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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo Jan./June 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Embates*

 

Battles

 

 

Eva Maria Migliavacca

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) / evamigliavacca@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, pretendo examinar, ainda que parcialmente, dois tipos de embate que todo homem pode enfrentar, o épico e o trágico. Para tanto, extraio exemplos da épica homérica e da tragédia grega, mais especificamente do poema Ilíada e da peça Antígona. A seguir, faço uma reflexão a respeito de como esses dois embates se entrelaçam na dinâmica psíquica. A viagem de Ulisses ocupa o lugar de inspiração inicial e permeia todo o texto.

Palavras-chave: mito, épica homérica, tragédia grega, conflito


ABSTRACT

In the following article, I aim to examine, albeit partially, two types of battles that every man may face, the epic one and the tragic one. In order to do so, examples of the Homeric epics and the Greek tragedy are considered, more precisely, the Iliad and Antigone. Next, I reflect on how these two battles intertwine in the psychic dynamics. Ulysses' journey works as the inspiration starting point and permeates the entire narrative.

Keywords: Myth, Homeric epics, Greek tragedy, conflict


 

 

Peças como Antígona… As peças gregas, sabe, vale a pena ler. É como os clássicos, você conhece a obra de Tolstói e outros, depois que lê… essa literatura, você sempre sai… se sentindo mais elevado e sua sensibilidade com… os seres humanos se aprofunda. É uma das maiores experiências que se pode ter, ler uma tragédia grega e a literatura grega em geral.

Nelson Mandela

O mito é algo eterno, reflete a consciência primitiva e, em certos níveis, permanece para sempre, sobretudo na consciência popular, de massa, porque garante a longo prazo a harmonização das relações entre os homens e aquilo que os rodeia. A ciência não pode responder a esse problema. Há problemas eternos, do sentido da vida, da finalidade da história, do mistério do amor. O mito – não a ciência – responde a essas questões.

Eleazar Meletínski

Ulisses, ou Odisseu, é um personagem que luta numa guerra durante 10 anos e demora outros 10 para voltar para casa. Nessa odisseia de vinte anos, encontra diversos personagens e passa por várias situações de perigo diante das quais põe em ação sua inventividade, capacidade persuasiva, recursos de improvisação e habilidades de toda ordem. Ulisses quer sobreviver até chegar a seu reino, sua casa, sua esposa e filho. Ao fim, ele assume sua responsabilidade de homem adulto. Homero conta essa saga no poema épico Odisseia, composto há quase três milênios e até hoje inspirador.

Ulisses é Ulisses, mas também serve como modelo do longo e difícil processo necessário para se chegar à maturidade na vida. Há variações e diferentes pontos de ancoragem desse processo. Exemplos podem ser encontrados em profusão tanto na épica homérica quanto nas tragédias gregas. Pretendo, neste trabalho, extrair trechos de ambos. O objetivo é examinar, ainda que parcialmente, dois tipos de embate que todo homem pode enfrentar, o épico e o trágico, e como eles se entrelaçam. Parcialmente, porque é impossível contemplar em poucas linhas ou páginas a complexidade do tema.

A mitologia grega é bastante familiar no mundo ocidental. Como diz Blundell, os mitos representam um elemento de continuidade reconhecido na vida grega por séculos e milênios desde sua origem (1995). Não se circunscrevem, porém, em momentos históricos fechados, até por sua qualidade de ser "mito", e não "história". É deles também que nasce a psicanálise, pois foi numa tragédia grega que Freud se inspirou para elaborar um conceito psicanalítico seminal. No entanto, atualmente não são raras as seguintes perguntas: Para que servem os mitos na psicanálise? Que utilidade têm para a clínica? Como você usa os mitos na clínica?

Mito é uma palavra que tem sido usada de maneiras equivocadas e até espúrias ao longo do tempo e, recentemente, também em nosso meio. Em síntese, mitos falam das relações dos homens com os deuses, por vezes tão próximas, que chegam ao relacionamento sexual, sempre fecundo. Apresentam heróis em situações extremas, envolvidos numa grande causa, na qual, em geral, obtêm sucesso, ainda que a um alto custo; provêem explicações ao homem a respeito de como funciona o mundo em que estão inseridos e como eles mesmos lidam com esse mundo. Basicamente, mito é definido como uma narrativa falada com função explicativa. No entanto, e apesar dessa definição semanticamente compreensível de imediato, como ele se constitui? Na verdade, o mito nasce de uma experiência do homem no mundo. Ele não a compreende, não a controla, não tem ingerência sobre esta, vê-se lançado num universo que o amedronta e reforça o sentimento de desamparo; busca uma explicação para tornar aquele acontecimento compreensível e passível de influência.

