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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Adiar ou abreviar: o dilema do autor na esteira das odisseias de Aquiles e Ulisses

 

Postpone or abbreviate: the author's dilemma in the wake of the Achilles and Odysseus odyssey

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) / mr.junqueira@uol.com.br

 

 


RESUMO

Valendo-se do dilema de todo Autor de abreviar ou adiar uma ação ou publicação, o autor aproveita sua odisseia pessoal de incorporação da Ilíada e da Odisseia, para rastrear as trajetórias heroicas de seus dois personagens principais.

Palavras-chave: autoria, odisseia, Ilíada, Odisseia, Aquiles, Ulisses


ABSTRACT

Taking advantage of every Author dilemma to abridge or to postpone an action or public-action, the author uses his personal odyssey towards incorporating the Iliad and the Odyssey, to track the heroic path both the main characters of them.

Keywords: authorship, odyssey, Iliad, Odyssey, Achilles, Ulysses


 

 

Se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber

Tem todo tempo Ítaca na mente. Estás predestinado a ali chegar. Mas não apresses a viagem nunca

Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

"Ítaca" (kaváfis, 1911/2014).

 

 

A questão homérica

A Ilíada e a Odisseia, poemas fundadores da literatura ocidental, permanecem com sua autoria esfumaçada na neblina dos tempos, malgrado o nome Homero ter se consagrado como o de um poeta que teria se inspirado na Guerra de Troia para compor os enredos que os sustentam. Segundo a estimativa de Heródoto, tanto Homero como Hesíodo poderiam ter vivido ao redor de 850 a.C., época em que a escrita micênica que desaparecera no século XI a.C. ainda não conseguira ressurgir. Como a Guerra de Troia teria se dado no século XII a.C. restaria ao suposto Homero ter sido um aedo, um narrador dos acontecimentos míticos de deuses e heróis através da palavra recitada ou cantada.

Como no caso dos textos bíblicos, muito se discute sobre esses poemas não passarem de assemblages de episódios míticos, religiosos ou mesmo folclóricos, que ao longo do tempo foram se modificando com acréscimos ou interpolações. Contrapondo-se a isto, os estudiosos invocam a harmonia unitária dos versos he-xâmetros como argumento de uma autoria unificada.

Admite-se que os poetas arcaicos invocavam o auxílio das Musas, as filhas de Mnemósine, a Memória.

Elas sabem o que irá acontecer tão exatamente como sabem o que acontece aqui e agora, ou aconteceu um século antes. Possuem a memória do futuro. O verdadeiro é apenas o que não está oculto, o que não é velado pelo esquecimento e pelo sono. Por isso as Musas, segundo Hesíodo, dizem "o que é, o que será, o que foi".

(Citati, 2005, p. 42)

Encontramos aqui a provável inspiração que levou Bion a nomear seu "romance-onírico" Uma memória do futuro.

Neste artigo, gostaria de propor uma interessante "questão homérica", que chamou minha atenção após a leitura cuidadosa que fiz de uma nova tradução de ambos os poemas na sequência habitual (Homero, 2014; 2018): na Ufada a ação está sempre buscando o desenlace rápido, enquanto na Odisseia os episódios vão se prolongando ciclicamente, deixando a impressão de serem variações do mesmo tema, a sobrevivência do herói que luta para retornar às suas origens. Relendo o famoso artigo de Auerbach (1987) sobre a cicatriz de Ulisses, constatei que em 1797 Goethe e Schiller já se tinham correspondido sobre o contraste na poesia homérica, entre um "elemento retardador" (constitutivo do épico) e um "princípio de tensão" (característico do trágico).

O próprio Auerbach, fiel a seu propósito de fundir com rigor e sem reducionismos análise literária e ponto de vista histórico-sociológico, sugere que o impulso fundamental do estilo homérico era representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, definindo suas relações espaciais e temporais. Em termos psicológicos, mesmo nos momentos de paixão, os personagens de Homero revelam seu interior no seu discurso: o que não dizem aos outros, falam para si intensamente, mas sem eliminar os instrumentos de articulação lógica da língua (1987, p. 4).

