos das obras de arte. Também indica que a psicanálise pode propiciar uma relação de recepção especialmente significativa com a arte.

Palavras-chave: Psicanálise implicada. Estética. Arte poética. Compaixão. Transitoriedade. Existência.


SUMMARY

This little essay is a new reading, after ten years, of the book Art, Pain, from the point of view of the pandemic nowadays and focuses on interpretations of compassion and the conception of the spectator as producer of the art works' multiple meanings. It also points out that psychoanalysis can provide a special meaningful relationship of reception of art.

keywords: Concerned psychoanalysis. Aesthetics. Poetic art. Compassion. Transitoriness. Existence.


 

 

Arte, Dor, o livro de João Frayze-Pereira, que teve duas edições publicadas no Brasil e uma na Rússia, traz indagações pertinentes a este momento que vivemos. Parto do que vem sido sugerido por mais de um meio de comunicação, a saber, que a arte pode nos dar guarida ou conforto. A junção dos dois nomes, arte e dor, não faz com que a arte se torne, via de regra, chance de catarse, sublimação, superação ou outros possíveis e, muito menos, presença que nos afastará da dor. No entanto é uma junção que está no ar, na oferta e na procura de algo que nos ajude a suportar o cotidiano. Como? De que maneira? A mais acessível parece ser a da recepção.

Para designar o campo pesquisado por João Frayze-Pereira, começo por evocar a imagem criativa de uma frase em um caminhão, em uma propaganda na tv, do Canal Arte 1: "Arte - porque a vida não basta". A frase, que descobri depois ser de Ferreira Gullar, pode fazer pensar em uma relação de oposição com a dor, na qual a arte ajuda a suportar a vida ou "a teia de problemas que existir, na pele do existente vai gravando" (Drummond, 1963, p. 46), no dizer de outro poeta.

A obra de João Frayze-Pereira situa-se no âmbito da estética da recepção imbricada com a psicanálise. Já tive a grata experiência de apresentá-la anteriormente (Prefácio, in Frayze-Pereira, 2010) orientando-me pela intenção de pensar os pensamentos do autor. Contudo, há tempo, assimilei, como um conselho, a ideia de Piera Aulaigner, segundo a qual pensar o pensamento de um outro, que pode resultar em digna maneira de lhe prestar homenagem, jamais produz o mesmo ou o idêntico.

Existente/sobrevivente, neste planeta circundado pelas artes online, volto, com mais questões, à estética da recepção. Retomo a concepção de psicanálise implicada, sem me ocupar aqui de textos de outros autores, nos quais o implicar é tomado em sentidos tais como gostar de, inspirar-se em etc. Sem dúvida, são escritos que podem estimular a vontade de saber, a consulta à bibliografia competente, o exame de detalhes formais e físicos de objetos artísticos comentados e o exercício com teorias psicanalíticas. Embora não haja por que desvalorizar essas acepções, que abrem caminhos importantes, entendo que o tema do livro Arte e dor é outro.

Com frequência, em diversos contextos, somos lembrados de que a palavra estética vem de aístesis, que significa sensibilidade em grego. A expressão estética da recepção seria, pois, quase um pleonasmo. Mas vejamos a que tipo de recepção se refere. Retomo um exemplo de arte implicada, a relação de Freud com o Moisés de Michelangelo. Depois de tentar analisar a escultura, buscar o quid, isto é, aquilo que a faria envolvente a ponto de levar o próprio artista à lendária exigência de que ela falasse, Freud teria desistido de sua primeira abordagem, baseada em aplicar a teoria psicanalítica, e adotado a perspectiva de considerar aquilo que a escultura nele próprio despertava. Teria optado por um método semelhante ao que empregava na análise dos próprios sonhos: seguir as perguntas provenientes de figurações oníricas postas diante de si, "rompendo com a ideologia da verdade estática, fixada anacronicamente" (Frayze-Pereira, 2010, p. 86).

Em outras palavras, o que é recordado do sonho não é passível de decifrações que pretendem se aplicar aos pensamentos inconscientes, como se dispusessem de um almanaque de sentidos de palavras e formas, estabelecidas nos lugares-comuns do estado de vigília. Por outro lado, Freud nos inspira para considerar que, se a obra de arte desperta associações livres por parte dos espectadores, estas não constituem mera reação que se fecharia em si mesma, como um segundo sonho, este, de sentidos perdidos.

