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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

CONTRAPONTO: BELEZA

 

Apreensão da beleza e conflito estético

 

Apprehension of beauty and aesthetic conflict

 

 

Marisa Pelella Mélega

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este texto foi gerado a partir de várias contribuições de D. Meltzer e de Meg H. Williams e de vários contatos pessoais com ambos os autores, que foram construindo um sólido palco para mostrar que a psicanálise é uma forma de arte! A caminhada iniciou-se com a contribuição de Meltzer para a compreensão da formação de símbolos e da criatividade do indivíduo em "Além da consciência" e seguiu com The apprehension of beauty (1988). O impacto inicial da beleza externa da mãe - entendida como o objeto estético - leva ao desejo de conhecer suas qualidades interiores, o que dá início ao conflito estético. Como esse conceito pode ser usado na clínica do psicanalista é uma questão que procuramos responder neste texto. Prosseguimos indagando sobre a psicanálise como forma de arte e recorremos à formulação de Meltzer, que entende o processo analítico como um objeto estético. Tentamos, por fim, abordar as diferenças entre os símbolos criados durante a sessão analítica e os símbolos criados pelo artista, trazendo como exemplos alguns poemas de Eugenio Montale.

Palavras-chave: Conflito estético. Simbolização. Objeto estético. Processo psicanalítico. Objeto artístico.


SUMMARY

This text was generated from several contributions by D. Meltzer and Meg H. Williams and several personal contacts with both authors, who were building a solid stage to show that psychoanalysis is an art form! The journey began with Meltzer's contribution to understanding the formation of symbols and the individual's creativity in "Beyond awareness" and continued with The apprehension of beauty. The initial impact of the mother's external beauty - understood as the aesthetic object - leads to the desire to know her inner qualities, which initiates the aesthetic conflict. How this concept can be used in the psychoanalyst's clinic is a question that we seek to answer in this text. We continue to inquire about psychoanalysis as an art form and we use Meltzer's formulation, which understands the analytical process as an aesthetic object. Finally, we tried to approach the differences between the symbols created during the analytical session and the symbols created by the artist, bringing as examples some poems by Eugenio Montale.

keywords: Aesthetic conflict. Symbolization. Aesthetic object. Psychoanalytic process. Artistic object.


 

 

Conflito estético é o conceito que embasa o livro The apprehension of beauty (1988), de Donald Meltzer com a colaboração de Meg Harris Williams. Nesse livro Meltzer expõe claramente a sua filosofia da mente.

Distintos elementos relacionaram-se entre si para resultar na sua formulação psicanalítica do "conflito estético". Estes foram: o trabalho clínico com crianças autistas; a observação mãe-bebê, técnica de Esther Bick; as leituras filosóficas sobre a formação de símbolos; a crítica literária, particularmente da poesia.

Na orelha do citado livro, Meltzer escreve: "Este volume foi crescendo ao longo dos anos quase como um projeto da família de Martha Harris, suas duas filhas Meg e Morad e seu marido, Donald Meltzer". Ele tem suas raízes na literatura inglesa e em seus ramos que se agitam vivamente na psicanálise. Suas raízes na literatura inglesa: Shakespeare, Milton, Wordsworth, Keats, Coleridge e Blake são tão fortes como as ramificações psicanalíticas de Freud, Klein e Bion. Sua base filosófica é certamente Platão, Russel, Whitehead, Wittgenstein, Langer, Cassirer e, na estética, Adrian Stokes.

Nesse livro vemos a tentativa de consolidar tais ligações e de encontrar uma relação mais construtiva entre psicanálise e literatura. Esta é uma das principais áreas de pesquisa que subjaz ao livro The apprehension of beauty.

O conceito de conflito estético foi formulado pela primeira vez por Meltzer em Studies of extended methapsycology (1986); nele, Meltzer escreve que o material psicanalítico e a observação de bebês demostram, como os poetas, que o conflito estético em presença do objeto antecede os conflitos de separação, de privação, de frustação, aos quais tanta atenção tem sido dada.

Ter escutado por anos os seminários de observação de Martha Harris deixou em Meltzer uma profunda impressão do quanto é inadequado o modelo psicanalítico para descrever as complexidades e as matizes de cada relação inicial.

É o objeto presente, e não o objeto ausente, que desperta o conflito, e a mente infantil deve encontrar alguns meios para fazer a digestão. Isso está em consonância com o que os poetas demonstram e é a chave para ver o desenvolvimento normal como mais complexo do que a patologia. A nova ideia em qualquer fase da vida é sempre um reexperimentar a beleza do mundo que, para o bebê, aparece em primeiro lugar em sua mãe, o objeto estético, e é correspondido por ela.