 

O dilema da autoria

Logo ao nascermos, nós, humanos, somos confrontados com a necessidade de criar interpretações a respeito das diferentes funções corporais, obrigando-nos a vivenciar a questão da autoria: enquanto estivermos vivos, esse processo nunca termina. Diante de um problema desconhecido, somos engolfados pelo dilema: enfrentar ou fugir, varrê-lo de nossa frente ou empurrá-lo com a barriga. Desde Heráclito de Éfeso, porém, o homem não escapa desta sentença "oracular": "Èthos anthrópoi daímon", ou seja, "O caráter do homem é seu destino", ou mesmo, a natureza da potência divina (o daímon) condiciona seu caráter (Franciscato, 2019, p. 15).

Às vezes, no entanto, a realidade nos oferece oportunidades atraentes, a possibilidade de exercitarmos nossas ambições, de aprimorarmos nossas preferências, de desenvolvermos nossa criatividade, de imprimirmos despretensiosamente, enfim, nossa marca registrada. Foi o que me trouxe até aqui, em função do simpático convite que me fizeram os editores da Ide para que eu me integrasse à proposta da gestão que se inicia, inspirada na elaboração de construtos evocativos de processos odisseicos, ou seja, que pudessem ser adjetivados, segundo as pegadas dos famosos poemas homéricos.

Isso me obrigou a uma pequena introspecção autobiográfica. Hoje, constato que tive o privilégio de nascer entre livros, ou melhor, circundado pela aura de informação, curiosidade, investigação e sabedoria que os livros nos propiciam, desde que respeitemos uma importante ressalva que os anglófonos rotulam de "conhecimento by the book". De fato, os livros não se prestam a ser decorados, plagiados ou canonizados, isto seria perverter a autoria da public-ação, o gesto generoso de um autor que visa compartilhar intuições, previsões e formulações originais com seus pares ou com a sociedade em geral.

Do lado paterno, tive um pai cientista aberto e militante para a cultura geral, enquanto, do lado materno, tive um avô desembargador, um grande jurista, possuidor de uma biblioteca imensa, onde podíamos encontrar desde a centenária coleção completa do Corpus Juris Civilis até um exemplar iluminado do Livro de horas de Ana de Bretanha. Olhando-os sob o crivo acima mencionado, poder--se-ia dizer que meu avô, apesar de extremamente austero e comedido, seria, funcionalmente, um trágico, pois terminou a vida elaborando pareceres que, em última análise, contribuíam para condenações ou absolvições; já meu pai, apesar de disparar por vezes críticas ferinas, passou a vida grudado em microscópios, tentando desvendar pari passu o microengenho celular e tecidual, tarefa que por suas dimensões infinitas configura-se como épica. Curiosamente, meu avô, como fiel bibliófilo, não se deixou seduzir pelo impulso da escrita pessoal, tendo publicado tão somente uma compilação de suas conferências sob o título modesto de Dispersos recolhidos, enquanto meu pai foi autor de um compêndio de Histologia básica de alcance global, por já estar traduzido em 17 línguas e adotado em centenas de faculdades ligadas à saúde ao redor do mundo.

Apesar de seus ciúmes pelos "amores de sua vida", meu avô deve ter notado meu encantamento pelos livros, franqueando-me livre circulação por suas estantes, desde que observando dois princípios sagrados: nunca escrever nas páginas e jamais virá-las com a ajuda de saliva. Reconheço agora que eu frequentava aqueles espaços com a solenidade dos visitantes de templos religiosos, permitindo-me manipular aqueles seres encadernados com capas artisticamente decoradas e autenticados com o ex-líbris de meu avô (espécie de selos que se imprimiam a livros, indicando seu pertencimento a uma biblioteca particular). Talvez eu me sentisse tão siderado por aquelas preciosidades, que não tenho lembrança de ter lido qualquer um daqueles livros, guardando-os eventualmente para uma data futura, onde estivesse mais maduro para sorvê-los: quem sabe aí eu estaria iniciando minha carreira de postergador?

Algumas raridades daquele acervo caíram em minhas mãos, permitindo-me, no devido momento, uma leitura aprofundada. A primeira delas foi o Paraíso perdido, poema heroico de J. Milton: traduzido em vulgar pelo padre José Amaro da Silva, Presbytero Vimaranense- Lisboa, Typographia Rollandiana, 1830 (Com Licença da Meza do Desembargo do Paço). A última, que estava adormecida em minha estante há cerca de 30 anos, foi O decamerão de Giovanni Boccaccio -Tradução de Raul de Polillo, Introdução de Eduardo Bizzarri, com 101 ilustrações a cores de Gino Boccasile. Edições de Arte da Livraria Martins, Editora São Paulo, 1956. Três volumes de 32 x 24 cm, ricamente encadernados em couro de tom vinho, ostentando no centro uma efígie em relevo do poeta com a mão esquerda apontando seu livro apoiado no colo, e com o título em dourado.

