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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

EDITORIAL

 

 

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci

annelisescappaticci@yahoo.it

 

 

A viagem de Ulisses

Fala-me, Musa, do homem versátil que tanto vagueou depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.

De muitos homens viu as cidades e a mente conheceu; e foram muitas no mar as dores que sofreu em seu coração.

(Odisseia, Canto I, 1-4)

Gostaríamos de iniciar esta nova edição convidando os leitores a participar de uma viagem. Ela se dá com base em um conceito que reúne o pensamento dos tempos, Zeitgeist, na interface a que se dedica a Ide, entre a psicanálise, a arte e a cultura, uma Odisseia. A Odisseia de nossas vidas se traduz entre o acaso e a escolha, como na poesia de Robert Frost The road not taken (1916), é uma encruzilhada e um caminho a ser percorrido; comporta a tomada de decisão e, em decorrência, leva a assumir as consequências por outros caminhos não trilhados.

Desde o início de nossa humanização, a viagem foi cantada nos versos dos poetas que invocaram a inspiração de suas musas, tais como Homero, Shakespeare, Nietzsche e, finalmente, Freud. Assim, o Édipo pode ser lido como o cumprimento do destino trágico, a pré-destinação, ou ainda, através da curiosidade, do épico. Aquiles e Ulisses, tragédia ou épica, drama ou investigação, ser ou não ser. Esse é o fulcro da observação psicanalítica, iluminar a luta cotidiana pelo autoconheci-mento, a épica absolutamente única de cada um de nós na viagem da vida, oscilação entre esses dois polos, narcisismo e social-ismo. Num certo sentido, vários dos artigos contemplados neste número tratam desse dilema, já que toda escrita é autoconhecimento, é autobiografia (Scappaticci, 2018).

O presente pensamento editorial tem como meta acompanhar a busca do aedo pela palavra, começando pela Grécia arcaica na Odisseia e atravessando os tempos. Como o poeta, o psicanalista se dispõe à sua odisseia para tornar-se um narrador, um contador de histórias. Fazemos nossas viagens pelo mundo mental para depois compartilhar, publicar nossas aventuras, essa é a história do nascimento do analista. A Odisseia é busca pela origem, pelo original. Na Odisseia retratada por Homero, Ulisses retorna ao familiar, a Ítaca. Conforme a tese de Massimo Cacciari e outros estudiosos da Divina comédia, Dante teve acesso a uma Odisseia cujo final exalta a obsessão de Ulisses pelo conhecimento. Tanto que recorre ao uso de uma comunicação simples, mas eficaz, que faz com que seus companheiros desistam imediatamente do desejo do lar, não podendo resistir ao chamado para ultrapassar os limites do conhecimento, e assim, nessa concepção, o herói não retorna1 (Scappaticci).

O frati, dissi "che per cento milia perigli siete giunti a l'occidente,
A questa tanto picciola vigília
Dí nostri sensi ch'è del rimanente
Di retro al sol, del mondo sanza gente.
Considerate la vostra semenza: fatti nos foste a viver come bruti,
Ma per seguir virtude e canoscenza".2

(Alighieri, 1300/1985, Verso XXVI, 111-120)

O retorno ao original e sua impossibilidade parece constituir o fulcro de muitas análises em que o analisando fica preso ao próprio destino trágico. Nesse sentido, Élvio Coltrim, salienta a catabasis de Ulisses, o encontro consigo mesmo no Hades, sua interlocução com seus objetos internos:

no invisível reino dos mortos que Odisseu vive a aposta máxima de sua humanidade e onde adquire sabedoria e força para voltar ao espaço visível e regido pelos deuses, derrotar seus inimigos, evitar enfurecer um deus, retomar seu palácio, reencontrar a família há muito deixada em nome de uma estúpida guerra e, sobretudo, contar histórias, contá-las e recontá-las, trabalhando incessantemente "a matéria-prima das experiências - as alheias e as próprias". (Benjamin, citado por Coltrim, p. 69)

