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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo Jan./June 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Odisseia de todos nós: as Ilhas Gregas nos dias de hoje

 

 

Antonio Muniz de Rezende

amurez@yahoo.com.br

 

 

Introdução

Acabo de receber da revista Ide um convite para participar, como idoso, da edição de seus próximos números, tendo como eixo temático a Odisseia de Homero. Sinto-me espontaneamente motivado, até porque, em 1994, publiquei um curso, ministrado no Sedes, com o título "A Odisseia de todos nós" e o subtítulo "A experiência simbólica na psicanálise de Melanie Klein, tendo Homero como pano de fundo".1

Ao atender ao convite da Ide, aproveito para oferecer esse meu livro a todos os colegas interessados num diálogo intercultural, da psicanálise com a literatura grega. Daquela vez, tendo como principal referência Melanie Klein; agora, inspirando-me principalmente em Bion, para mostrar como também eu pude viver a temática da Odisseia, em termos pessoais, numa caminhada juntamente com ele -de Freud até nossos dias. Vejam, por exemplo, meus dois livros: Bion e o futuro da psicanálise e Com Bion, hoje.

 

Parágrafo 1. Em diálogo com Homero

1.1. A Grécia aparece no centro da civilização judaico-greco-latina, também conhecida como "ocidental cristã". Nas costas do Mar Mediterrâneo, temos Israel à direita com a cultura centrada no dabar (palavra de Deus revelada na história, registrada na Escritura Sagrada, e interpretada com a ajuda dos profetas). Roma surge à esquerda, cultivando a lei (LEX) e o direito romano (JUS), com a colaboração de juristas, sem deixar de levar em conta a cultura dos países colonizados pelo Império Romano (cf., por exemplo, o De Belllo Gallico, de Júlio César). A Grécia aparece no centro, cultivando o logos, principalmente com a ajuda dos filósofos gregos, sem nunca esquecer os mitos pré-filosóficos.

Resumidamente: uma síntese preciosa entre o dabar judaico, o logos helénico, o JUS romano. E o exemplo que costuma ser dado na história da filosofia do mundo ocidental-cristão é o de Santo Tomás de Aquino, na Suma teológica, pondo em prática uma filosofia que ficou conhecida como aristotélico-tomista. De fato, na Idade Média, uma tentativa de síntese do pensamento grego (na filosofia) com o judaico (na Bíblia) e o romano (no direito). Isto mesmo sem esquecer a contribuição de Mestre Eckhart, igualmente dominicano, contemporâneo de Santo Tomás, com um posicionamento diferente, místico-religioso, na expressão usada por Bion, a respeito do terceiro modelo epistemológico.

Na sequência, com o modernismo e o pós-modernismo, a civilização ociden-tal-cristã entrou em crise, a tal ponto, que o próprio Freud não deixou de apontar o Mal-estar na civilização, particularmente com uma crítica ao pensamento judaico (cf. Moisés e o monoteísmo). André Green vai ainda mais longe, com a ajuda de Zigmunt Bauman (em O mundo líquido), propondo-nos novas Orientações para uma psicanálise contemporânea. Por outro lado, Yuval Noah Harari antecipa o século próximo e nos oferece 21 lições para o século 21, depois de ter falado do Homo-Deus (judaico?) e do homem Sapiens (grego?). Danah Zohar, sabiamente, convida-nos a ir além da inteligência artificial (IA), com o desenvolvimento de uma Inteligência Espiritual propriamente dita, "uma inteligência que faz a diferença". E eu mesmo, daqui a a pouco, vou falar das novas Ilhas Gregas, com seus respectivos coordenadores.

Falando como psicanalista, é especialmente nesse contexto que reconheço a oportunidade de uma retomada do diálogo da psicanálise atual com a Grécia antiga, indo além da filosofia helênica, com a valorização dos mitos primitivos, seja na versão de Sófocles, no caso do mito de Édipo, seja na versão de Homero, no caso da odisseia de Ulisses.