Minha primeira incursão nos poemas homéricos, no entanto, ocorreu há mais de três décadas, por minha própria conta e risco, já que minha ignorância foi compatibilizada com uma edição de bolso da Ilíada, traduzida do francês por uma obscura Publicações Europa-América de Portugal. Dela a única lembrança que ficou foi uma tediosa lista de guerreiros gregos e troianos, que logo em seguida morriam afogados num mar de sangue: frustrado e decepcionado abandonei o livro à sua momentânea insignificância (nem data ele portava), na expectativa de resgatá-lo desse limbo em alguma oportunidade futura. Esta ocorreu providencialmente em 2014, com o magnífico lançamento dos poemas homéricos pela Cosac Naify, com introdução e tradução de Christian Werner e colagens de Odires Mlászho.

Com o advento da pandemia, pude resgatar de minha biblioteca várias obras que aguardavam sua vez, a começar pelo Decameron (o primeiro romance "pandémico") e depois várias obras-primas, como os dois poemas homéricos.

1. A Ilíada

Meu retorno a Ítaca foi meu retorno à Ilíada, com foco em Aquiles, seu personagem principal, o qual, até mesmo para alguns, denominava sua forma original pelo epíteto de Achilleia. A história de Aquiles começa com o recuo tanto de Poseidon quanto de Zeus para desposarem Tétis, já que Témis profetizara que o filho aí gerado seria "um ser prodigioso com quem a luta é árdua, inventor de um fogo mais potente do que o raio, possuidor de um vozeirão formidável e capaz de abafar o trovão" (Citati, 2005 e ss.). Por isso, Tétis desposou Peleu, um homem comum, mas não desistiu de converter Aquiles num deus como ela: para tanto, de dia untava-o de ambrosia e à noite mergulhava o filho no fogo, devido a seu poder de regeneração e imortalização. O fracasso desse plano transformou Aquiles num deus falhado, lançando uma sombra de melancolia sobre sua figura heroica.

Homero, porém, atribuiu-lhe uma característica divina, a sua mênis, caracterizada por ira, ódio, furor e vingança: isto, por um lado, o credencia como uma extensão do divino, mas, por outro lado, recai sobre ele como uma culpa sinistra, que pode desgraçá-lo por rejeitar as obrigações, as necessidades e os vínculos da condição humana, por levar ao extremo da tragédia os sentimentos, as ideias e as intuições - por desejar o infinito inacessível ao humano. Os outros heróis da Ilíada, como Agamenon, Ajax, Diomedes e Heitor, não partilham da ira de Aquiles, mas são vítimas da mania, a loucura guerreira que faz jorrar fogo e luz, mas que acaba cegando - com a proteção de Hermes, Ulisses foi o único a escapar dessa maldição.

Isso nos remete às influências do èthos e do daímon. Dodds, em seu estudo seminal sobre a irracionalidade dos gregos, sugere que todas as intervenções divinas em Homero causadoras de ate (fascinação ou paixão) deveriam ser classificadas de "intervenções psíquicas", subtendendo, portanto, uma maior importância do caráter (1951/1997, p. 5).

A trama central da Ilíada surge com a indignação de Aquiles com Agamenon, o chefe supremo dos gregos, que, de forma autoritária, confisca de seu principal herói a escrava Briseida, que ele recebera como prêmio numa batalha. Esse ato foi recebido pelo orgulhoso Aquiles não como vergonha pública, mas como a cons-purcação de sua honra e de sua glória, suas razões de ser e de viver. Por ela, ele está disposto a sacrificar tudo, sua família, sua pátria, seu querido amigo Pátroclo; sua revolta, no entanto, degrada-se ao recolher-se ofendido à sua tenda recusando-se a continuar combatendo os troianos, malgrado as inúmeras riquezas compensatórias que Agamenon lhe oferecera. Esse ressentimento infantil constrange seus companheiros e amigos, a começar por Pátroclo, sua alma gêmea, por quem nutre uma paixão absoluta e que, no auge de sua birra, lhe passa uma descompostura:

Tu, Aquiles, és impossível! Que não me pegue raiva tal como a que guardas. Desexcelente, como alguém se valerá de ti, até um póstero, se não defenderes os argivos do ultrajante flagelo? Impiedoso! Teu pai, claro, não era o cavaleiro Peleu, nem Tétis, tua mãe: o mar azul te gerou e as rochas alcantiladas, pois tua mente é intratável. (Homero, 2018, Canto 16, p. 452)

Simone Weil (1909-1943), ferida na luta contra o franquismo e horrorizada com a guerra orquestrada pelo nazismo, produziu um pungente ensaio, mostrando como, ao cantar a violência da guerra, Homero nos ensinou como ela transforma em coisa aquele homem que continua vivo. Os gregos, segundo ela, aprenderam que a geometria da virtude que engendra o cultivo do mètron, que é a base da Nêmesis, deve sobrepor-se à geometria do inanimado que consubstancia o abuso da força. Mas, como a alma humana é contraditória, sua subordinação à força gera uma "amargura justa", isentando todo aquele que a ela sucumbe de ser desprezado. Aliás, na Ilíada, o único que parece escapar desse excesso é exatamente Pátroclo, que "soube ser doce para com todos", não cometendo nada de brutal ou cruel (Weil, 1940/2018, pp. 115-144).

Aproveitando-se da ausência de Aquiles, Apolo-lança-de longe envenena Zeus para desviar o fiel da balança a favor dos troianos, que, naquele momento, observavam a luta de Heitor contra Ajax, um dos "reservas" de Aquiles. Este, apoiado numa dose de cinismo, oferece a Pátroclo seus apetrechos de guerra num gesto de aparente solidariedade:

Apressa-te, oriundo-de-Zeus, Pátroclo guia-cavalo; já vejo, junto às naus, a carga de fogo queimador. Que não tornem as naus, e não haja mais como fugir; veste as armas, bem rápido, e eu reunirei a tropa. (Homero, 2018, Canto 16, p. 455)

Pátroclo ataviou-se com os apetrechos de Aquiles, com exceção, porém, do mais importante:

Só não tomou a lança do impecável Eácida, pesada,
grande, robusta: aqueu algum a conseguiria brandir,
e só Aquiles sabia pelejar com ela. (Homero, 2018, Canto 16, pp. 455-456)

Nessa altura, a postura de Aquiles já sugere que Pátroclo não está sendo enviado para substituí-lo, mas sim para morrer em seu lugar de forma ingenuamente desavisada, como vemos nesta exortação a seus companheiros:

Mirmidões, companheiros do Pelida Aquiles,
sede varões amigos, e mentalizai bravura impetuosa
para honrarmos o Pelida, que é, de longe, o melhor
junto às naus argivas, e melhores, seus combativos assistentes;
também o Atrida, Agamenon extenso-poder, reconheça seu
Desatino, pois não honrou o melhor dos aqueus. (Homero, 2018, Canto 16, p. 460)

O próprio Heitor, ao matar Pátroclo, denuncia sua ingenuidade:

Pátroclo coitado! … Aquiles, mesmo sendo nobre, não te protegeu,
ele que, aguardando, talvez tenha insistido contigo: "Pátroclo guiacavalo,
não me voltes antes que a túnica sangrante do homicida
Heitor rasgares em volta do peito". (Homero, 2018, Canto 16, p. 479)

Ao ser informado da morte de Pátroclo por Antíloco e do confisco de suas armas por Heitor, Aquiles emitiu um grito lancinante que chegou aos ouvidos de Tétis, a deusa, sua mãe, que morava no fundo do mar: esta incontinente dirigiu-se para consolar o filho, não sem antes lamentar-se interiormente: "Ai de mim, coitada, desmãe do melhor, eu mesma o enviei para pelejar com os troianos, mas, agora, sou incapaz de protegê-lo". Ao saber que o filho jurava vingança, matando Heitor, mais ela se angustiou por saber que os Deuses haviam determinado que, morto Heitor, Aquiles estaria condenado. Diante dessa moira fatal, Aquiles queixou-se com a mãe:

Que eu morra logo, pois acabei por não proteger o companheiro ao ser morto; bem longe da pátria pereceu, e faltei-lhe como defensor contra o mal. Agora, como não devo retornar à cara pátria nem me tornar a luz para Pátroclo e os companheiros restantes, os muitos subjugados pelo divino Heitor, estou sentado junto às naus, peso vão para a terra. (Homero, 2018, Canto 18, p. 514

Essa autocrítica de Aquiles nos soa ambígua, já que não podemos afirmar se estava realmente sentindo-se culpado, ou meramente entregando-se à consagração gloriosa de morrer lutando, como fora preconizado pelos deuses.