Meltzer descreve essa configuração original do conflito estético como segue:

Nenhum evento da vida adulta é tão calculado para despertar nossa admiração pela beleza e nossa estupefação diante dos intrincados trabalhos que chamamos Natureza como os eventos relacionados à procriação. Não há flor nem pássaro com esplêndida plumagem que nos impõe o mistério da experiência estética como a visão de uma jovem mãe com seu bebê ao peito. Ingressamos num bercário como se entrássemos numa catedral ou nas grandes florestas da costa do pacifico, silenciosamente e com a cabeça descoberta. As comovedoras conversas ao rádio de Winnicott há muitos anos sobre "a mãe devotada comum e seu bebê" poderiam muito bem ser "a bela mãe devotada comum e seu belo bebê comum". Está certo usar a palavra "comum" com seus matizes de regularidade e costumes, em vez da estátistica "média". As experiencias estéticas da mãe com seu bebê são comuns costumeiras e regulares, dado que acontecem há milênios desde que o homem viu pela primeira vez o mundo como "belo". E sabemos que isso remonta pelo menos à última era glacial. (1990, p. 22)

Isso nos leva de volta, ele diz, aos inícios do homo sapiens, que sobreviveu à idade do gelo e aos começos da mentalidade humana e apresenta uma visão mais otimista da evolução do que algumas teorias, pois sugere que a experiência do homem com a beleza talvez não seja tão sem utilidade como possa parecer e, de fato, pode ser intimamente ligada ao crescimento da sabedoria e da capacidade metafórica e literalmente sobreviver à era do gelo.

A primeira experiência de beatificação que Meltzer chama de "deslumbramento do amanhecer" precede o recuo esquizo-paranoide do conflito estético e, embora seja de curta duração e possa ser "esquecido", nunca é apagado da mente humana.

Após o impacto inicial da beleza externa da mãe, é o desejo de conhecer as qualidades interiores dela que desperta o instinto epistemofílico e que dá início ao conflito.

O vínculo K (K-link) - o desejo de conhecer -, diz Meltzer usando a terminologia do Bion, "resgata essa relação do impasse"; é a reciprocidade estética que emana da mãe - inicialmente a mãe externa -, mas realmente é a mãe interna que fornece o recipiente mental para o engajamento do bebê na exploração do mundo.

A nova (estética) visão do embate interno agora depende não do prazer versus dor, ou até mesmo da inveja versus gratidão, mas da emocionalidade (estimulada pela beleza) versus antiemocionalidade (o recuo diante da beleza). Nas palavras de Meltzer (com base na sua leitura de Bion), o mental e o protomental agora competem pela "alma da criança".

Então o conflito estético contém ou comporta a visão do crescimento mental como uma função estética fundada na reciprocidade interna a partir da resposta do bebê à mãe-enquanto-mundo, que é o protótipo de todas as explorações mentais sucessivas.

É a experiência complexa da beleza do mundo junto com o desejo de conhecê-la que coloca em movimento a atividade humana de formação simbólica, uma função do "nível estético" da mente (Meltzer, 1986, p. 230). A divindade é inicialmente o seio, como objeto combinado, uma descoberta de Klein. O "objeto combinado", pais internos em conjunção foi descoberto por Klein em seu trabalho com crianças. Esse objeto é fonte de confiança e de desconfiança, pois o impacto sensorial da beleza é seguido da ambiguidade do interior desconhecido e incognoscível da mãe. Em consequência nascem as emoções amor e ódio, e as flutuações de tolerância fazem oscilar incessantemente o movimento do funcionamento PS-D. A estabilidade do funcionamento depressivo depende de ser capaz de tolerar a inveja e a destrutividade.

Brevemente apresento ao leitor Donald Meltzer (1922-2004), sua formação, sua carreira. Meltzer nasceu em Nova Jersey, eua, e estudou medicina na University de Yale e mais tarde no Albert Einstein College, em Nova York. Completou sua formação psiquiátrica em St. Louis, Missouri, e decidiu seguir psiquiatria infantil para acompanhar seu interesse pelas ideias de Melanie Klein. Em 1954, conseguiu obter uma passagem para Londres por meio da Força Aérea dos Estados Unidos.

Começou sua análise com Klein e logo após foi aceito para a formação na Sociedade Britânica de Psicanálise. Seus casos adultos foram supervisionados por Hanna Segal e Herbert Rosenfeld e, em seguida, fez treinamento em análise de crianças e recebeu supervisão de Esther Bick e Betty Joseph. Foi muito influenciado pelo contato com Roger Money-Kyrle e Wilfred Bion, que acabaram se tornando seus amigos.

