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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

LITERÁRIAS

 

Abbi cura di te (cuide-se) café confinado - café sob restrição tema: alimento - nourriture - food1

 

 

Jacques Leenhardt; Tradução: João A. Frayze-Pereira

Diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS). Diretor da equipe de pesquisa da efisal (Fonction imaginaires et sociales des arts et des littératures). Crítico de arte (presidente honorário da Association Internationale des Critiques d'Art, aica), organizou várias exposições. Autor de inúmeros livros e artigos. Entre eles, os mais recentes são: Jean-Charles Pigeau (2019). Une Odyssée tran culturelle. Paris: Hervé Chopin; Prefácio a Elaine Dias (2020). Artistas franceses no Rio de Janeiro (1840-1884). Das exposições gerais da Academia imperial de Belas Artes aos ateliês privados. Fontes primárias, bibliográficas e visuais. Guarulhos: FFLCH-UNIFESP; Mario Pedrosa. Un parcours moderne. In Artelogie, 15, Latin American networks: Synchronicities, Contactsand Divergences. https://journals.openedition.org/artelogie/385

Correspondência

 

 

Trata-se, talvez, de comida, talvez de trabalho ou, talvez, de troca comercial. O café é um objeto versátil na minha existência: em relação aos temas que se propõem, pode ser incluído na categoria "comida".

Mas não é assim que eu vejo. Para mim, o café é antes de tudo um cheiro antes de um gosto, um cheiro que surge num determinado momento em que a vida doméstica se transforma em tempo de trabalho. O café com suas fragrâncias simboliza, então, a pausa que eu ritualmente coloco no meu cotidiano para marcar um avanço, que se desenvolve da cama para a cozinha, passando pelo banheiro, e um "devir", a promessa de me sentir bem disposto para trabalhar, confortado pelo gosto violento do café se instalando em meu corpo. O mesmo ritual, em que apenas mudam os espaços em questão, define a passagem entre o almoço e o escritório onde regressarei ao trabalho, à tarde.

Como todo ritual, o momento do café tem seus instrumentos: a máquina com a qual o preparo e a xícara com a qual eu o bebo. Por meses, tenho usado uma série de antigas tigelas de porcelana branca do século 19, adornadas com um fio de ouro. Algumas estão levemente lascadas ou rachadas.

O ritual do café também é uma cerimônia partilhada com os visitantes diários: "Venha tomar café às 14h30" é uma frase que encerra bem as conversas telefônicas e inicia a tarde em companhia. Trago o par de tigelas fumegantes com um pouco de açúcar mascavo claro para o meu escritório em uma bandeja de madeira.

No período de confinamento que acabamos de viver, essa dimensão social foi brutalmente proibida, pois se tratava de obrigar a todos ao distanciamento social. Eu senti isso como um ataque neste momento de convívio e conversa.

Talvez seja por isso que, nesse clima de contenção, me ocorreu a ideia de conservar uma memória de cada um desses cafés, bebidos sozinho, como se eu precisasse projetar meu ritual privado em uma tela / um ambiente menos pessoal. Resolvi então tirar uma fotografia imortalizando cada um desses cafés.

No fundo da pequena tigela, dia após dia, captei os vestígios deixados pela espuma do café, um mistério sempre mutante de cada um desses momentos.

Eu nem me perguntei para que essas gravações diárias poderiam ser usadas. Elas se acumulavam como nos dias de confinamento. Obviamente, não se tratava de esperar ler o futuro nas borras de café, segundo a tradição dos adivinhos, mas também não tinha outros planos. Foi então que o convite de Maddalena d'Alfonso entrou no meu computador para eu projetar / desenhar uma "exposição em casa", dando um uso a posteriori, senão um sentido, a essa prática bastante enigmática que me acompanhou durante dois meses e que ficou restaurada na parede da minha sala.

 


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DADOS TÉCNICOS

A instalação é composta por 72 imagens que representam o interior de uma xícara de café. Cada imagem, tirada dia a dia durante os dois meses de confinamento, foi reproduzida no formato A4.

A instalação nessa sala, em minha casa, envolveu a remoção de todos os objetos e pinturas que estavam na parede.

O conjunto mede 167 cm x 267 cm.

 

 

Correspondência:
JACQUES LEENHARDT
13 rue de l'Abbé Grégoire
75006 - Paris
Tel.: 33(0)680592029
jacques.leenhardt@ehess.fr

Recebido 10.07.2020
Aceito 14.08.2020

 

 

1 Exposição doméstica/nacional "Abbi cura di te" (Cuide-se).

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