O fato é que vários companheiros ilustres, como o venerável Nestor, tentaram argumentar com Agamenon e Aquiles para superarem seus ressentimentos em prol do bem comum, mas esbarraram sempre na intolerância do maior de seus guerreiros - Nestor, então, organizou uma embaixada de notáveis, dentre os quais se destacavam Fênix, Ajax e Ulisses, no sentido de "ressuscitarem" Aquiles para a luta.

O primeiro apelo foi de Ulisses:

Salve, Aquiles, ... vendo desgraças grandes demais, temos medo: há dúvida se serão salvas ou destruídas nossas naus bom-convés, caso não vestires tua bravura. ... Heitor, exultante demais com sua força, endoida terrivelmente, brutal loucura entrou nele. .

Teu próprio pai Peleu te alertou no dia em que te enviou a Agamenon: "Filho meu, Atena e Hera darão força, se quiserem, mas contém em teu peito o enérgico ânimo: amizade é melhor". (Homero, 2018, Canto 9, pp. 278-279)

Mas a resposta de Aquiles encerrava um poço de ressentimento pela traição que sofrera:

Diz a ele (Agamenon) às claras, tudo como estabeleci, para também os outros aqueus se descontentarem, no caso de ele ainda esperar ludibriar algum aqueu, sempre recoberto de imprudência; a mim, pelo menos, ele, embora canalha, não ousaria olhar de frente. De modo algum elaborarei planos com ele, nem ações; a mim ludibriou e lesou: agora nunca mais me enganará com palavras.

Chega! Em paz, porém, se anime, pois o astuto Zeus tirou-lhe o bom juízo. (Homero, 2018, Canto 9, p. 283)

Aliás, a rigor, a rispidez da resposta visava também atingir o mensageiro desta, ou seja, a Ulisses com quem ele competia e cuja sagacidade ele tinha que admirar como explicitado nesta admoestação que lhe fora dirigida pelo rival:

Aquiles, filho de Peleu, de longe o melhor dos aqueus, és mais forte que eu e melhor não por pouco na lança, mas eu te supero no pensamento em muito, pois nasci antes e sei mais coisas: que teu coração suporte meu discurso.

(Homero, 2018, Canto 19, p. 542)

Em resumo, ao final, Aquiles não consegue resistir às pressões, recebe novas armas que lhe foram encomendadas pela mãe a Hephaestus e volta a combater ainda cheio de ódio de Agamenon, mas também para vingar a morte de Pátroclo; por outro lado, este retorno teve a finalidade estratégica de livrá-lo da hamartia, a transgressão de não cumprir o destino de ter sua morte abreviada após matar Heitor. Tudo indica que o veneno belicoso que lhe fora inoculado por Ares, o deus da Guerra, só amainou após o episódio belíssimo em que Príamo, rei de Troia, o visitou em sua tenda para solicitar humildemente a liberação do cadáver de Heitor para sepultá-lo condignamente:

Não viram o alto Príamo entrar; forte postou-se, pegou os joelhos de Aquiles e beijou suas mãos terríveis, homicidas, que mataram muitos filhos seus. ... Respeita os deuses, Aquiles, e te apiede de mim mentalizando teu pai: mereço ainda mais piedade, pois isto nunca outro mortal sobre a terra ousou, levar à boca as mãos do assassino do filho. (Homero, 2018, Canto 24, pp. 667-668)

Aquiles não resistiu a esse gesto apoteótico descrito por Homero, o único beijo presente em ambos os poemas, e apiedou-se do ancião suplicante:

Coitado, muitos males aguentaste em teu ânimo. Como ousaste vir sozinho ao acampamento aqueu, para buscar os olhos do varão que muitos e valorosos filhos teus matou?

Pois senta na poltrona e, apesar de tudo, as aflições deixemos descansar no ânimo, embora angustiados. (Homero, 2018, Canto 24, p. 668)

Foi assim que o irascível Aquiles se sentiu atingido não pela seta mortífera de Paris, que, segundo a lenda, buscou o vulnerável "calcanhar de Aquiles", mas sim pelo beijo redentor que chegou certeiro à sua mão, levando-o, até mesmo, a conceder todas as prerrogativas pedidas por Príamo para o enterro solene de seu querido Heitor.