Freud deu maior importância ao mito de Édipo, a tal ponto, que, depois dele, todos nós reconhecemos como "o Édipo é estruturante da personalidade", numa concepção mais trágica do ser humano, com inevitável vitória da pulsão de morte. No caso de Homero, temos uma concepção mais épica, com inegável perspectiva de vitória da pulsão de vida. Nesse sentido, Freud é mais pessimista, enquanto Melanie Klein e Bion são mais otimistas.

A respeito de Homero e Ulisses, o grande tema é mesmo a Odisseia, palavra que lembra odos (em grego), com o sentido de caminho. Uma "caminhada ao longo da vida", com os desafios característicos das diversas etapas. E é interessante verificar as várias interpretações, da parte de poetas e místicos, cientistas e filósofos, éticos e psicanalistas, a respeito de um nome histórico do caminheiro. No caso de Ulisses, seu nome histórico passou a ser Odisseu.

Uma citação que gosto de fazer é a de Antonio Machado exclamando: Caminante no hay camino, se hace camino al andar. Caminante no hay caminho sino estelas en la mar. De fato, o tema do caminho é tratado na Odisseia, mas retomado de várias outras maneiras por poetas, artistas e místicos, ao longo da história da humanidade, nos quatro pontos cardeais: de norte a sul, do oriente ao ocidente.

1.2. No caso da psicanálise, no presente contexto, escolhi fazer uma leitura bion-kleiniana valorizando a "Odisseia de todos nós", numa concepção homérica de símbolo, com ênfase no vínculo e na sua permanência, apesar dos obstáculos em sentido contrário, especialmente durante a separação, à distância, por muito tempo. Donde também a importância dos sinais, por ocasião de um reencontro, permitindo reconhecimento de ambos os lados. Na expressão usada por Bion, trata-se de "manter os terminais abertos para captar os sinais da realidade última, venham eles de onde vierem". Na perspectiva de Melanie Klein, reconhecendo "a importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego".

E para facilitar a compreensão do que acabo de escrever, vou logo lembrar a definição (homérica) de símbolo, tal como encontrada no dicionário grego de Bailly:

O símbolo era um objeto primitivamente uno, que duas ou mais pessoas repartiam entre si, no momento em que iam separar-se por um longo tempo. Cada qual conservava seu fragmento como sinal do vínculo que mantinha com as outras. Quando mais tarde se reencontravam, elas se serviam de seu fragmento para se fazerem reconhecer. E no reconhecimento, cada qual identificava-se com um nome novo, como sinal da história vivida em separado, indicando também o novo lugar que passariam a ocupar, e da função que passariam a desempenhar, no todo novo igualmente restabelecido.

Levando em conta semelhante definição de símbolo (no dicionário grego), meu livro comporta 13 capítulos na seguinte ordem:

1. A importância da simbolização no desenvolvimento da psicanálise.

2. Uma concepção arcaica de símbolo.

3. O objeto psicanalítico.

4. A unidade primitiva.

5. A cesura.

6. A separação.

7. A conservação do fragmento.

8. O fragmento como sinal.

9. O tempo da separação e sua elaboração na análise da posição esquizoparanoide.

10. A experiência da volta na posição depressiva.

11. O encontro analítico e o reconhecimento simbólico.

12. O fragmento reconhecido com um nome novo.

13. A comemoração e uma nova aliança, por ocasião do reencontro.

A título de exemplo, vou escolher agora três aspectos na Odisseia de Homero, mostrando também como foram tratados psicanaliticamente por Melanie Klein e Bion: a unidade primitiva (no capítulo 4), a separação e as diferenças (no capítulo 9), a volta e o reconhecimento (no capítulo 10).

1.3. A unidade primitiva para Homero e Melanie Klein (p. 61), bem como a relação continenteócontido, para Bion.

Homero mostra-nos Ulisses-Penélope-Telêmaco, como uma família bem unida. Ulisses, rei de Ítaca, apesar de convocado para participar da Guerra de Troia, de início preferiu ficar em casa com a mulher e o filho. E, quando ameaçado pelos companheiros, traçou um círculo no chão em volta de seu corpo com o filho nos braços, e o seguinte desafio: "Quem ultrapassar essa linha pode considerar-se um homem morto".