Elegemos a Odisseia como conceito norteador destes números iniciais, pois urge em nosso meio institucional, como psicanalistas, o retorno às origens da psicanálise - o que coincide, aliás, com o mote da revista -, ou seja, a cultura e a arte como veículo expressivo do psíquico. A Ide vem assim ao encontro da necessidade de acréscimo no arsenal individual de cada analista, quanto a mitos, poesias, arte, para poder falar de algo inacessível, a mente. A cultura como modelo iluminou a efemeridade inconsciente da psicanálise desde seu nascimento. Freud estava às voltas com um problema clínico e utilizou o mito de Édipo para tentar descrevê-lo e assim, "tropeçou" na psicanálise, descobrindo-a. A partir daí, o emprego de analogias pelos analistas

para dar conta de um consciente rígido, lento e pesado correndo atrás de um inconsciente extremamente ativo, flexível e rápido... A metáfora torna-se de tal maneira parte do inglês coloquial, como assinala Fowler, a não ser que seja ressuscitada pela justaposição de outra metáfora, cuja impropriedade e falta de homogeneidade transmitem uma palpitação galvánica à primeira. (Bion, 1977, pp. 25-26)

Neste número celebramos os 45 anos da revista Ide e os 70 anos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo com um ex libris. Nele, evocamos nossos fundadores e exortamos os autores e os leitores da revista a aguardá-la, a sua leitura e, assim, a mantê-la viva. O ex libris é uma evocação do mito, o Jardim de Éden, a urgência humana por autoconhecimento e nos remete, contemporane-amente, ao futuro, para onde nos dirigimos, a nossas premonições e pré-emoções. Seria a psicanálise uma Odisseia no espaço? Uma Odisseia no tempo, em que somos guiados sob nossa intuição? Será que nos dirigimos a tempos nos quais os valores humanos serão estimulados, assim como nossa missão como psicanalistas diante de tanto obscurantismo?

Isso nos incita a reconhecer que, mesmo escondida e recalcada, a incerteza acompanha a grande aventura da humanidade, cada história nacional, cada vida "normal". Pois toda a vida é uma aventura incerta: não sabemos de antemão o que será para nós a vida pessoal, a saúde, a atividade profissional, o amor, nem quando ocorrerá a morte, ainda que esta seja indubitável. Com o vírus e com as crises que se seguirão, provavelmente conheceremos mais incertezas que antes e precisamos nos aguerrir para aprender a conviver com isto. (Morin, 2020, p. 26)

 

Referências

Alighieri, D. (1985). Inferno. In N. Sapegno (Org.), Divina comédia (3.ª Ed.). La Nuova Italia. (Trabalho original publicado em 1300)        [ Links ]

Bion, W. R. (1977). Two papers. The grid and caesura. Karnac.         [ Links ]

Bion, W. R. (2000). Cogitações. Imago.         [ Links ]

Frost, R. (1916). The road not taken. Henry Holt and Company.         [ Links ]

Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. Bertrand Brasil.         [ Links ]

Scappaticci, A. L. (2018). A autobiografia de Wilfred Bion. Psicanálise, uma atividade autobiográfica. Jornal de Psicanálise 51(95),229-242.         [ Links ]

 

 

1 Comunicação oral de Paolo Scappaticci ao ler a Divina comédia de Dante Alighieri (Seminário sobre a Divina comédia).
2 Ó irmãos, eu disse "que por cem mil perigos vocês alcançaram o Ocidente,
Nesta vigília muito pequena – pequena oração neste escasso tempo que ainda nos resta para viver
Diga aos nossos sentidos que é o remanescente
De volta ao sol, do mundo sem gente.
Considere seu semem (dna divino): nós fomos criados para não viver como brutos,
Mas seguir a virtude e o conhecimento.
(Tradução de Paolo Scappaticci)

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