2. A Odisseia

Do varão me narra, Musa, do muitas-vias, que muito vagou após devastar a sacra cidade de Troia. De muitos homens viu urbes e a mente conheceu, e muitas aflições sofreu ele no mar, em seu ânimo, tentando garantir sua vida e o retorno dos companheiros. (Homero, 2014, Canto 1, p. 123)

Já na primeira estrofe da Odisseia, deparamos com a expressão poly tropos, aqui traduzida como "muitas-vias", mas comportando ser também "mil-ardis", "muitas-formas" etc. Este é o personagem, Odisseu ("homem-das-dores ou homem--problema") ou Ulisses, que a Musa é invocada para nos apresentar, um exemplo acabado de trickster (ou "multitruques"), aquele personagem multicultural que é tanto vilão quanto herói civilizador, que é embusteiro, velhaco e cômico, destruidor e criativo, aquele espírito ousado que viola magicamente os tabus. Sua representação é ubíqua em várias tradições culturais, seja como Mercúrio (Roma), Hermes (grego), Exu (iorubá) Shiva (hindu).

Citati (2005, pp. 147-148, p. 154 e p. 159) nos descreve com maestria seu extraordinário poder metamórfico; possui uma mente sensível e resiliente, uma mente colorida, sabe ser outro como ninguém, compreende que o choro dos vencidos é o mesmo que o choro dos vencedores, tem um poder malicioso de persuasão, exprimindo verdades como mentiras e mentiras como verdades. Seu estilo de artesão escrupuloso revela-se até nas etapas de elaboração das mentiras: ordem, coerência, verossimilhança, analogia e construção. É um exímio "contador de causos" e um errante figadal ou até um "flâneur avant la lettre". A história de suas peregrinações pode ser vista como busca de autoconhecimento, que se completa com o retorno ao lar ou com o resgate de uma identidade por meio da reinserção num casamento de "homofrosine", o enlace de almas gêmeas (Williams, 2006, pp. 219-235).

Sua astúcia evoca o prestidigitador: no famoso episódio do Cavalo de Troia ele e os companheiros escondem-se no interior daquele "presente de grego"; ao escapar do gigante Polifemo, agarrando-se à barriga de uma ovelha, demonstra empiricamente que a sagacidade supera a força e, nos vários momentos em que se apresenta como mendigo, vai enganando aqueles que aguardam o seu retorno.

A Odisseia nos narra as peripécias de Ulisses, o qual, terminada a Guerra de Troia, engaja-se numa peregrinação centrifugas-centrípeta, ou seja, malgrado sua nostalgia de sua Ítaca natal, onde sua esposa Penélope, seu filho Telêmaco e seu pai Laertes o aguardam ansiosos, é levado pelas mãos dos deuses olímpicos a passar por uma série de provas perigosas, levando-o a se instituir como "o supras-sumo dos sobreviventes". O termo nost-algia tem sua raiz no grego nostos, cujo sentido genérico é "retorno", mas que, mais especificamente, tem a conotação de "voltar são e salvo para casa" ou "retornar da morte para a vida". Ao deixar Troia, Ulisses acompanha Nes-tor (aquele que traz para casa), mas desentende-se com ele, sendo lançado num jogo surrealista de retornos frustrados, só interrompido pela interferência benévola do rei "Alcí-noo" (aquele que traz para casa por meio de sua força).

O substantivo "odisseia" tem pelo menos três significados: 1) longa peram-bulação ou viagem marcada por aventuras, eventos imprevistos e singulares; 2) narração dessas viagens e 3) travessia ou investigação de caráter intelectual ou espiritual. A julgar pelo gênero da narrativa homérica, deduzimos que esses sentidos foram sendo transmitidos por uma sequência de dois episódios curtos seguidos por um longo. Por exemplo, os cicones e os lotófagos são descritos em menos de quarenta versos: o episódio dos ciclones, que vem em seguida, usa dez vezes mais versos. A dinâmica de abreviação ou adiamento está assim imiscuída no cerne da narrativa homérica, induzindo-nos a ampliar a investigação dos contrastes entre Aquiles e Ulisses, dois "autores" de dimensão mítica.