Homero mostra-nos Ulisses como um pai que cuida carinhosamente do filho. Não é mais a problemática de Laio e Édipo, com ameaça de morte de ambos os lados. Tampouco a problemática de Édipo e Jocasta. Ulisses (pai), Penélope (mãe) dão-se muito bem com Telêmaco (filho) do começo ao fim da Odisseia. E, no fim, a situação de conflito pôde ser bem resolvida com a colaboração dos três.

Mais ainda, para Homero, a ênfase é no pai, mais que na mãe. Já Melanie Klein enfatiza o papel da mãe, não apenas durante a gestação, mas na primeira infância, comentando a dialética do seio bom com o seio mau, como situação inevitável, por ocasião do nascimento e do desmame.

Bion, por seu lado, insiste na relação continente-contido, não apenas dos pais entre si, mas também com os filhos. Uma relação continente-contido, cujo símbolo passa a ser inicialmente a aliança do masculino com o feminino, mas também a dos pais com os filhos, na forma de uma herança, tanto em nível genético (dna) como neurológico (sistema nervoso central), e sociocultural (a começar pela língua). De maneira mais cultural-geográfica, em continuação a Homero, trata-se do continente europeu-afro-asiático, oferecendo continência para o Mar Mediterrâneo.

Por isso mesmo, Bion continua enfatizando a importância da cesura, não apenas no começo, de forma negativa, mas durante a vida, em momentos particularmente significativos, em que o vínculo torna-se ainda mais importante. Ulisses viveu esse momento de cesura ao ser desafiado a partir para a guerra, manifestando ao mesmo tempo a força do vínculo que o ligava à mulher e ao filho. Donde, nas palavras de Bion a necessidade de analisarmos não tanto a cesura e a separação, mas o vínculo e a re-união. Nas suas próprias palavras: "não tanto a cesura e a separação, mas o vínculo e a união que garantem o retorno".

Aliás, Melanie Klein já havia escrito, a propósito do caso Dick, que a psicanálise dessa criança tinha de começar pelo "estabelecimento de contato e vínculo".

1.4. E é o que vemos especialmente em relação a Penélope. Assediada pelos pretendentes ao trono e ao leito do casal, ela disse que só daria uma resposta quando terminasse de fiar uma manta, que continuava sempre inacabada nos braços do tear. Estrategicamente, ela fiava durante o dia, para todo o mundo ver, e desmanchava de noite, para se proteger.

A metáfora é bem esta: ela tecia, servindo-se de um fio, cuja fiação não acabava nunca. E também nós podemos ver a ligação entre as palavras "tecer, tecido, texto"; "fiar, fio, fff"; sopro, spiritus em latim, pneuma em grego.

Com amor, Penélope usava sua inteligência, tecendo um texto, com o qual declarava fidelidade a Ulisses. E Telêmaco via tudo isso como testemunha dos laços que uniam seus pais, mesmo separados à distância.

Por seu lado, Ulisses era posto à prova, seguidamente, de ilha em ilha. Depois da primeira, vinha uma segunda, uma terceira, uma quarta, numa série de provas que parecia não ter fim. Isso mesmo acontecia como um desafio à sua força de ânimo, despertando também agressividade, em face dos ataques que lhe eram dirigidos, impedindo-o de instalar-se nalguma ilha em particular. De ilha em ilha, sem saber como voltar a Ítaca, durante vinte anos! Força de ânimo e coragem, também no sentido de suportar a frustração.

Finalmente, o governador da última ilha ajudou-o a encaminhar-se para Ítaca, onde reencontrou Penélope e Telêmaco, 20 anos mais velhos.