Alimentado pela riqueza do pensamento analítico da Sociedade Britânica, tornou-se analista didata e desenvolveu também laços estreitos com os psicoterapeutas de crianças da Clínica Tavistock. Participou do Grupo Imago, que reunia distinguidos filósofos, psicanalistas e historiadores de arte, o que possibilitou aprofundar seu interesse pela experiência estética. Seus escritos psicanalíticos despertaram interesse mundial, o que lhe proporcionou muitas oportunidades de viajar e ensinar principalmente na América do Sul e na Europa.

Em 1980, rompeu com a Sociedade Britânica em consequência de desacordos com a organização da instituição e animosidades pessoais e continuou a viver e praticar em Oxford. Manteve sua ligação com a Tavistock por meio de sua esposa Martha Harris, que dirigia a formação em psicoterapia infantil.

Seu primeiro livro, O processo psicanalítico (1967 na edição inglesa e 1971 em português), sinaliza seu interesse na descrição clínica da evolução e vicissitudes da relação analítica. Seu foco, do qual não saiu, é no mundo interno do paciente, a primazia da realidade psíquica. Seus livros posteriores exploram fenômenos clínicos com grandes detalhes por meio de material clínico próprio ou vindo de supervisões. São eles: Studies in extended metapsycology (1986), Dream life (1984), Exploration in autism (1975), The apprehension of beauty (1988), The claustrum (1992). Este último foi desenvolvido a partir de um paper muito apreciado e conhecido e que ele apresentou em 1965 sob o título "A relação da masturbação anal com a identificação projetiva", em que ele definiu uma forma intrusiva de identificação projetiva relacionada a uma falha no verdadeiro desenvolvimento, com confusão de identidade, levando a uma personalidade que evita a consciência da dependência em relação ao objeto.

A ênfase de Meltzer na dimensão estética da vida e do trabalho analítico é uma atitude evidente desde seu primeiro livro e abriga sua concepção da psicanálise como arte. Sua antipatia pela complexidade confusa das instituições e da política é por interferirem na criatividade individual, que é o que importa para manter viva a psicanálise. A esse respeito, vale a pena ler o capítulo 17 de seu livro Extended metapsychology, que em espanhol está sob o título Una diatribe a la Swift.

A formulação do conflito estético nos leva a crer, diz Meltzer, que a psicopatologia pode ser considerada como um retirar-se do conflito estético.

Qual seria então o uso do conceito "conflito estético" no trabalho do psicanalista?

A partir de Melanie Klein, a relação analista-analisando tem sido como um modelo da relação mãe-bebê, o que a nosso ver já traria implicações estéticas (Mélega, 1996).

E como pensar acerca das emoções ambivalentes que são a base do conflito estético?

Bion, ao contribuir com sua teoria dos afetos, nos termos de emoções L, H e K (amor, ódio e conhecimento e compreensão) e antiemoções -L, -H e -K, sugeriu que o que nos interessa pensar é nas experiências emocionais que suscitam esse conflito entre as emoções e as antiemoções. Meltzer, em seu artigo "Além da consciência", expõe os significados das antiemoções: a antiemoção -L significa menos amor, antiamor. Puritanismo significa oposição à alegria e prazer nas relações intimas; -H, menos ódio, antiódio, significa na pratica hipocrisia, em que odiar a não verdade não é o mesmo que amar a verdade; e -K, o anticonhecimento, é algo conhecido como filistinismo, oposição a qualquer pensamento novo pelo fato de ser uma ideia nova.

Para o poeta, as emoções de amor e ódio são vistas como nossa reação inata diante do impacto da beleza e da verdade; a beleza e o conhecimento verdadeiro são inseparáveis - como diz Keats, "a beleza é verdade e a verdade é beleza". Mas o objeto estético evoca emoções ambivalentes.

Ao pensar no processo analítico como uma forma de arte, teremos que avançar na formulação de que o analista seria a mãe-objeto estético como continente, e os sentimentos do paciente como conteúdo, inicialmente proposto por Klein. Na nova visão não seria o analista e, sim, o processo analítico o objeto estético em seu espaço de atuação, e o continente seria construído pela atenção seletiva, um espaço psíquico criado pela relação dentro de um setting. E esse espaço psíquico do encontro analítico é criado ou desenhado a cada encontro. É através dessa compreensão que podemos ver a psicanálise como uma forma de arte.

