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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

LITERÁRIAS

 

A invasão

 

 

Maria Cristina Vianna Kuntz

É graduada em francês, inglês e português pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), mestre e doutora em literatura francesa pela Universidade de São Paulo. Foi professora de literatura francesa em cursos a distância na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP/Cogeae, 2003-2013), é membro da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e da Société Internationale Marguerite Duras (desde 2006), com sede em Paris. Publicou em 2014 Marguerite Duras: trajetória da mulher, desejo infinito, São Paulo: Baraúna. Pós-doutora (2020) pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP

Correspondência

 

 

Naquela noite, ele estava só em casa, apenas com seu filho. A mulher e as filhas tinham saído, mas voltariam logo. Ao chegarem já no jardim, elas ouviram estampidos. Seriam bombas? Jogo do Corinthians?

Ao passarem pela área de serviço, ela percebeu que poderiam ser tiros e disse à menina:

- Corra para o quarto da empregada! - que ficava no fundo do quintal.

Entrando na cozinha, ouviu mais três estouros.

Na sala, um homem estendido no chão. O seu homem crivado de balas! Atônita, não conseguiu pronunciar palavra.

Imediatamente a seu lado, um rapazinho moreno disse nervoso:

- Passa o dinheiro!

Sem pestanejar, voltou à realidade:

- Que dinheiro! Não tenho! Leva a aliança, o relógio, mas me deixa salvar meu marido!

Por um momento pensou em desarmá-lo, pois ele tinha o seu tamanho. Nesse instante, porém, outro rapaz moreno, alto, magro entrou trazendo a menina de 10 anos pelo pescoço. A moça então suplicou:

-Vão embora pelo amor de Deus e me deixa salvar meu marido!

O rapaz então pegou da sua mão a chave do carro e saiu com o companheiro.

Imediatamente ela ligou para um amigo pedindo socorro e depois para a polícia. Seu homem ainda vivia! Sete tiros!

Nas Clínicas, quando o retiraram do carro, gritaram: "Baleado", as portas se abriram e a maca sumiu nos corredores.

Fora, a longa espera. Sua cabeça rodava... O coração saltava-lhe pela boca! As horas passavam e não havia notícia. Duas horas depois, o médico amigo que o socorrera veio contar que ele estava vivo, consciente, que a perna, os dois braços e o pulmão haviam sido atingidos. Fizeram transfusão de sangue: três litros. Também eram sete furos!

Contudo ela não podia entrar, não podia vê-lo. Pensava em seu corpo. Aquele corpo forte, esbelto, rijo, a seu lado há tantos anos... esforçava-se por agarrar-se a ele, não deixá-lo partir.

A sombra e o vazio tentavam inundar-lhe o peito, mas ela desviava, evitava, fixava-se fortemente nele, o rosto desfigurado de dor, mas corajoso, aguentando firme.

A noite foi longa. De quando em quando, o médico vinha vê-la para dizer que ele resistia, que sairia dessa.

Nas primeiras horas da manhã, finalmente, ela pôde beijar seus lábios e ele foi transferido para outro hospital a fim de ser operado.

Lá, outra via crucis. As balas haviam perfurado o pulmão duas vezes e ele mal conseguia respirar porque doía muito. Porém ele precisava recuperar uma boa oxigenação a fim de submeter-se à operação: braço e perna quebrados e ainda uma bala alojada no braço esquerdo. Havia o perigo de essa bala desfazer-se em estilhaços...

Uma semana depois ele foi operado e, após mais uma semana, pôde voltar para casa em cadeira de rodas.

 

 

Correspondência:
MARIA CRISTINA VIANNA KUNTZ
Rua Itacema, 292/190, Itaim-Bibi
04530-051 - São Paulo/SP
cvkuntz@uol.com.br

Recebido 12.06.2020
Aceito 10.07.2020

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