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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

CONTRAPONTO: BELEZA

 

Sobre a beleza

 

About beauty

 

 

Sergio Fingermann

Pintor, desenhista, gravador, arquiteto

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto reúne notas sobre questões da beleza, observadas, registradas e escritas no cotidiano do trabalho do artista.

Palavras-chave: Arte. Artista. Trabalho. Beleza. Exposições.


SUMMARY

The text gathers notes on beauty issues, observed, registered and written in the daily work of the artist.

keywords: Art. Artist. Work. Beauty. Exhibitions.


 

 

O cotidiano de trabalho de um artista mostra os diversos enfrentamentos que se travam no dia a dia da criação. Além da concepção do tema, da adequação técnica a ele, de ter que encontrar a justeza da expressão, adaptá-la ao assunto proposto, outras inquietações assaltam os artistas na contemporaneidade, outras dúvidas o atormentam. A conceituação teórica é formulada, muitas vezes, anteriormente à experiência com a linguagem, antes da realização do trabalho. Nem sempre as questões enfrentadas pelos artistas foram as mesmas que temos hoje (Fingermann, 1992/2001).

Ao longo do século XIX, com a chegada da modernidade, os artistas passaram a se questionar sobre o papel social de seu trabalho, a validação daquilo que faziam pelo sistema da arte, o qual se apresenta como um intrincado jogo de relações dos artistas com críticos de arte, jornalistas, comerciantes, colecionadores, museus. A todo custo, o nome do artista tinha que circular nos salões da sociedade, ser citado nos periódicos, comprado por figuras de destaque da sociedade, fazer parte do acervo de museus. Esse sistema de validação por meio de relações de reconhecimento recíproco, de valorização, de citação ganha forma na primeira metade do século XIX e, de lá para cá, somente se intensificou.

No cotidiano de trabalho, surge uma nova necessidade: a de contextualizar seu trabalho na história da arte, numa visão ampla da cultura, numa dimensão maior do que a simples expressão de seus desejos, de comunicação, de estética.

Devemos lembrar que o conteúdo das artes visuais, por exemplo, é uma experiência mental, a elaboração de sensações vindas por meio da visão mas elaboradas pelo espírito (arte é uma coisa mental). A pintura deve nos proporcionar muito mais do que sensações, deve nos permitir construir com essas sensações-pensamentos. É nesse sentido que arte educa e liberta.

Na modernidade, mais precisamente no movimento expressionista, encontraremos expoentes que basearam seus trabalhos num enfrentamento diário com a busca de uma expressividade conectada às forças vitais da linguagem, procurando uma expressão criativa que não tivesse sofrido uma lapidação pelos padrões vigentes da beleza, uma adequação ao gosto em moda. A temática e a sua realização técnica vão trazer novos assuntos às obras.

Na pintura, a expressão ganha mais importância do que o tema escolhido. As pinceladas, a gestualidade, por exemplo, ficam em evidência, se congelam em ato e manifestam uma potência de emoções.

Os expressionistas buscaram forças dionisíacas para realizar sua obra, valorizando a expressividade mais do que a escolha do tema; há outros, contudo, mais apolíneos, os quais, dentro de suas linguagens, tentaram criar sistemas novos de representação, baseando suas pesquisas no entendimento da gramática visual, como é o caso dos construtivistas, dos geométricos em geral. Outros, ainda, começaram a trabalhar sobre as noções que estabelecem os estatutos, as regras da arte, ideias muitas vezes desmaterializadas do objeto artístico, abrindo caminhos para a arte conceitual.

O que vem mudando, desde então, com muita força é que não existem mais os valores que balizavam a noção de arte e da beleza. Não há referência do que é arte, parâmetros que localizem, como garantias, as seguranças das regras aprendidas e que orientem o fazer artístico, como quando, no passado, as atividades de criação estavam formatadas pela Academia, por exemplo, ou, ainda, antes disso, quando a arte era regida pela função sagrada, portadora da mensagem doutrinadora da religião.

Agora a observação de uma obra exigirá outros parâmetros, outros recursos além da estética, do que entendemos como o belo.

O artista encontra-se só. Não há uma comunidade artística para a qual ele possa se reportar, confiar as bases de seu trabalho, questionar seus procedimentos, explicar suas escolhas. Insisto, o artista está muito só e referencia seu próprio trabalho tão somente em sua subjetividade.

Quando dizemos trabalho, estamos nos referindo às ideias que articulam as diversas experiências de criação que produzirão obras conectadas entre si. Agora, a obra é a expressão mais acabada da personalidade do autor.

Por muito tempo, a educação para o ofício, por meio do treino do olhar e das mãos, era traçada por vários procedimentos, regras, conceitos previamente estabelecidos por padrões fundados numa noção de beleza, oriunda do helenismo clássico. Desde então, muita coisa vem mudando. O artista conquistava um domínio expressivo, o entendimento do uso dos materiais, uma maturidade de criação dentro de padrões dados, idealizados pelas normas do gosto.

No caso da pintura, trabalhava-se dentro dos gêneros dados, adaptando seus assuntos, nas categorias do retrato, da natureza morta, da paisagem, dos temas religiosos, assuntos mitológicos, das alegorias, temas históricos. As noções de harmonia, equilíbrio compositivo, luminosidade, gestualidade expressiva, enfim, a beleza.

