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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

RESENHAS

 

Hermano elegido: história de uma amizade

 

 

David Léo Levisky

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), com especialização nas áreas da infância e da adolescência. Psiquiatra. PhD em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Membro fundador da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família. Membro efetivo da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família. Foi editor da Revista Brasileira de Psicanálise e diretor administrativo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coordenou o projeto social "Abrace seu bairro". Livros publicados: A vida?... é logo ali; Entre elos perdidos; Um monge no divã; Adolescência e violência I, II, III; Adolescência: reflexões psicanalíticas

Correspondência

 

 

Luis Kancyper. Amistad: una hermandad elegida (Estudio psicoanalítico). Buenos Aires: Editora Lumen/Tercer/Milenio, 2014, 296 páginas.

Luis, desde o início de nossa amizade, talvez haja uns 30 anos, me chamava de "hermano elegido" para caracterizar nosso relacionamento. Provavelmente, ele tinha outros hermanos, mas esses não faziam parte de nosso relacionamento. Era algo exclusivo, cujo conteúdo de nossas trocas permanecia como um segredo de Estado mútuo, revelador de profundo sentimento de confiança recíproca, mas não cega. Estávamos atentos. Era algo espontâneo e que devia ser cuidado, cultivado e respeitado, sem exigências nem expectativas ou cobranças.

Falávamos de quase tudo, das famílias, das esposas, dos filhos, das alegrias e dramas, aspirações, decepções e limites como partes de nossas vidas. Os encontros não eram frequentes. Por certo, a distância geográfica interferia, ele em Buenos Aires e eu em São Paulo, fato que, talvez, ajudasse na manutenção desse estado de espírito. Porém nem a distância física, nem a temporal turvavam a profundidade de nosso relacionamento. O telefone era nosso grande meio de comunicação. Ouvir a voz um do outro, saber como estávamos, afinar o momento e o dia a dia mantinham nossa sintonia até um próximo encontro presencial.

Tínhamos todos os sentimentos que ocorrem nas relações fraternas: ciúmes, rivalidades, admiração, inveja, certa dose de disputa, afetos diluídos por profundo amor e respeito pelas diferenças e divergências. Um não precisava humilhar o outro. Cada um tinha sua identidade e autoridade preservadas sem precisar desenvolver mecanismos de defesa para ocultar o verdadeiro eu. Um sentimento maior, alianças inconscientes estruturantes davam continência ao relacionamento, permitindo a preservação da solidariedade, do holding, do espaço lúdico que suportavam os elementos agressivos e destrutivos de um e de outro. Pelo contrário, podíamos deles falar e, assim, amenizar tensões. Havia empatia e muita espontaneidade na expressão e no interesse recíproco sobre o estado emocional mútuo.

Conquistamos uma relação vincular distinta daquelas que se observam nas amizades corriqueiras, nas práticas sociais, institucionais, políticas e mesmo em família. Não era invasão, mas compartilhamento na preservação de um estado relacional fértil e saudável. Falávamos de nossas instituições, dos valores, das lutas políticas, das tendências teóricas e, principalmente, de nós dois, dos anseios, amores e frustrações. Enfim, da vida. Sobre o que cada um de nós percebia de si e do outro, sem julgamento de valores. Eventuais disputas ficavam diluídas em momentos de humor e de respeito recíproco.

Em 2019 produzi um texto chamado "Estética de uma amizade", título da exposição de pinturas e de esculturas das obras de Alfredo Volpi (1896-1988) e de Bruno Giorgi (1905-1993), integrante do precioso e belíssimo catálogo das obras e da história da amizade existente entre esses artistas. Exposição e livro organizados sob a maestria de Max Perlingeiro, amigo e diretor da galeria Pinakotheke de São Paulo. Volpi e Giorgi não precisavam esconder fantasias, defeitos, fraquezas, mágoas, temores e realizações. Inspirei-me, nessa ocasião, entre outros trabalhos, no livro de Luis Kancyper: Amizade: uma irmandade escolhida.

Na dedicatória do livro, ele escreveu: "Para David e Ruth: com alegria, com entusiasmo, com confiança, com lealdade, com minha amizade". Afetos que norteavam nosso relacionamento, a ponto de se poder dizer: "Eles se elegeram irmãos ao criarem e conquistarem um vínculo de amor pleno de sentimentos de empatia e de sintonia entre os vários aspectos constitutivos de suas identidades". Livro precioso, profundo, erudito, didático sobre um tema que, segundo seu autor, foi pouco explorado pela psicanálise, mas que está na essência das relações humanas, acompanhando-a, provavelmente, a partir do início do processo civilizatório.

O homem vem tentando descrever e compreender o perfil dessa relação amorosa. Aristóteles, Erasmo de Roterdão, Montaigne, Bacon, La Fontaine, Jorge Luis Borges deixaram, entre tanto outros, suas marcas, assim como Roberto Carlos com sua música "eu quero ter um milhão de amigos", ou os amigos da internet, que alguns consideram às centenas ou milhares. Mas não é dessa amizade que estou falando. Na Bíblia encontramos pelo menos duas passagens significativas:1

Um amigo fiel é um abrigo seguro; aquele que o encontrar terá encontrado um tesouro. (Eclesiastes 6:14-16)

Seu amigo, aquele que é como se fosse sua própria alma. (Deuteronômio 13:7)

Kancyper, em seu livro Amistad, reserva amplo espaço para o estudo da compaixão, a partir da obra de Freud e que envolve o sentimento de amizade. Sentimento piedoso de empatia para com a tragédia pessoal de alguém, acompanhado do desejo de atenuá-la ou de resolvê-la. Uma participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um impulso altruísta de ternura para com o sofredor. Mais adiante, ele analisa a amizade e questões ligadas ao narcisismo ao discriminar os destinos do amor, entre eles, a amizade e o estar enamorado. Kancyper faz uma análise preciosa ao descrever a tessitura e a delicadeza de fenômenos que ocorrem nesses estados afetivos ao dizer que: "na amizade, as relações de objeto são mais objetais e menos narcisistas do que no estar enamorado" (p. 43). O autor enfatiza que no estado de estar enamorado, diria, na paixão, "o ego se empobrece, se entrega ao objeto, concede-lhe um lugar mais importante em sua economia psíquica, idealizando-o e realizando um investimento elevado em seu custo" (p. 45). Prossegue sua análise ao discutir as relações de domínio nessas duas situações.