 

A volta e o reconhecimento

1.5. Ulisses voltou a Ítaca, trazido pela deusa Atena. Ele queria voltar, mas era impedido ora por um obstáculo, ora por outro, até que a deusa protetora o ajudou, e ele conseguiu chegar à sua querida Ítaca. Eis o que Homero faz a deusa dizer:

Vou tornar-te irreconhecível a todos os mortais. Enrugarei tua esplêndida pele sobre os teus membros flexíveis. Farei cair de tua cabeça os cabelos louros e cobrir-te-ei de andrajos que te tornarão hediondo aos que te virem. Desfigurar-te-ei os olhos antes tão belos, de sorte que pareças disforme a todos os pretendentes, a tua esposa e a teu próprio filho, que deixaste no palácio... Tendo assim falado, Atena o tocou com sua varinha mágica. Enrugou-lhe a esplêndida pele sobre os ombros flexíveis, fez-lhe cair da cabeça os cabelos louros, revestiu-lhe os membros com a pele de um ancião muito idoso, desfigurou-lhe os olhos antes tão belos, substituiu-lhe as vestes por sórdidos andrajos e por uma túnica esfarrapada, suja e gordurenta. Lançou-lhe por cima uma grande pele de ágil cervo, e, enfim, deu-lhe um cajado e um alforje, vil e esburacado, com uma corda à guisa de suspensório.

Mesmo assim ele foi reconhecido, inicialmente pelo cachorro, logo em seguida pelo porqueiro. Finalmente, pelo filho Telêmaco, por seu pai Laerte e a própria Penélope.

Sem dizer nada a ninguém, Telêmaco levou o mendigo para o castelo e exigiu que fosse tratado como hóspede. Ninguém o reconheceu, a não ser sua ama Euricléia, que o conhecia desde criança, e prometeu guardar segredo.

No dia seguinte, Odisseu na presença de Penélope, sem ser reconhecido, confidenciou que o marido dela estava vivo e tentava voltar a Ítaca. Penélope revelou-lhe que não aguentava mais a pressão para se casar, e no dia seguinte faria um concurso para escolher um de seus pretendentes como marido. Seria vencedor aquele que conseguisse atirar uma flecha com o arco de Odisseu, atravessando o orifício de doze machados enfileirados.

Nenhum dos pretendentes conseguiu lançar a flecha. Foi quando o "mendigo", apesar das gargalhadas dos pretendentes, pediu que lhe fosse permitido participar da prova.

Autorizado e sem nenhum esforço, Odisseu lançou a flecha certeira em direção aos machados. Em seguida, com Telêmaco e seus servos fiéis, matou os pretendentes e empregados traidores, assumindo sua verdadeira identidade. Por fim, uma batalha contra os amigos dos pretendentes mortos, que queriam se vingar. Desta vez, Atenas e Zeus o defenderam.

Odisseu e Penélope reencontraram-se definitivamente e continuaram reinando em paz sobre a ilha de Ítaca.

1.6. Bion, significativamente, vai mais longe que Melanie Klein, em relação a dois conceitos mais importantes na leitura da Odisseia: o conceito de símbolo e o de personalidade. Segundo Bion, o símbolo é uma polissemia encarnada, estruturando-se dinamicamente na dialética da imanência com a transcendência". Por outro lado, a personalidade é concebida simbolicamente como estrutura de relações marcantes, de natureza emocional e afetiva, que desde o início a caracterizam, distinguindo-a de outras personalidades, assim igualmente constituídas, com as quais se relaciona.

A consequência clínica inevitável, segundo Bion, é que também a interpretação psicanalítica vai consistir numa leitura simbólica da personalidade, mediante a identificação dos sinais indicadores de sentido. A semântica e a semiótica passam a ser reconhecidas como grandes instrumentos de que a psicanálise dispõe para realizar sua função, principalmente em termos estruturais, concebendo também a estrutura como multiplicidade unificada por uma ordem cujo sentido é correspondência intencional à situação existencial.

Tudo isso por meio da adoção de um enfoque englobante à luz da realidade última, a cujo respeito Bion escreveu uma frase que passou a ser citada como das principais características da psicanálise bioniana: manter os terminais abertos, para captar os sinais da Realidade Última, venham eles de onde vierem.

De maneira prática e operacional, Bion convida-nos a identificar e desenvolver esses terminais, característicos de uma personalidade humana. A começar pelo aparelho perceptivo sensorial e os cinco sentidos em nossa cabeça, em continuidade com um aparelho perceptivo emocional, pressupondo a inteligência como aparelho cognitivo intelectual; um aparelho dedutivo racional, um aparelho ideativo intuitivo e, finalmente, um conhecimento por conaturalidade no ser, pressupondo afeto-emoção-sentimento.