Testemunhar o modo pelo qual o espectador é tocado permite-nos escolher, como foco de reflexões e suposições, o quid que o atinge, situado no campo da estética da recepção. Recorro à Teoria dos Campos de Fabio Herrmann para circunscrevê-lo. O campo põe-se diante do psicanalista junto com o interpretante que este cria ad hoc, sem o recurso de uma teoria pronta, de enunciados fixos, aplicáveis a todos os sujeitos. A psicanálise opera reconhecendo um campo interpretável, ou seja, uma situação que pode ser apreendida e descrita e com a qual é possível dialogar. Não é uma realidade que se revela por inteiro e de imediato, nem constitui um conjunto a priori de sentidos, nem unívocos, nem inequívocos.

Acrescento que a noção de punctum, utilizada por Roland Barthes e retomada por João Frayze-Pereira, pode constituir uma chave para a compreensão da psicanálise implicada. Indica a ocorrência de um tipo de vivência sutil e efêmero, o de sermos tocados por algo que, por assim dizer, abre-nos as portas da percepção. A acuidade daquilo que na arte nos atinge é captada e chamada de compaixão. Creio que, neste contexto, não é possível traduzir esta palavra por "ficar com pena". Para além da relação de Freud com o Moisés, comentada com extenso material bibliográfico no Arte, Dor, retomo alguma leitura a respeito de Roualt.

No ensaio sobre a figura do clown nos quadros do pintor, João Frayze-Pereira nos diz: "A entrada do clown no circo atesta o não-lugar de onde ele vem. Vale o mesmo para o acrobata: a passagem efetua-se no momento do salto perigoso, do obstáculo ultrapassado, desses círculos de papel perfurados na travessia" (Frayze-Pereira, 2010, p. 232). Comentários como esses, que nos põem diante do patético, levam-me, hoje, a ter mais presente o estado de jeto, de ejetada, da existência lançada no mundo, tema sartriano, inspirado em Heidegger, que, a meu ver, não é apenas filosófico. A recepção psicanalítica implica-nos com a Hilflosi-chkeit, com o estado de desamparo, que a escuta e a visão percebem, nem sempre de modo consciente. A arte aproxima-nos de nós mesmos, de quem estamos sendo.

A ideia de que a arte move a alma encontra-se já na Poética de Aristóteles. É famosa a frase do filósofo, segundo a qual a tragédia desperta terror e compaixão. Detenhamo-nos agora na questão da compaixão relacionada com a arte, que João Frayze-Pereira destaca em Roland Barthes (deixando o terror entre parênteses, só para isto). Não, sem antes lembrar que, além da famigerada concepção de tragédia como simples catarse, atribuída a Aristóteles, há modos de implicação do espectador, que ele considerou e exemplificou com trechos de Sófocles e Eurípedes. São: a peripécia, o reconhecimento, ou anagnorisis (deixar de ignorar), e o pathos.

O primeiro ocorre quando uma ação tem o resultado contrário àquele que dela se esperava. Édipo manda chamar Tirésias, com a finalidade de descobrir a causa da peste que assola Tebas e tranquilizar a si e a cidade. É interrogando o adivinho, com insistência implacável, que, aos poucos, ele se depara com a fatalidade, a de ser quem matou o pai e casou-se com a mãe. O segundo, quando alguém, estranho e desconhecido, reaparece para a memória e é reconhecido com afeto. É o que acontece quando Efigênia, em Táuris, transformada em sacerdotisa de Artêmis, prepara-se, cumprindo suas funções, para presidir a morte de seu irmão, que, como estrangeiro e forasteiro que aporta na ilha, segundo a lei, deve ser executado. O espectador presencia o belo momento em que ela o reconhece. O terceiro é o que desperta a emoção mais tremenda, compaixão e terror, quando Medeia mata os próprios filhos para se vingar de Jasão.

Não há dúvida de que há, de longa data, a investigação daquilo que ocorre na recepção e que está de acordo com a indicação de especialistas na obra barthesiana, que apontam concepções aristotélicas nela presentes.

Aristóteles não define éleos (compaixão ou piedade) na Poética, mas na Retórica, fato que instigaria uma pesquisa de questões sobre a linguagem, que não podem ter lugar agora. Limito-me a assinalar que seria difícil um psicanalista discordar desta definição: "a dor causada pela vista de algum mal, destrutivo ou penoso que fere alguém sem que o mereça, e que podemos esperar possa ferir a nós mesmos ou alguém que nos seja caro" (apud Abagnano, 1962, pp. 142-143). Identificação e projeção estão implícitas e há um viver com o mesmo pathos, a mesma dor, ou o ser afetado junto com.