Comecemos comparando as constelações familiares. Aquiles, como já vimos, é fruto de um projeto abortado, não consta que tenha se casado, apesar de ter tido um filho, com a princesa Deidamia, de nome Neoptólemo, o qual só é lembrado por ter matado Príamo, rei de Troia, e o pequeno Astíanax, filho de Heitor e Andrômaca. Entre todos os heróis dos poemas, ele é o único que completa sua aristeia, a sequência de façanhas que completam sua fama (kleos) de aristos (o melhor de todos), garantindo assim a honra de sua linhagem à custa da própria vida: esse fim trágico, muitas vezes acaba por interromper abruptamente a própria linhagem.

A origem de Ulisses é mais modesta, apesar de descender de um deus menor, Hermes, pai de seu avô Autólico: talvez por isso, não precise arriscar sua vida para honrar sua herança, já que ela se encaixa epicamente na sucessão natural das folhas, como descrita poeticamente por Glauco:

Como a geração das folhas é também a de varões.
Folhas: a umas o vento joga no chão, a outras forma
o bosque em flor, e vem a estação da primavera:
tal é a geração de varões, uma se forma, a outra perece.
(Homero, 2018, Canto 6, p. 214)

No entanto, não podemos esquecer que toda a saga da Guerra de Troia pode ser considerada um exemplo mítico de catástrofes produzidas pela deterioração das relações entre anfitrião e hóspede. Páris, o jovem príncipe troiano, foi acolhido por Menelau em Esparta, mas acabou fugindo com Helena, a esposa deste. Ao deixar Troia, Ulisses imbui-se da necessidade moral de reequilibrar a intersecção dos níveis social e cósmico, além de fortalecer suas funções de rei, guerreiro, aristocrata, pai, marido, filho (Richard P. Martin, citado em Homero, 2014, pp. 49 e ss.) e, poder-se-ia acrescentar, servir de contraponto épico ao Aquiles trágico. Lastreando seu viver com sua arte, ele está sempre flertando com o risco, para vencê-lo no último momento.

Seu "profissionalismo" o esconde no cavalo de madeira, amarra-o ao mastro de uma nau para proteger-se do canto sedutor das Sereias, e o faz disfarçar-se de mendigo quando lhe interessa apresentar-se como Ninguém: estes artifícios seriam inimagináveis para Aquiles que, "amadoristicamente", iludia-se com o falso poder da espada.

Quando chega a Ítaca e procura o porqueiro Eumeu, disfarçado de mendigo, Ulisses se diverte contando estórias mirabolantes ou mesmo antecipando com escárnio o encontro que virá a ter no Hades com Aquiles, seu rival simbólico. Dez anos antes, Aquiles o desprezara sem nomeá-lo: "Como os portões do Hades, me é odioso aquele homem/que esconde uma coisa na mente, mas diz outra". Agora disfarçadamente mendigo, Ulisses jura que está prestes a regressar e parafraseia as palavras de Aquiles: "É-me odioso como os portões do Hades aquele homem/ que cedendo à pobreza conta estórias reinventadas". Ei-lo em seu auge, contando a verdade de seu regresso, disfarçado de mentira: seu Eu, agora, já não se satisfaz em ser um trickster sagaz e um tecelão de histórias, mas está focado em divulgar a verdade emocional como um bardo autêntico (Williams, 2006, p. 11).

Sabendo que o espectro de Tirésias está no Hades, Ulisses resolve visitá-lo para saber de suas profecias, mas acaba deparando com o espectro de sua mãe, além dos demais heróis gregos, incluindo Aquiles. Este, numa espécie de impaciência e enfado, fala das façanhas temerárias que o conduziram ao reino das sombras: Ulisses ainda sente no íntimo calafrios pela antiga submissão que o incomodava, mas suspeita que as circunstâncias mudaram radicalmente, que a morte anula qualquer poder, consolo, orgulho ou fama humanos. Aquiles, porém, ensaia zombar da morte negando o destino, levando Ulisses a provocar sua teimosia:

Não foi, nem será, nenhum homem mais bem-aventurado que tu, ó Aquiles.
Pois antes, quando eras vivo, nós Argivos te dávamos honras
iguais às dos Deuses, e agora reinas poderosamente sobre os mortos,
tendo vindo para aqui: não te lamentes por teres morrido, ó Aquiles.

Em sua réplica Aquiles deixa entrever que só à luz da vida a fama tem sentido:

Não tentes reconciliar-me com a morte, ó glorioso Ulisses.
Eu preferiria estar na terra, como servo de outro,
até de homem sem terra e sem grande sustento,
do que reinar sobre todos estes mortos. (Citati, 2005, p. 189)

Esse episódio nos evoca o "estranho encontro" no Inferno entre as almas de dois soldados inimigos da Primeira Guerra Mundial, descrito poeticamente por Wilfred Owen, e onde aquele que morreu fica conhecendo o inimigo desconhecido que o matou, saudando-o como se o destino os abençoasse como velhos amigos (Junqueira Filho, 2015, pp. 49-62).