Ali no escuro e o desconhecido há um deus que responde. Às vezes, um deus irado. Por exemplo, quando há uma peste. De onde vem? Por que veio? O que fazer para debelá-la? Oráculos a interpretam como resultante da fúria de um deus que, ofendido em suas prerrogativas, castiga os homens. Esse mesmo deus precisa ser aplacado, pois, assim como ele preside a doença, também preside a cura. De fato, é o que acontece: por meio também de uma orientação oracular, fazem uma reparação, e o deus, satisfeito, extingue o flagelo.

Como os homens daqueles longínquos tempos preservaram tais experiências? Eles construíram narrativas. Por exemplo, contaram que um exército acampado às portas de uma cidade que sitiava, fora acometido pela peste. Contaram essa história por muito tempo, preservando-a por séculos pela memória e mantendo viva a crença no deus Apolo e em sua ação ao mesmo tempo maléfica e benéfica para os homens. Um poderoso deus a ser cultuado e agraciado, evitando assim que se desencadeasse sua ira.

Essa e outras narrativas da tradição grega foram organizadas em poemas épicos, muitos deles perdidos.1 Restaram a Ilíada, que se inicia com a peste contada acima, e a Odisseia, ambos de Homero. Suas peripécias eram cantadas e narradas pelo povo. A certo momento da história foram registradas pela escrita, tornando-se, então, literatura. Perdeu-se definitivamente a vida do mito - que é palavra falada -, mas ganharam-se textos de poesia imorredoura, cuja radiancia alcança nossa época.

A Ilíada, "poema de uma beleza monumental" (Alexander, 2009, p. ix) e também o mais antigo texto literário europeu, tem sido tema de incontáveis estudos, livros, artigos, seminários, comentários, obras de arte, filmes e pesquisas -e está longe de ser esgotado. Estimula reflexões e muito ensina a respeito da condição humana.

Em síntese, do que trata a Ilíada? Seu tema central concentra-se no último ano da Guerra de Troia, que opôs guerreiros vindos em sua maioria da região de Acaia, os aqueus - que conhecemos como gregos -, e os troianos, numa disputa de 10 anos iniciada com o rapto de Helena por parte do troiano Páris. O foco do poema é a ira do maior guerreiro aqueu, Aquiles, que se retira das batalhas por ter sido ofendido. Nesse ambiente de lutas contínuas, Homero apresenta grande número de personagens envolvidos não só em lutas, mas também com seus temores, anseios, conflitos com o grupo e consigo mesmos, com suas paixões, senso de dever, necessidade de mostrar coragem e bravura. Mais, por parte dos aqueus, há um imenso desejo de voltar para suas terras, enquanto os troianos lutam para defender suas casas e famílias, pois a guerra desdobra-se na planície diante das muralhas de Troia. Os maiores personagens da Ilíada são Aquiles e Heitor, aqueu e troiano. Aquiles é gigantesco, e sempre há o que dizer e melhorar o que já se disse, como já o fiz mais de uma vez.2

 

Heitor

O comando maior da cidade e do exército troiano está nas mãos de Heitor, filho do rei Príamo. Mesmo estando nessa posição proeminente, ele prefere a paz e a vida doméstica aos trabalhos da guerra. No entanto, precisou aprender a ser bravo e a preparar-se para aquele lugar, como ele mesmo diz. Heitor é forte, corajoso, não se furta ao dever e assume seu posto como bastião de Troia sem titubear. Está sempre à frente nas lutas, como exemplo para seus comandados. É o que se espera dele. A cidade se apoia em sua liderança. Também é amoroso com a esposa, Andrômaca, e o filhinho - com os quais vive uma cena plena de afeto -, assim como com as lágrimas de sua mãe, Hécuba, e as súplicas do pai, Príamo, mesmo sabendo que não os poderá atender. É amistoso com Helena, cuja fuga para Troia desencadeou a desgraça sobre a cidade.

Ele enfrenta o que precisa ser enfrentado. Ao mesmo tempo, deixa-se levar por momentos de soberba, comete erros de julgamento, decide por movimentos que trazem más consequências. Em situações de perigo extremo, sente medo, foge -algo impensável para Aquiles, seu principal oponente e muito diferente dele.