É claro que, se estudarmos esses três modos pelos quais o espectador é atingido e passarmos a analisar tragédias, dramas ou roteiros a partir deles, estaremos praticando algum tipo de exercício intelectual que consiste na aplicação de uma teoria da arte, que é diferente da investigação a respeito do que a arte desperta, a respeito da recepção do espectador. Aquele procedimento limitar-se-ia a avaliar a estruturação da obra segundo a intenção de provocar tais ou tais reações.

Nessas considerações, é preciso não deixar de lado um modo oposto de abordar a compaixão, encontrado na obra de um dos filósofos mais lembrados na contemporaneidade, ninguém menos do que Nietzsche. Para ele, a compaixão é um sentimento doentio. Em alemão, compaixão é Mitleiden (verbo substantivado). Dando ênfase ao sofrer com, o filósofo o vê como próprio de uma maneira de se relacionar caracterizada pela desvalorização da vida enquanto tal e preconizada pelo cristianismo: "a vida é negada pela compaixão, é tornada mais digna de negação" (Nietzsche, 1895/2011, p. 20). Sua leitura de Aristóteles também é espantosa: "Aristóteles, como se sabe, via na compaixão um estado doentio e perigoso, do qual era bom dar conta, vez por outra, com um purgativo: ele entendia a tragédia como purgativo"1 (Nietzsche, 1895/2011, p. 20).

Não penso que a reação do espectador à obra de arte dramática, mesmo há mais de dois mil anos, pudesse ser reduzida desse modo, e é evidente que Nietzsche passa por cima dos sutis comentários de Aristóteles a respeito de trechos de Sófocles e Eurípedes. A catarse, no meu entender, não é o que compõe a poética, mas algo que ela deve despertar. Trata-se de uma falta de distinção que há séculos vem criando equívocos a respeito daquele livro. Na definição de tragédia, lemos: "É pois a Tragédia imitação de uma ação de caráter elevado (Estín oún tragodía mimesis práxeos spoudaías), completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama)" (Aristóteles, 335-323 a. C./1993, p. 37).

É evidente que, quando apresenta a definição, o filósofo já trabalhou com a relação da arte com a imitação, com questões de linguagem e de divisão. Ele prossegue: "(imitação que se efetua) não por narrativa, mas mediante atores, e que suscitando terror e piedade (eléou kat fhóbou), tem por efeito a purificação (kátharsin) dessas emoções" (Idem, ibidem, p. 37).

Designa a trama dos fatos como elemento mais importante da tragédia, e esse elemento é dado pelos mitos. E deixa claro que as personagens não são criadas para representar caracteres, mas assumem, ou seja, imitam caracteres para efetuar certas ações. E é nessas ações que estão "os principais meios por que a Tragédia move os ânimos (tá méguista oís psikagoguei)" (Idem, ibidem, pp. 42-43), que incluem os mitos, que devem ser também expostos. Éleos (compaixão ou piedade), assim como Phobos (terror), deve provocar a purificação ou catarse. Grande conhecedor da língua e dos clássicos gregos, Nietzsche sabia que escolha estava fazendo, ao jogar com o sentido médico de purgação. Mas katharsis é também o alívio ou consolação de uma alma pela satisfação moral, no sentido ético e expiação, no sentido religioso (Bailly, 1988, p. 446). A palavra é usada por Ésquilo em relação à purificação de uma residência.

Aristóteles não é o único grande filósofo que Nietzsche interpreta a seu modo, muitas vezes reduzindo com ironia seu pensamento. Entretanto discordemos ou não de algumas ideias do filósofo de O anticristo, em textos resultantes da transformação que propugna nos métodos de investigação filosófica, certas doutrinas, tais como a que valoriza a criatividade da celebração do corpo e seu uso do perspectivismo, que é adotado em Arte, Dor, não precisam ser dispensados.

O perspectivismo permanece, como forma de abordagem e como estilo de implicação com a arte. Possibilita considerar a multiplicidade daquilo que é desperto no espectador e a diversidade de movimentos de alma.