O "estranho contraste" entre esses dois heróis situa-se no fato de que, enquanto Ulisses celebra a glória (kleos) do casamento com o lar (oikos), Aquiles está obcecado pela glória da batalha, cujo símbolo focal é o casamento com a morte heroica. Por outro lado, se privilegiarmos o vértice da "reciprocidade estética", diríamos com Williams (2006, p. 22) que, para reencontrar-se com Penélope, Ulisses buscou um símbolo que representasse o "casamento de mentes verdadeiras" shakespeariano, enquanto Aquiles, surpreendido pela presença suplicante de Príamo, não tinha como apoiar-se em nenhuma reciprocidade, soçobrando perplexo na torrente moral de um pai desolado. Ao final, porém, Ulisses e Aquiles se irmanam de forma trágica, através da lóke, a vingança cruel de uma ofensa inex-tirpável, o assassinato dos 108 pretendentes que assediaram Penélope, durante a ausência do marido, e o furor de Aquiles em relação a Agamenon, que se traduziu na morte de inúmeros conterrâneos: se ambos fossem submetidos a um juízo final, com certeza seriam condenados, a despeito de suas grandezas.

O naturalista aprendiz

Creio que, a rigor, essa é uma ótima expressão para designar o ser humano, desde que nos conscientizemos de que a nossa fonte inesgotável de aprendizado concentra-se nas lições que recebemos das dores que afligem o nosso íntimo, e que se sucedem com as mesmas oscilações dos fenômenos naturais. Como dizia Heráclito, a Natureza ama esconder-se:

ora contrai em abreviações aquilo que, desenvolvido com clareza, seria tão fácil compreender; ora protela com pausas intoleravelmente longas, alinhando períodos com uma grande caligrafia cursiva - revela o que escondera e esconde o que revelara. (Citati, 1996, p. 31)

Louvemos, portanto, a sensibilidade de Homero, que, ao descrever o reencontro de Ulisses com Laertes, mostra como o filho chora de raiva por não compreender que o pai se fechara em sua dor, levando a saudade dele até a degradação. "Uma nuvem negra de dor" envolve Laertes: curva-se e pega um punhado de terra misturado com cinza e deixa-o cair sobre a cabeça, gemendo e chorando. As manifestações de sua dor são as mesmas de Aquiles, quando morre Pátroclo: a dor de Laertes converte-se na dor suprema da epopeia homérica, no arquétipo de todas as dores possíveis. Só então, Ulisses confirma ser o filho, que ele tão ansiosamente esperava e, solicitado a apresentar provas deste fato, relembra ao pai o episódio marcante de sua infância, no qual ele "naturalisticamente", o levara ao pomar, ensinando-lhe amorosamente o nome de todas as árvores frutíferas (Citati, 2005, pp. 263-264). Neste belo exemplo, os frutos que se sucedem como as folhas, simbolizam a marca autoral de uma descendência estruturada pelo entrosamen-to de objetos internos geradores de significados que transcendem gerações, ou mesmo a própria cultura. Foi o que ocorreu com Homero, este autor profético, ou como preferiu Bion, esse mentiroso heroico que salvou Ulisses da escuridão eterna (1991, p. 130).

Eu mesmo cheguei à psicanálise guiado por minha dor psíquica e não por uma vocação médica, habilitando-me a desenvolver uma carreira cuja força motriz é muito mais desenvolvimentista do que curativa. Como lembrei no começo, o convívio regenerador com nossas dores é o elemento essencial para atingirmos a autoria da sabedoria pessoal: como afirmou Bion, no final de sua vida, não há substituto para o crescimento da sabedoria. Daí o seu desafio definitivo: "Sabedoria ou esquecimento: faça sua escolha, pois desta cruzada não escapamos" (Bion, 1991, p. 576).

 

Referências

Auerbach, E. (1987). Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Perspectiva.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991). A memoir of the future. Karnac.         [ Links ]

Citati, P. (1996). Goethe. Companhia das Letras.         [ Links ]

Citati, P. (2005). Ulisses e a Odisseia - A mente colorida. Cotovia.         [ Links ]

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