Meltzer considera o processo psicanalítico um objeto estético por produzir uma concepção inédita do método psicanalítico como forma de arte, no qual duas mentes juntas leem esse objeto estético e cada uma acrescenta o conhecimento de si mesmo.

E quais seriam os traços essenciais que estariam revelando tais formas artísticas no processo psicanalítico?

Seriam as estruturas simbólicas capazes de conter significados que de outro modo não conseguiriam ser expressos. Seriam descobertas e não invenções.

Pensando no processo psicanalítico como forma de arte, sua arte então consistiria na descoberta de significados alcançados pela imaginação, que trabalha usando os poucos elementos de conhecimento existentes no campo analítico naquele momento.

Keats define esse movimento de descoberta como uma tentativa de agarrar partículas de luz no meio de uma grande escuridão (apud Williams, 2010, p. 181).

O sonho "vem socorrer" o analista, diz Meltzer, quando há uma pobreza de expressão e assim movimenta a formação simbólica. O sonho é um símbolo que dá origem a uma "forma de apresentação".

 

Decorrências de um conflito estético não superado por uma personalidade

A superação do conflito estético depende da capacidade negativa, segundo Keats.

É necessária a capacidade de tolerar turbulência emocional de não saber e suportar soluções falsas, prematuras e esperar que apareçam alguns elementos - aqui a observação é fundamental -, por meio dos quais a imaginação possa levar a algum conhecimento.

Não saber o que vai à mente do outro e ter que imaginar com os elementos disponíveis necessita contar com uma base segura, estar confiante quanto ao seu bom objeto internalizado. Intolerância baixa à frustração ou instabilidade na internalização do bom objeto dificultam a superação do conflito estético, pois as antiemoções predominam e a transformação das experiências emocionais em elementos simbólicos é pobre. A simbolização, força motora do crescimento da mente simbólica, pouco ocorre, assim como a criatividade da personalidade.

Essa situação é visível no acompanhamento de análises mesmo em crianças, como é o caso de um menino de 8 anos descrito no trabalho: "A child's vicissitudes over the aesthetic conflict" (Mélega, 2018).

Que diferença haveria entre os símbolos da sessão de análise e os símbolos do artista?

De fato parece haver uma diferença na qualidade formal, no entanto a necessidade primária é a mesma: a de formular a experiência como algo imaginável. O sonho da sessão emerge da vida onírica de sentimentos pessoais; e o sonho do artista provém de sua capacidade intuitiva de reconhecer formas simbólicas de sentimentos, que representam sentimentos.

Um paciente, em seu terceiro ano de análise, avisa, por e-mail, que não poderá vir à sua primeira sessão da semana por ter sido convocado para um trabalho e pede uma reposição. Eu ofereço um horário para o dia seguinte e ele confirma. Ao chegar, conta que teve um sonho.

 

Os símbolos na clínica

Trata-se do sonho de um paciente há três anos em análise. Ele avisou que não poderia vir à primeira sessão da semana por conta de um trabalho ao qual fora convocado e pediu reposição. Eu ofereci um horário no dia seguinte e ele confirmou. É um período em que frequentemente traz sonhos.

Ao chegar, ele conta um sonho que teve na véspera: "Estava com um casal de amigos, e eles me pedem para tomar conta do seu filho (de 3 para 4 anos). O paciente aceita e os pais saem. Nesse apartamento (onde ele se encontra), na saída há uma porta pantográfica que dá direto ao elevador. O menininho vai até lá e sobe pela grade da porta, num movimento de querer sair. O paciente fala para ele descer, mas o menininho continua tentando transpor a porta, parece com a intenção de alcançar os pais".

Nas associações ele conta da matéria que fez após a visita a um presídio de presos só de crimes sexuais. A imagem do sonho em que o menino sobe pela grade da porta do apartamento faz pensar que o menino quer seguir o casal, os pais. O paciente se sentiu preso pelo seu compromisso de trabalho, que o impediu de ir à sessão programada, e inverteu a situação: o casal (o analista) o abandona e ele-bebê tenta transpor a porta. Interessante que na cena do sonho o paciente não parece estar na posição de um adulto que vai correndo pegar o menino para protegê-lo. Parece compartilhar o movimento do menininho. Nesse sonho aparece a formação simbólica de uma separação forçada, e não aceita indicando ansiedade.

Introduzo agora a produção poética de Eugenio Montale (1896-1981), poeta italiano, Prêmio Nobel em 1975. Em sua produção inicial, principalmente na coletânea Ossidi Seppia, seus poemas expressam uma inquietude psicológica diante da vida sentida como estranha, e a palavra, como inútil. E ao lhe perguntaram acerca de sua inspiração, ele responde: "Tendo sentido desde o nascimento uma total desarmonia com a realidade que me circundava, a matéria de minha inspiração só poderia ser a da desarmonia" (apud Mélega, 2001).