Por muito tempo, a ideia do belo foi associada a uma ordem de valores objetivos, na qual reinava a medida e as proporções. A observação de algo exterior, extraído da natureza, era transposta para os trabalhos.

No transcurso do século XIX, assistimos a uma gradual e completa desconstrução da estética clássica como critério supremo do artístico.

O modernismo, nos seus mais de 150 anos de existência, abrange seguramente tendências discordantes: realismo, impressionismo, expressionismo, cubismo, construtivismo, dadaísmo etc. É um nome pequeno para abrigar tantas tendências artísticas coincidentes no tempo e tantas vezes contraditórias. O que podemos afirmar, com certeza, é que em todas essas tendências a materialização, o acontecimento da arte, se dá na plástica, na aparência do ato de pintar.

Agora os critérios do gosto estão amparados totalmente na subjetividade do artista e, como consequência disso, o artista se isola. Não há uma comunidade para que ele possa reportar seu trabalho e ter nela o reconhecimento de valores, dar testemunho de sua experiência, dizer sobre as bases de seu processo de criação, apresentar suas referências na história da arte, contextualizar o que está fazendo.

Ao artista, cabe habitar essa solidão e criar estratégias para que seu trabalho ocupe um lugar no sistema da arte, da venda de seu trabalho à presença dele nas coleções particulares mais notórias, nas exposições coletivas de instituições, museus.

O artista tenta narrar o presente, ampliam-se os temas tratados. A mensagem na obra, ou da obra, se apresenta mais literária, mais narrativa de questões políticas, ambientais, de gênero. Muitas vezes, em grandes exposições de prestígio, em museus, não é raro encontrarmos experiências artísticas com um discurso que almeja ser uma outra espécie de ciência, de antropologia de sociologia.

É dentro do modernismo, no início do século XX, que se vai, cada vez mais, explorar procedimentos, até então não considerados artísticos por meio da "cultura do estranhamento". Trata-se de trazer elementos sociais à cena artística e empregar novos materiais e procedimentos técnicos que ampliem a noção da arte. A pintura, gradativamente, se afasta da busca da semelhança com o real. Além da plasticidade em si, ela procura mostrar o raciocínio visual, o qual passa a ser apresentado como o acontecimento, é o que está em cena.

Os acontecimentos artísticos, nessa época, têm um olhar mais positivo, enaltecedor do progresso e da velocidade do mundo, o que passa a ser, às vezes, o assunto da arte, por exemplo, em diversas obras do futurismo. A pintura, libertada da necessidade de representar o real, pôde, enfim, estudar, enquanto uma linguagem, sua própria gramática. Assim, surgem tendências como o construtivismo e o abstracionismo, além de outras manifestações interessadas na geometria.

A duração dessas novas tendências artísticas varia entre dez e quinze anos. As diversas investigações artísticas se misturam e se afastam das produções artísticas das referências anteriores. Sempre com maior intensidade, a subjetividade se afirma, rompendo com as referências que davam os parâmetros de gosto, de moda intelectual.

A ideia do novo, do incomum, orienta diversas experimentações artísticas: aliás, passa a ser um valor. Não é à toa que certas experimentações, libertadas de todos os cânones, de compromissos com o real, possam parecer frivolidades e extravagâncias. Aqui estou me referindo a trabalhos que vão do dadaísmo até a obra de Marcel Duchamp, que questionará o estatuto da arte como nunca antes havia acontecido.

Aos poucos, as tendências se superpõem, são contemporâneas entre si, e a subjetividade se afirma com uma ruptura total de validação, de aferição das qualidades artísticas. Todos os valores são atributos dessa subjetividade. O estranho tem seu lugar no mundo da arte.

Não são somente os artistas que estão sós, o público da arte também está desamparado, sem referências para avaliar o que se apresenta como experimento artístico. O sistema da arte, cada vez mais complexo em seu funcionamento, colabora para isolar esse público. O mundo da arte vai ficando cada vez mais cheio de artificialismos estéticos.

O vazio de nossa época vem acompanhado de baixa artisticidade - aqui tomo a liberdade de inventar ou pegar emprestado esse neologismo para dar intensidade à falta de sentido que as grandes mostras de arte condicionam o novo fazer artístico. A época agora é o de entretenimento sem limites.

Cabe aos artistas, diariamente, se encantar pelo presente, apesar de tudo.

Vale fazer a crônica dessa solidão como assunto de seus trabalhos.Vale fazer testemunhos de seus processos de criação, de suas referências, afinal, falar do que acontece no fazer artístico (Fingermann, 2007).

É bom lembrar que a pintura é poesia muda, o que não quer dizer que os artistas sejam mudos.

 

 

Referências

Fingermann, S. (2001). Fragmentos de um dia extenso. São Paulo: Ed. Bei. (Trabalho original publicado em 1992).         [ Links ]

______. (2007). Elogio ao silêncio e alguns escritos sobre pintura. São Paulo: Ed. Bei.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
SERGIO FINGERMANN
Rua Medeiros de Albuquerque, 55
05436-060 - São Paulo/SP
Tel.: 11 99347.7991
sfingermann@gmail.com

Recebido 24.07.2020
Aceito 31.07.2020

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