No capítulo seguinte, faz uma abordagem original ao diferenciar no processo analítico o amor de transferência, tão bem analisado por Freud, do que chama de "amizade de transferência", que se aproxima do que outros autores poderiam chamar de transferência positiva. Seria o aspecto colaborador do paciente para o desenvolvimento do processo associativo a caminho do inconsciente existente na relação intersubjetiva do processo analítico.

Kancyper traz em seu texto elementos clínicos generosos e claros que nutrem o leitor. Sua percepção psicanalítica é bastante moderna e atualizada ao correlacionar aspectos das relações intersubjetivas e as configurações intrapsíquicas, sempre acompanhadas de farto conteúdo clínico ou extraídas da literatura universal. Capítulo especial é dedicado ao lugar da amizade no processo analítico da adolescência. Aliás, Kancyper era profundo conhecedor desse processo, revelado em seu livro Adolescencia, el fin de la ingenuidad.2

Em outra parte do livro sobre amizade, ele nos oferece um pensamento curioso extraído do acervo popular mexicano: "Deus nos enviou amigos para se desculpar por nos haver enviado irmãos" (p. 149). Vou omitir comentários. Aliás, conteúdos que alimentaram a elaboração de outra de suas obras: El complejo fraterno.3 Deixarei para o leitor o poder da fantasia e da imaginação. Tanto ele como eu tivemos a experiência de termos tido irmãos de sangue, experiência que muito alimentou nossa relação de amizade e longos momentos confessionais.

A segunda parte desse precioso livro é dedicada à amizade na literatura e na psicanálise, espaço no qual o autor desenvolve aspectos específicos da amizade na adolescência e na velhice. Conclui sua obra dedicando reflexões sobre as funções da amizade com um lindo e verdadeiro pensamento: "un amigo viene a tempo. Los demás cuando tienen tempo" (p. 269).

Nossa amizade teve início em algum congresso de psicanálise. Já não me lembro nem quando, nem em qual, mas em Lima ou Bogotá. Trocamos nossos livros e, depois, apresentamos um ao outro a nossos editores. Ele me introduziu na Lumen e eu o introduzi na extinta Casa do Psicólogo. Isto significa que nossa amizade teve início na década de 1990. Ela foi naturalmente se aprofundando. Felizmente, nossas esposas, Judith e Ruth, se tornaram próximas a ponto de tolerarem os momentos em que foram "esquecidas", bem como os ciúmes que nossa relação pudesse desencadear.

Dentre nossos encontros houve momentos marcantes. Um deles foi quando completei 70 anos. Reuni amigos preciosos de minha vida. Luis e Judith vieram especialmente de Buenos Aires para essa confraternização. Deles ganhei um lindo presente: um quebra cabeça artesanal feito por um artista portenho que não me recordo do nome, mas muito simbólico: uma série de animais feitos de pedacinhos de madeira que, montados, compõem uma Arca de Noé. Ele está sobre um buffet antigo na sala de estar de nossa casa, sobre uma peça rara herdada da família da Ruth. Luis está lá, sempre presente em nossos pensamentos.

 

 

Perdemos um amigo, a sociedade perdeu um homem generoso e a psicanálise, um clínico, autor e mestre criativo. A obra deixada por Luis Kancyper é vasta, atual e abrangente. Publicou seus livros em diversos idiomas e concluiu sua passagem por este mundo não sem antes ser reconhecido por seus alunos, colegas, amigos e familiares. Pai, marido e avô sempre presente. Foi agraciado com o Prêmio Sigourney em 2014. Tenho em mãos o e-mail no qual ele me comunica que o prêmio lhe foi outorgado e aproveita para marcarmos um encontro para almoçarmos juntos. Estava "alucinado" por ocasião da entrega, em Buenos Aires, durante o congresso da ipa. Em 5 de agosto de 2018, perdemos Luis Kancyper. Morreu com o gosto da vida, súbito, após uma partida de tênis. Provavelmente, parte, ou o todo dele, devia estar realizada. Em 19 de agosto de 2019, a Associação Psicanalítica da Argentina (APA) prestou-lhe homenagem com a presença de familiares e amigos. Estivemos juntos mais uma vez. Foi um grande cara, um grande homem. Deixa saudades.

 

 

Correspondência:
DAVID LÉO LEVISKY
Rua Bruno Lobo, 218
05578-020 - São Paulo/SP
Tel.: 11 99931.3646
davidlevisky@gmail.com

Recebido 30.06.2020
Aceito 10.07.2020

 

 

1 Levisky, D. (2019). Estética de uma amizade: Alfredo Volpi e Bruno Giorgi. São Paulo: Pinakotheke, pp.15-21.         [ Links ]
2 Kancyper, L. (2007). Adolescencia, el fin de la ingenuidad. Buenos Aires: Lumen.         [ Links ]
3 Kancyper, L. (2004). El complejo fraterno. Buenos Aires: Lumen. Editado também pela Blucher.         [ Links ]

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