Torna-se agora necessária uma mínima digressão sobre as transformações a que cada filósofo submete filosofias anteriores e em que elas podem contribuir com nossas próprias condições de pensar. Ataques a conceitos centrais em sistemas filosóficos podem ter por objetivo sua total destruição. É o caso da atuação a marteladas que Nietzsche dirige sobretudo às Críticas kantianas. Mas cada nova filosofia constitui-se nas próprias refutações de outras. Não pode partir de uma tábula rasa. Por outro lado, a filosofia contemporânea, deve muito ao modo asistemático de pensar inaugurado por Nietzsche, que dispensa uma arquitetônica de conceitos, na qual a destruição ou refutação de alguns faria ruir todo o conjunto. Pensadores como Roland Barthes, Gaston Bachelard, Foucault e Agamben não filosofam construindo sistemas e permitem-se estabelecer seus próprios métodos, relendo e integrando ideias de outros, que tornam compatíveis com seu pensamento.

Como age a compaixão de que Roland Barthes nos fala? A escrita desse autor, que reúne, em suas interpretações de várias artes, fenomenologia husserliana, ontologia sartriana, direito de sonhar bachelardiano, psicanálise e marxismo, não pode ser explicada nem dissecada aqui para exibirmos tudo o que ela nos diz. Mas é possível sublinhar algo do que ela sugere, numa perspectiva poética e psicanalítica: perfis do efeito punctum no espectador, este outro necessário.

O texto comentado por João Frayze-Pereira no qual encontramos a ideia de compaixão refere-se à arte da fotografia e, nesta idade do mundo, em que com-vivemos em imagem, multiplica seus sentidos:

Escreveu Roland Barthes (1981) que de todas as imagens há certas fotos que o tocam especialmente. E, a propósito, cria a noção de punctum - aquilo que me fere, que me toca. Quer dizer, observando diversas fotografias, Barthes percebe detalhes que nele disparam imediatamente um sentimento doloroso, ligado possivelmente a uma dolorosa impressão de que o revelado na foto já está morto. (Frayze-Pereira, 2010, pp. 130-131)

Indico o que é colocado por dois comentadores de Roland Barthes (que o consultaram) sobre as inúmeras influências que sua obra experimenta, de acordo com a pluralidade de interesses de que se faz:

Pode variar o texto analisado (publicidade, pintura, alimentação, moda ou literatura), assim como a metodologia em que se inspira o autor (marxismo, psicanálise, estruturalismo). Esta diversidade chegou a induzir em erro alguns críticos a propósito de sua obra. (Mallac & Eberbach, 1977, p. 13)

As concepções estéticas de João Frayze-Pereira, que encontram expressão condizente na noção barthesiana de punctum, são filosóficas e têm uma perspectiva psicanalítica tácita. Isto é, não se detém na exposição de teorias psicanalíticas para depois justificar em que medida elas se aplicam. Assim, penso que sua citação de Barthes também nos remete para a transitoriedade (Verganglichkeit) da existência e questões implícitas, apontadas com extrema beleza por Freud, sobretudo diante da guerra, quando a libido se aferra a seus objetos e resiste diante da perda.

É inevitável que hoje pensemos no luto vivido em comum, que não acontece em um único lugar do planeta. Mas o bombardeio imagético, a que nos deixamos por vezes submeter, sobrecarrega-nos como uma perda sofrida em relação a objetos prosaicos, como o propalado abraço das famílias da margarina, o chope no Leblon, as areias de Santos etc., ou como perda referente ao gozo frustro.

Neste mundo pontualmente contemporâneo, estamos envoltos por vivências de perda que podem ser aproximadas do estado de melancolia. Há uma leitura que Giorgio Agamben faz de Luto e melancolia de Freud, que ressalta o papel do phantasma, ou seja, da fantasia. O filósofo italiano recorta a frase de Freud em que ele afirma que o melancólico não sabe o que perdeu. Com efeito, depois de se referir à perda de um objeto de amor idealizado, Freud escreveu: "E em outras circunstâncias cremo-nos autorizados a supor uma perda também, mas não atinamos com discernir com precisão o que se perdeu e com maior razão podemos pensar que tampouco o enfermo" (Freud, 1917/1993, p. 243).

Psicanalistas, entendemos que o desejo é inconsciente e que a fantasia não permite que o reconheçamos, mas ela não age apenas de forma paralisante ou como destino da pulsão de morte, embora muitas situações nos façam pensar em um vazio que é ausência de investimento de afetos, impossibilidade de criar, falta de convicção de que vale viver a vida.

A angústia nos revela a falta-a-ser que nos é inerente, o nada, a in-completude. A arte também pode despertá-la. Quando João Frayze-Pereira comenta a intuição diante do clown, implica-nos com a falta que nos caracteriza como seres do desejo, tema de Sartre e Lacan.