Por isso mesmo, Bion fala-nos de um movimento de K para O: do conhecido para o desconhecido, infinito, informe, inominável. E assim convida-nos também a uma mudança de nível e de vértice, passando de um modelo epistemológico filosófico-científico, para outro estético-artístico e, finalmente, para o modelo místico-religioso.

É nesse contexto que Bion não deixa de citar a famosa frase de Shakespeare: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode suspeitar a nossa 'vã filosofia'". Só que, corajosa e humildemente, de fato ele está pensando numa "vã psicanálise". Não sem razão, ele retoma Freud a respeito de um mal-estar na civilização. E nós também podemos ir além de Bion, com a ajuda de Homero, para reconhecer o mal-estar nos dias de hoje, em função do que acontece nas Ilhas Gregas nossas contemporâneas, com seus líderes atuais.

1.7. Como se pode ver, uma leitura psicanalítica da Odisseia não deixa de trazer também um desafio a respeito da identidade de Ulisses. Sua história, à distância, acabou tendo consequências mais sérias a respeito das características de sua personalidade. Um nome histórico, nem sempre como opção pessoal, mas imposto pelas circunstâncias, ou, mais simbolicamente ainda, pelos governantes das Ilhas Gregas.

Por isso mesmo, vou propor agora uma releitura do texto de Homero, perguntando quais as características das novas Ilhas Gregas, com seus principais representantes, nos dias de hoje.

 

Parágrafo 3. As "Ilhas Gregas" nos dias de hoje

3.1. Começo falando do materialismo dos físicos, interessados antes de tudo na constituição de um universo material. E cito três nomes: de Einstein, Stephen Hawking, e Marcelo Gleiser. Entre os três, Stephen Hawking tornou-se o mais conhecido em função do livro que publicou com o título de Breves respostas para grandes questões. São 10 capítulos correspondendo às seguintes questões:

1. Deus existe?

2. Como tudo começou?

3. Existe vida inteligível em outros lugares do universo?

4. Podemos prever o futuro?

5. Que há dentro de um buraco negro?

6. A viagem no tempo é possível?

7. Sobreviveremos na Terra?

8. Deveríamos colonizar o espaço?

9. A inteligência artificial vai nos superar?

10. Como moldaremos o futuro?

10 questões que, no entanto, ficam na dependência da resposta à primeira pergunta: "Deus existe?" Se existe, as outras questões terão uma resposta; se não existe, poderão ter outras respostas. E todos nós não demoramos a sentir, não tanto o drama, mas o trágico da situação: que sentido vamos dar a nossa existência, do começo ao fim, levando em conta as perguntas feitas pelos líderes da "primeira ilha grega" nos dias de hoje?

Marcelo Gleiser é um físico brasileiro, que se tornou célebre também pela qualidade das respostas que deu às grandes questões. Por um lado, reconhece a existência de um mistério maior, mesmo no plano da matéria, e com isso deixa em aberto o desafio das respostas que, de fato, não são nem muito breves, nem muito fáceis.

3.2. Na "segunda ilha grega", nós vamos encontrar os naturalistas, a começar pelo próprio Einstein citando Espinosa. Indo além de uma "teoria da relatividade generalizada", e interrogado a respeito de sua fé em Deus, ele respondeu dizendo que acreditava "no Deus de Espinosa".

E o próprio Espinosa resumiu seu pensamento numa frase que todos citamos, em latim: deus sive natura - Deus, isto é a natureza. Eis o texto de Spinoza tal como encontramos na Internet:

Para de ficar rezando e batendo no peito. O que eu quero que faças é que saias pelo mundo, e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes antes... e que desfrutes de tudo o que eu fiz para ti.

Para de ir a esses templos lúgubres, obscuros, que tu mesmo construíste, e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde eu vivo. E aí expresso o meu amor por ti.

A única certeza é que estás aqui, estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procures fora ... não me acharás. Procura-me dentro de ti. Aí é que estou.

