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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo jul./dez. 2020

 

RESENHAS

 

Interpretando o oráculo da noite1

 

 

Márcio de Assis Roque

Membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e colaborador e supervisor no Serviço de Psicoterapia/Núcleo de Psicanálise do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPQ-HCFMUSP)

Correspondência

 

 

Sidarta Ribeiro. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, 488 páginas.

Declaradamente inspirada nas contribuições freudianas, a obra O oráculo da noite foi lançada em 2019 pelo neurocientista e pesquisador Sidarta Ribeiro, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O livro não só ganhou grande repercussão à época do lançamento como foi um dos mais vendidos de 2020. Seu grande sucesso se dá não só pelo interesse que as neurociências despertam no público em geral, mas por ser um extenso e detalhado estudo sobre os sonhos.

Para os psicanalistas, o trabalho de Sidarta interessa não só em razão do tema, mas, sobretudo, pela forma como a psicanálise - em especial Freud - é considerada. Nele, é estabelecido um importante diálogo entre as neurociências e a psicanálise, e o autor procura demonstrar correlatos entre esses campos de conhecimento, marcados por ataques no século XX, principalmente no que diz respeito ao caráter científico da psicanálise (com destaque para a contundente crítica popperiana). A história dos sonhos passa por um profundo escrutínio, e são estabelecidas relações entre cultura, política e religião, além de mapear achados recentes da neurociência. E, por mais que o livro não seja sobre psicanálise, o entrelaçamento de pesquisas e descobertas do campo da neurologia com conceitos psicanalíticos abundam pelos 18 capítulos. Restos diurnos, desejo e até o inconsciente encontraram correlatos biológicos.

Nos melhores moldes freudianos, o livro começa com uma sequência de três sonhos do próprio autor, que relata o processo de elaboração do luto da morte de seu pai quando era criança. No primeiro e nos três capítulos seguintes, vemos uma historiografia detalhada e algumas das principais teorias sobre os sonhos ao longo da história para, então, entre o quinto e o décimo terceiro capítulo, mergulharmos nas teorias propriamente neurocientíficas tanto do sonho como do sono e, nos capítulos finais, retomarmos as principais teses da obra.

O ponto de partida histórico será o de estabelecer o lugar que os sonhos tiveram na evolução humana e de como teria se dado o seu surgimento desde os primeiros sonhadores até a contemporaneidade e suas semelhanças e diferenças ao longo do tempo. De início, surge uma interessante pergunta: com o que deveriam sonhar os primeiros sonhadores? A resposta logo vem: os primeiros sonhos deveriam conter o imediato que ocupava o mais importante das atividades cotidianas, como comer, não ser comido e reproduzir. Com o passar do tempo, os sonhos se desenrolam na cultura e ganharam importância no tecido social.

É possível que o sonhar com os mortos tenha inaugurado a religião e também a divisão do corpo, da alma e espírito, uma vez que, por ele, seria possível representar figuras que não estavam mais fisicamente ali e projetar um mundo além do real, ganhando ares de prestidigitador do futuro. A capacidade de narrar a si mesmo e seus sonhos é o que diferenciaria a espécie humana dos outros animais; narrar-se coincidiria com a complexização dos conteúdos fantásticos dos sonhos e a constituição de um sujeito capaz de consciência de seu eu. Exatamente por esse motivo que a proposta de estudar a história dos sonhos é para o autor a possibilidade de conhecer o surgimento da mente humana. Para ele, sonhar é um processo adaptativo e de aprendizado, influenciado pelas condições de vida do sonhador - as sociais, econômicas e também o ambiente em que se encontra.

Segundo Sidarta, na história recente do discurso racionalista, fundamento da ciência e do capitalismo, os sonhos ficaram relegados a um papel secundário, como se fossem derivados residuais, relacionados à loucura, de um corpo em estado adormecido, e progressivamente, foram ganhando sentidos na cultura como conquista, felicidade, aspiração, delírios, mantendo sempre um certo caráter premonitório e oracular do futuro. Para ele, foram autores como Freud, Kraepelin e Bleuer que demonstraram, no fim do século XIX e início do século XX, que os sonhos poderiam ser tomados como parte de processos terapêuticos. E teria sido principalmente pela psicanálise que o resgate histórico da importância dos sonhos se daria, ao possibilitar a construção de narrativas sobre o traumático, criando um método inteligível de interpretação onírica através de um discurso racional e científico sobre os sonhos e revelando as estruturas da psique humana. É esse o lugar de destaque que ocupariam as contribuições da obra freudiana para Sidarta. Tópicas e conceitos psicanalíticos como ego, superego, id e até mecanismos de defesa aparecem ao longo de quase todo o livro entrelaçados com funções (e regiões) cerebrais.