Qual seria a origem dessa desarmonia com a realidade? Sugere um conflito estético em elaboração?

Vejamos a última estrofe de seu poema

Traga-me tu a planta que conduz
aonde surgem loiras transparências.
E exala a vida qual essência;
traga-me o girassol enlouquecido de luz.
(Montale, 1984, p. 34).

Seria uma metáfora de desejar estar diante de um estado emocional e vivê-lo sem a defesa da antiemoção?

Montale, ao se referir ao momento da criação de um poema, diz haver "uma certa ideia", mas muito obscura e imprecisa. E o ponto de partida é um impulso, não um programa. Durante o percurso, aquela certa ideia se transforma e aparece como irreconhecível. Podemos dizer, então, que o artista conhece a si mesmo somente ao completar sua obra, após ter lutado contra um obstáculo que, no caso da poesia, é a palavra, o meio expressivo (Mélega, 2001, p. 85).

Em 1963, Montale reafirma: "O verdadeiro poeta não sabe aonde vai chegar. Se assim não fosse, cairia toda a diferença entre indústria e arte" (1963, p. 253).

Nós pensamos que tal afirmação parece mostrar que "uma ideia, embora muito obscura e imprecisa", é a primeira resultante imagética de uma experiência emocional, em que o evento externo foi favorável para promover uma combinação com o evento interno, e qualquer um dos dois pode ter sido o catalisador da combinação que levou à imagem.

Para o poeta, haveria uma elaboração própria que o afasta de sua vivência, e num segundo tempo tal experiência faz surgir uma estrutura simbólica, o poema. Assim, se compararmos o sonho do paciente cuja imagem apresentaria uma separação não aceita, forçada, no poema de Montale "Rilha a roldana do poço", que vamos descrever abaixo, o movimento seria o de negar momentaneamente a separação por uma alucinação:

Rilha a roldana do poço,
a água sobe à luz e aí se funde,
treme um vislumbre no transbordante balde,
no puro círculo uma imagem ri.
Encosto o rosto a evanescentes lábios:
deforma-se o passado, faz-se velho, pertence a
\outrem... Ah; o chiado da roda
te devolve ao negro fundo,
visão, uma distância nos separa.
(Mélega, 2001, p. 128 - tradução da autora).

Para encerrar e em sintonia com o tema deste número da Ide, destacaria o valor da arte para a vida e o valor do método psicanalítico, descoberto por Freud, que garante juntamente com o processo por ele produzido o futuro da psicanálise.

 

Referências

Meltzer, D.; Williams, M. H. (1988). The apprehension of beauty. Londres: Clunie Press by The Roland Harris Trust Library.         [ Links ]

______. (1990). La aprehensión de la belleza. Buenos Aires: Spatia Editorial.         [ Links ]

Meltzer, D. (1986). Studies in extended metapsychology. Londres: Clunie Press by The Roland Harris Trust Library.         [ Links ]

______. (1990). Metapsicologia ampliada. Buenos Aires: Spatia Editorial.         [ Links ]

______. (1992). Além da consciência. Revista Brasileira de Psicanálise, 26(3),397-408.         [ Links ]

Mélega, M. P. (1996). Relação mãe-bebê, um modelo da relação analítica. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanálitica de Porto Alegre, 3(2),243-253.         [ Links ]

______. (2018). A chil's vicissitudes over the aesthetic conflict. In Aesthetic conflict and its clinical relevance (M. H. Williams, ed.). Londres: The Harris Meltzer Trust.         [ Links ]

______. (2001). Eugenio Montale: criatividade poética e psicanálise. Cotia/SP: Ateliê Editorial.         [ Links ]

______. (2014). Imagens oníricas e formas poéticas: um estudo da criatividade. São Paulo: Pasavento.         [ Links ]

Montale, E. (1984). Tutte le poesie (A. Mondadori, ed.). Milão: Ed. Milano.         [ Links ]

Williams, M. H. (2010). The aesthetic development: the poetic spirit of psychoanalysis. Londres: Karnac Books.         [ Links ]

______. (2014, outubro). Artistic process and aesthetic conflict. Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. São Paulo, Brasil.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
MARISA PELELLA MÉLEGA
Av. Vereador José Diniz, 3725/82, Campo Belo
04603-004 - São Paulo/SP
Tel.: 11 5092.3883
pmelega@uol.com.br
www.marisamelega.med.br

Recebido 17.06.2020
Aceito : 27.06. 2020

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