Einstein, quando perguntaram se acreditava em Deus, teria respondido: "Acredito no Deus de Espinosa". No entanto, há mais uma pergunta inevitável. "Foi mesmo Deus que falou assim com Espinosa, ou foi Espinosa que disse tudo isso em nome de Deus?"

3.3. Por outro lado, Darwin desenvolveu uma Teoria da Evolução das espécies, dispensando a hipótese da criação. A esse propósito, é importante evitar o mal-entendido que consiste em falar da criação, para os teólogos, no mesmo sentido em que se fala da evolução, na história das espécies.

A criação, para os teólogos, é ato do Criador, e como tal nos refere à eternidade. Deus é eterno, e seus atos situam-se na eternidade. Já a evolução, para Darwin, acontece no tempo, com a história das espécies.

Sem dar a merecida atenção a essa distinção, muitos acham que o evolucionismo é incompatível com a criação; não percebendo o alcance da distinção que existe entre o tempo e a eternidade.

A esse propósito, oportunamente, Bion chama nossa atenção para a realidade última, infinita, informe, inominável.

3.4. Comecei falando do materialismo dos físicos, continuei falando do naturalismo, com Einstein citando Espinosa, prossegui com Darwin e o evolucionismo das espécies. Vou agora falar do humanismo de Nietzsche, um humanismo "demasiadamente humano", levando em conta o que nos disse em seu livro sobre O ressentimento.

A palavra "ressentimento" para nós, em psicanálise, é importantíssima, principalmente com o sentido de "uma traição da amizade". Eu fico "ressentido" com as pessoas que amava, na esperança de que também elas me amassem. Por algum motivo, mais provável no prolongamento da inveja, passo a me queixar delas.

O caso de Nietzsche é exatamente este: em relação aos amigos, mas também em relação a Deus, especialmente como no filme Quando Nietzsche chorou. A primeira cena do filme é a do professor Nietzsche dando aula e afirmando a morte de Deus! Ao que Lou Andreas Salomé não deixou de perguntar: "Foi você que matou Deus, ou ele nunca existiu para você? Se nunca existiu, será você que decide tudo?"

Com isso, Nietzsche leva um susto, principalmente por ter contraído sífilis, num bordel. Não tendo como pedir perdão a Deus, ele próprio teria que se julgar, perdoando-se ou se condenando. Foi quando lhe veio um mau pensamento: a melhor maneira de acabar com um problema insolúvel seria o suicídio. Acabando com a vida, acabava com todos os problemas!

A pergunta um pouco desagradável, em nosso presente, passa a ser a seguinte: quem faz o papel de Nietzsche nos dias de hoje? Quais os correspondentes atuais dos assassinos de Deus? Não é fácil nem cômodo responder. Mas Sartre não deixa de dar uma resposta que ficou célebre, ao afirmar que "o existencialismo é um humanismo".

3.5. O "existencialismo é um humanismo"... frase chocante numa primeira leitura, levando-nos a perguntar se é "apenas um humanismo", principalmente no contexto da pergunta do inconsciente: "se não sou Deus, será que a culpa é minha?"

Sartre apressa-se em tranquilizar-nos: "Você não é Deus, e não há nenhuma culpa nisso. Você é apenas homem, aliás, com muita honra". Dessa forma, os existencialistas passam a fazer uma análise de nossos limites, mas também de nossas possibilidades: o homem, um ser limitado, mas aberto para o infinito.

Aliás, de maneira um pouco chocante, podemos mostrar com o centro do infinito para cada um de nós, é onde cada um se encontra. O centro do infinito para mim é onde me encontro, aqui-agora. A partir do centro, o infinito expande-se em todas as direções. Daí a impossibilidade até mesmo de imaginarmos o infinito, e principalmente de nomeá-lo adequadamente. Não há como "desenhar" o infinito, a não ser como um ponto que se expande em todas as direções. E Bion não se acanha em falar de um movimento de K para O. O contrário seria sinal de um mundo pequeno, preso dentro de seus próprios limites.