Ao longo do poema, pode-se conhecer mais nitidamente Heitor, que se revela no contato com personagens secundários. Em tramas literárias esses personagens têm presença e atuação por vezes significativas. Sua ação pode interferir de modo visível naquilo que se passa,3 mas, em geral, contribuem tão somente para evidenciar disposições momentâneas daqueles que decidem o rumo das coisas. Com isso, o desenho, digamos, psicológico dos personagens principais fica mais claro.

Na Ilíada, um dos mais simpáticos na segunda linha é Polidamante.

A luta é intensa no campo de Troia. Como relata o início do poema, Aquiles se retirou da guerra, por ter sofrido uma ofensa inaceitável por parte do comandante maior. O exército aqueu está desfalcado de seu melhor guerreiro; luta bravamente, mas perde terreno. Sob o comando tenaz de Heitor, os troianos obtêm sucessivas vantagens e se aproximam do acampamento aqueu. A certo ponto os troianos avançam a cavalo, ansiosos para queimar os navios do inimigo, que estão protegidos por um muro e um fosso. Polidamante percebe que a estratégia afoita de Heitor não terá sucesso e aconselha:

Heitor e vós, demais comandantes dos Troianos!
Insensatamente tentamos conduzir os céleres corcéis através da vala.
Na verdade, é muito difícil atravessar, pois nela estão espetadas
estacas afiadas; e perto delas está a muralha dos Aqueus.
Aos cavaleiros não é possível desmontar nem combater,
pois o espaço é exíguo e penso que sofreremos danos.
Se de todo está disposto a desbaratar estes em malevolência
Zeus que troveja nas alturas e prestar auxílio aos Troianos,
então quereria eu que tal acontecesse rapidamente:
que anônimos aqui perecessem os Aqueus, longe de Argos.
Mas, se eles se virarem contra nós e acontecer uma retirada
das naus que nos force para dentro da vala escavada,
não penso que algum de nós regresse à cidade
como mensageiro, recobrados os Aqueus.
Mas agora façamos como eu digo e obedeçamos todos:
que os escudeiros retenham os cavalos junto da vala
e que nós avancemos a pé, revestidos das armaduras,
e que todos juntos sigamos Heitor. Pois os Aqueus
não resistirão, se sobre eles forem atados os nós do morticínio.

(Homero, 2013a, Canto XII, VV. 61-79)

Heitor teria se dado conta do perigo? Teria percebido por si a estratégia imprudente? Homero diz apenas que ele concorda e conduz a luta conforme o conselho de seu subordinado. Então, os troianos arremetem com sucesso e se aproximam perigosamente dos navios, apesar da defesa dos inimigos. Heitor e Polidamante vão à frente, seguidos por "valentes e numerosos mancebos, desejosos de passar a muralha e deitar fogo às naus".

A batalha recrudesce. No momento definitivo de travessia do fosso, surge nos céus uma águia levando no bico monstruosa cobra vermelha, que continua a lutar e morde o pescoço da águia, a qual, com a dor, solta a cobra e voa para longe. Os troianos, sempre atentos aos sinais divinos, estacam. Polidamante interpreta esse sinal como um mau augúrio enviado por Zeus e fala com Heitor de modo mais cauteloso:

 

 

Heitor, sempre me repreendes nas assembleias,
embora eu diga coisas justas, visto que não fica bem
que alguém do povo te contradiga, seja na deliberação,
ou na guerra, pois deves sempre aumentar teu poder.
Mesmo assim, agora direi aquilo que me parece melhor.
Não avancemos para combater os Dânaos junto das naus.
Pois é isto que, segundo penso, irá se passar, se for verdadeiro
o portento da ave que sobreveio aos Troianos ávidos de avançar:
uma águia de voo sublime sobrevoando a hoste pela esquerda,
que nas garras levava uma monstruosa cobra vermelha,
ainda viva; mas deixou-a cair antes de chegar ao ninho,
nem acabou de a levar para a dar de comer às suas crias.
Do mesmo modo nós, ainda que com grande força demos
cabo dos portões e da muralha dos Aqueus e eles cedam,
com desordem regressaremos das naus pelos mesmos caminhos.
Muitos Troianos lá deixaremos, a quem os Aqueus
matarão com o bronze em defesa de suas naus.