Nessa linha de raciocínio, a prevalência de campos cerebrais ativados em vigília e em estado de sono será equiparada com a hipótese freudiana de restos diurnos. A memória será entendida como a reverberação do material já inscrito em vigília, em "uma trajetória específica de propagação da atividade elétrica através da malha neuronal" (p. 202). A principal característica das reverberações de memórias é a ativação de um conjunto específico de campos neuronais e, mesmo quando atingidos por um excesso de estímulos vindos de outras fontes que afetam inversamente a possibilidade de as percebermos, estão presentes e continuam reverberando ativamente a todo momento, inclusive em vigília. "Os sonhos são como as estrelas: estão sempre lá, mas só podemos vê-los durante a noite", diz Sidarta (p. 193), parafraseando Freud. Com isso, o autor toma os sonhos como compostos de reverberações de memórias e equivale essa ideia de memória ao inconsciente. Nesse ponto, um pequeno e determinante elemento é introduzido: mais do que reverberações de memórias, os sonhos sonham situações contrafactuais, ou seja, situações que não ocorreram no cotidiano desperto, mas que poderiam ter acontecido.

O caráter de "simular possíveis soluções ou alternativas" (p. 86), que aparece como características central do sonho e tese fundamental do livro, funciona como "chave para resolução de problemas" (p. 87) vividos em vigília, mas não solucionados. Os sonhos seriam, então, possibilidades de futuro, uma espécie de "re-embaralhamento" das memórias em suas infinitas combinações, resultando em um futuro potencial do sujeito, um simulacro. Este seria o ponto alto do desenvolvimento argumentativo: fica claro o título do livro e o deslocamento da função oracular de adivinhação mística/religiosa para a simulação de possibilidades e probabilidades de futuro baseado em situações vividas no passado.

A proposta do autor é a de criar uma teoria geral sobre os sonhos, e ele acredita alcançar isso por entender que sua tese seria a primeira a conjugar as temporalidades de passado, presente e futuro, sendo que no entendimento dele a psicanálise teria dado conta somente dos aspectos do passado por se tratar de desejos infantis e restos diurnos. Inclusive, o papel do desejo na formação dos sonhos, ao contrário do que se poderia imaginar quando pensamos em hipóteses neurológicas, é valorizado e reconhecido no livro, porém temos que destacar que desejo aqui é entendido de uma forma muito particular e aparece associado a um sistema de recompensa ou punição. Mais ainda, coincide com um elemento do processo fisiológico, a saber, a dopamina. "Sonho 'é' desejo porque ambos 'são' dopamina" (p. 261). São os desejos (dopamina) que levariam as reverberações de memórias a percorrerem determinados caminhos e se destacarem em detrimento de outras possíveis trilhas, até que sejam percebidas e representadas simbolicamente nos sonhos.

Importante dizer que todas essas aproximações entre neurologia e psicanálise não teriam em princípio um intuito reducionista. O próprio autor afirma: "Não se trata de reduzir um fenômeno psicológico à biologia, mas de tentar compreender de que forma a interação química de células totalmente inconscientes gera a experiência subjetiva do sonho" (p. 140). A relação criada entre a psicanálise e campos das ciências neurológicas através desse livro está mais para uma fronteira que procura estabelecer diálogos do que os costumeiros fronts de guerra dos embates históricos. Mas, se por um lado podemos ver com certo entusiasmo as relações estabelecidas entre as evidências neurocientíficas do funcionamento do cérebro com conceitos psicanalíticos da mente, por outro é necessário compreendermos como são construídas essas aproximações e quais seriam suas implicações - questão não tão simples de se resolver e que parece ainda imprecisa no desenvolvimento da obra. Por exemplo, há uma passagem que diz: "Para ir além do estudo de correlações e tentar estabelecer causalidade, é preciso induzir ou interromper o fenômeno biológico para verificar o que acontece com o fenômeno psicológico" (p. 201). Entretanto sabemos bem que "causalidade" é um termo um tanto controverso para a psicanálise, ainda mais quando relacionada às produções psíquicas e mentais.

Para aqueles que possuem interesse pelo tema dos sonhos e pela relação que a psicanálise pode ter com outros campos e diversas formas de produção científica, O oráculo da noite é uma leitura fundamental nos dias atuais, além de nos fazer lembrar de que nem os sonhos, e talvez nem a própria psicanálise, são objetos exclusivos dos psicanalistas.

 

 

Correspondência:
MÁRCIO DE ASSIS ROQUE
Rua Capote Valente, 1417
05409-003 - São Paulo/SP
Tel.: 11 99105.3737
marcioassisroque@yahoo.com.br

Recebido 25.09.2020
Aceito 27.10.2020

 

 

1 Uma versão estendida deste trabalho foi discutida com os alunos de psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Campus Santa Cruz, em julho de 2020.

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