Referindo-se às artes plásticas, Sartre nos fala da obra de arte como instauração de um universo ausente. Mas não quer dizer que esse universo nos sequestra no vazio melancólico. Trata, sobretudo, do que fazemos surgir com o exercício de um poder, a imaginação. É ela que nos possibilita tornar presente algo que não pode ser alcançado por nenhuma outra faculdade. Arte e imaginário são indissociáveis.

A fantasia é a feiticeira a que Freud recorre para pensar para além do que é empiricamente observável e corroborável. A metapsicologia é também arte da escrita, escrita psicanalítica que investiga destinos e possíveis de nosso ser no mundo. Nasce na clínica singular e constrói recursos de recepção para a clínica extensa. Diante da guerra, diante do luto, diante da pandemia, a libido se aferra a seus objetos, também por meio daquilo que a arte explora. Arte que não é entretenimento nem é desconversar. A fantasia é aproximação de si.

Gaston Bachelard, autor dentre os eleitos de Roland Barthes, traz, a meu ver, visões iluminadoras, em seu O direito de sonhar. No artigo "As origens da luz", liberando suas reflexões e devaneios, entre as fábulas de La Fontaine e a arte de Chagall, ele nos envolve com sua criatividade receptiva:

os quadros são narrativas. Dizem, a seu modo, as fábulas mais eloquentes. O espaço bem povoado por volumes e cores põe em andamento os personagens, homens e animais. Não há mais nada imóvel em um quadro de Chagall. No céu, as nuvens vão lentas ou rápidas, conforme um carneiro durma ou uma ágil lontra suba na árvore. Sente-se que a tempestade vai se acalmar, no mesmo instante em que o carvalho é desenraizado. (Bachelard, 1985, p. 24)

É difícil interromper a citação dessa escrita receptiva e dramática, que agora só cabe exemplificar. Espero que mostre, como tantos outros comentários de João Frayze-Pereira, que trata daquilo que a obra desperta. Chagall traz alegria, a arte de Amélia Toledo, apresentada em Arte, Dor, não deixa de ter esse efeito, "no estímulo ao engajamento do outro, na proposição lúdico temporal como via cognitiva" (Frayze-Pereira, 2010, p. 374).

A dor está presente, não como efeito malsão, mas como condição do ato poético: "Destacar-se dos pontos fixos, ainda que sob as imensas asas da imaginação, é um ato doloroso: o ato poético. É a dor da solidão de quem chega ao novo sem saber bem por quê. É a dor intrínseca à arte" (Frayze-Pereira, 2010, p. 282).

Ao vivenciar esse ponto de vista, apresentado por Arte, Dor, afastamos o embotamento ou uma tendência mortífera da sensibilidade. Julgo que adentramos uma situação efetiva em que o vir-a-ser com-sigo compreende os possíveis poéticos do vir-a-ser com outrem.

 

Referências

Abbagnano, N. (1962). Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou.         [ Links ]

Aristóteles (1993). Poética (edição bilíngue). São Paulo: Ars Poetica. (Trabalho original publicado entre 335 a. C. e 323 a. C.         [ Links ])

Bachelard, G. (1985). O direito de sonhar. São Paulo: Difel.         [ Links ]

Bailly, A. (1988). Abrégé du dictionnaire grec français. Paris, Hachette.         [ Links ]

Drummond de Andrade, C. (1963). Lição de coisas. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Freud, S. (1993). Duelo y melancolía. In Obras completas (v. 14). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1917).         [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A. (2010). Arte, Dor: inquietudes entre estética e psicanálise (2ª ed.). São Paulo: Ateliê         [ Links ].

Mallac, G. de; Eberbach, M. (1977). Barthes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2007). Der antichrist. Berlim: Erfdtadt Verlag. (Trabalho original publicado em 1895).         [ Links ]

______. (2011). O anticristo. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1895).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
CAMILA SALLES GONÇALVES
Rua Dr. Flávio Américo Maurano, 810
05656-020 - São Paulo/SP
Tel.: 11 98353.8742
camila_salles@uol.com.br

Recebido 28.08.2020
Aceito 28.09.2020

 

 

1 "Aristóteles sah, wie man weiss, im Mitleiden einen krankhaften und gefarlichen Zustand, dem man guttdte, hier und da dur ch ein Purgativ beizukommen: Erverstand die Tragodieals Purgativ" (Nietzsche, 1895/2007, pp. 13-14).

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