 

O culturalismo de Lévi-Strauss

3.6. Um sexto sinal da nova ilha grega é o culturalismo de Lévi-Strauss. E, para ficar mais claro ainda, lembro a definição de cultura como "forma histórica da existência". Noutras palavras, o culturalismo não deixa de ser um capítulo em continuidade com o capítulo da existência. E, assim como a existência assume uma forma política como nação, também a cultura assume uma forma própria como distintiva da identidade daquele grupo.

A esse propósito, gosto de citar o trabalho de Lévi-Strauss a respeito da tribo dos nhambiquaras brasileiros. Por comparação com outras tribos, ficamos sabendo as características daquele povo, a ponto de podermos compará-las, reconhecendo suas diferenças. A começar pela língua.

Isso vai tão longe, que Lacan acabou caracterizando o método de sua psicanálise como uma análise da linguagem do consciente, mas a começar pelo inconsciente. Aliás, ficou famoso o trabalho que apresentou em Roma com o título de "Função e campo da palavra e da linguagem". É verdade que esse assunto tem uma história, e André Green oportunamente apresentou seu "Rapport de Paris", falando da vida do discurso, e mostrando o lado afetivo da linguagem: com escolha e ligação, representação e afeto.

3.7. Esse assunto - da identidade do discurso - foi ficando tão importante, que Sigmunt Bauman sentiu a necessidade de denunciar um "mundo líquido", querendo mostrar, com essa expressão, a característica de um discurso sem consistência.

De fato, "sólido, líquido e gasoso" são três propriedades da matéria. E nosso mundo foi ficando líquido, sem consistência, correndo o risco de virar gasoso -com o uso de uma programação mecânica.

3.8. A globalização programada: do dna e do sistema nervoso central aos programas midiáticos e a IA (inteligência artificial).

A questão da programação começa a ser devidamente posta em nível genético com o dna. Continua sendo observada funcionalmente com o sistema nervoso central. Mas pode ser também provocada mecanicamente com a ajuda de recursos midiáticos, de fora para dentro.

Indo além do simples modelo da comunicação pela mídia, podemos chegar ao excesso da ia, com o uso de robôs nas relações inter-humanas. A esse propósito, gosto de lembrar a situação tragicómica vivida por ocasião do Encontro de Arrábida, em Portugal.

Perguntaram a um robô chamado Sofia como seria a psicanálise daqui a 25 anos. O robô sorriu e respondeu: "Não vai haver mais psicanálise. Eu resolvo todos os problemas de vocês". De fato, o grande risco que a robótica nos faz correr é o de uma programação-espontânea, por meio do algoritmo, na constituição de um arquivo que contenha todas as informações fornecidas aos meios de comunicação automática. Com toda a razão, foi feito um filme intitulado Código, mostrando como a identidade das pessoas é substituída por um código que não depende da vontade dos sujeitos envolvidos.

3.9. Em seguida, temos a preciosa contribuição de Danah Zohar, a respeito da inteligência espiritual. Indo além da inteligência racional (qr) e da inteligência emocional, a inteligência espiritual aparece com uma perspectiva de redescoberta de um mundo transcendente, que por isso mesmo se faz também imanente.

Essa, aliás, acaba sendo uma das mais importantes contribuições de Bion, que o levaram também à experiência de uma dimensão mística, em diálogo com a Índia, mas também com Mestre Eckhart, contemporâneo de Santo Tomás de Aquino. A realidade última evolui para a deidade, a deidade evolui para Deus, e Deus evolui para a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Segundo a teologia de Mestre Eckhart e Santo Tomás, a vida espiritual começa na vivência da graça como participação na vida divina; continua com as virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade; plenifica-se com os dons do Espírito Santo; que dão fruto nas virtudes cardeais - prudência, justiça, força e temperança. Tudo isso significado simbolicamente nos sete sacramentos.

A grande proposta de Bion é buscar uma autêntica vida espiritual, em pleno século xx, independentemente das restrições de ordem religiosa institucional.

3.10. Finalmente, "O século xxi", segundo Noah Harari. Os desafios que já vínhamos tendo ficaram ainda mais ameaçadores no contexto da pandemia.

E, por pandemia, estou entendendo uma ameaça anônima, que por isso mesmo pode ser atribuída a causas as mais inesperadas. Quem é quem, com quem, para quem, no meio da pandemia?

O exemplo é mais do que oportuno, embora esteja também entre os aparentemente insolúveis. Por isso mesmo, há como um desafio maior para todo o mundo: o que é que você vai fazer para sairmos da crise? Em todo caso, Noah Harari não deixou de dar uma contribuição importante. Que eu também aceitei, ao longo de minha caminhada juntamente com Bion.

 

Minha caminhada juntamente com Bion

Entre os grandes nomes da psicanálise atual, o de Bion é aquele com quem sinto maior afinidade. Aliás, mais do que por mera coincidência, tive a oportunidade de dar uma longa entrevista à colega Norma Megliorança, falando sobre minha odisseia junto com Bion (os interessados podem acessar seu site e ouvir minha entrevista).

Comecei mostrando algumas coincidências de ordem geográfica-cultural. Bion nasceu na Ásia, viveu na Europa, trabalhou na América do Norte, tendo vindo várias vezes à América do Sul. Também eu nasci no Brasil, vivi na França, na Itália, na Bélgica e no Canadá, onde nasceu meu primeiro filho.

A propósito de Bion, seus leitores não hesitam em falar de um "cidadão do universo", expressão que também costumo ouvir como um convite familiar, não apena em termos geográficos, mas culturais levando em conta minha formação universitária. Com um doutorado em Teologia (em Roma), um doutorado em Filosofia (em Louvain), uma livre docência em educação na Unicamp, onde fui diretor da Faculdade de Educação da Unicamp (e publiquei especialmente um livro intitulado Crise cultural e subdesenvolvimento brasileiro.

Tudo isso teve consequência também na definição de minha personalidade como psicanalista. Comecei freudiano como todo o mundo. Na Europa, tornei-me lacaniano, levando em conta o fato de meu orientador de tese ser amigo pessoal de Lacan. Na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, tornei-me kleiniano, com

a ajuda de minha analista dona Judith Teixeira de Carvalho Andreucci. Finalmente tornei-me bioniano, em função de uma identificação com ele em vários pontos.

Digo isso com ênfase no fato de eu não ser nem médico nem psicólogo. Esta me parece ser uma característica que me aproximou particularmente de Bion, uma vez que também ele, mesmo sendo médico, caracterizou-se muito mais pela expansão do universo mental, do que por uma clínica psicanalítica com traços da clínica médica. Esta foi e continua sendo para mim um traço comum com Bion, tanto em relação aos problemas trazidos pelos pacientes como às soluções propostas por colegas.

Um exemplo que gosto de mencionar é de quando, depois de ter falado em expansão do universo mental, Bion continua falando da mudança de nível e de vértice: num movimento de K para O, visando a Realidade Última, infinita, informe, inominável.

Se Stephen Hawking começou seu livro perguntando se "Deus existe", Bion propõe-nos, desde o início, uma expansão em direção a O. Por isso mesmo já recebi a propósito de meu trabalho, algumas críticas feitas igualmente a Bion, pelo fato de considerar a transcendência como inseparável da imanência.

A gora posso terminar, mostrando e como por que a vivência das "ilhas gregas" nos dias de hoje acabou sendo um dos melhores exemplos de minha caminhada juntamente com Bion, na história de minha experiência analítica, principalmente nos dias de hoje. Digo isso sem deixar de reconhecer que também a pandemia não deixa de lançar-nos desafios que vão muito além aspectos físico-químicos.

E aproveito para agradecer o convite que me foi feito pelo Corpo Editorial da revista Ide, especialmente pela editora-chefe, Anne Lise Scappaticci, a quem deixo aqui meu abraço ... à distância, mas muito fraterno.

 

Referências

Bion, W. R. (1967). Estudos psicanalíticos revisados (Second Thougts). Imago. (Trabalho original publicado em 1950/1960)        [ Links ]

Bion, W. R. (1975). Conferências brasileiras. Imago. (Trabalho original publicado em 1973)        [ Links ]

Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência. Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

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1 Esse texto, de 248 páginas, encontra-se disponível no site da Febrapsi, após digitação de meu nome.

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