(Homero, 2013a, Canto XII, VV. 211-229)

O ardente Heitor se enraivece. Olha Polidamante com expressão sombria e responde asperamente:

Polidamante, isso que tu dizes já não me agrada:
sabes conceber outro discurso melhor do que esse!
Mas, se na verdade foi a sério aquilo que tu disseste, então
não há dúvida de que os deuses te deram cabo da mente.
Tu me dizes para esquecer de Zeus tonitruante
os conselhos que ele próprio me deu e a que inclinou a cabeça!
Tu dizes-me para obedecer a aves de longas asas,
a que não volto o rosto nem dou importância,
quer voem para a direita, para a Aurora e o sol,
quer voem para a esquerda, para a escuridão sombria.
Obedeçamos antes à deliberação do grande Zeus,
ele que rege todos os mortais e imortais.
Há um portento que é o melhor: combater pela pátria.
Por que razão tu receias a batalha e a refrega?
Pois, se nós, os outros, formos todos mortos
nas naus dos argivos, não corres o risco de morrer,
já que o teu coração não é belicoso nem firme na luta.
Mas, se te afastares da luta, ou se com palavras
convenceres outro a desistir do combate,
logo golpeado pela minha lança perderás a tua vida.

(Homero, 2013a, Canto XII, 231-250).

De imediato, a prudência de Polidamante chama a atenção, pois ele é "alguém do povo", e ousa dar ao maior príncipe da cidade um conselho que contraria a vontade deste. Sintético, o poeta consegue nos fazer conceber um subordinado aos reis, que dá a si mesmo o direito de ter voz própria. Ele não se inibe diante de seu comandante. Apesar da deferência respeitosa com que fala, diz o que pensa, mesmo com o risco de desagradar. São aspectos de sua pessoa que o revelam nos poucos versos que o poeta põe em sua boca. Além disso, Heitor é injusto, pois Polidamante está longe de ser covarde. Há várias cenas ao longo do poema em que ele aparece e luta com bravura, obtendo muitas vitórias.

Heitor avança com ímpeto e é seguido pelos soldados com grande alarido. A batalha avança noite adentro e se desenrola por dois Cantos seguidos, ora com a vitória de uns ora de outros. O morticínio é devastador, de parte a parte. Heitor de fato se aproxima e chega a atear fogo a um navio; no entanto, não atinge seu objetivo final. Os aqueus reagem com vigor e chegam a encurralar os troianos entre dois fogos.

Então, Polidamante novamente interfere, naquela que talvez seja sua mais bela fala:

Heitor, muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhos!
Porque o deus te concedeu preeminência nas façanhas guerreiras,
também por isso queres estar acima de todos no conselho;
só que tu próprio não serás capaz de abarcar todas as coisas.
É que a um homem dá o deus façanhas guerreiras,
a outro a dança e a outro ainda a lira e o canto;
e no peito de outro coloca Zeus, que vê ao longe,
uma mente excelente, de que muitos homens tiram vantagem:
a muitos ele consegue salvar, coisa que sabe mais que todos.
Por toda parte está em chamas a coroa da guerra.
Os magnânimos Troianos, agora que escalaram o muro, estão
alguns deles afastados com as armas, enquanto outros combatem
em número reduzido contra muitos, espalhados pelas naus.
Retrocede um pouco e chama para cá os mais valentes.
Depois consideraremos bem toda a forma de conselho,
se cairemos sobre as naus bem providas de bancos,
se o deus nos quiser outorgar a força, voltando depois
das naus incólumes. Pois pela parte que me toca,
receio que os Aqueus paguem a dívida de ontem,
visto que junto às naus está um homem insaciável na guerra,
que segundo penso não se absterá por muito mais tempo da luta.

(Homero, 2013a, Canto XIII, VV. 726-747)

Heitor se agrada da sugestão de seu soldado e segue seu conselho.

Polidamante, retém tu aqui todos os valentes,
enquanto eu vou ali enfrentar a guerra; depressa
regressarei, quando lhes tiver dado as ordens.

(Homero, 2013a, Canto XIII, VV. 752-753)

São momentos que mostram Heitor impetuoso e ponderado, orgulhoso e colérico, sensato e cordato. Ele oscila, falha e acerta como qualquer ser humano. Ele é um herói que se destaca pela maleabilidade e convicção de seu lugar e tarefa. Tais aspectos contribuirão para que ele se conduza a seu destino. Homero os põe em evidência no confronto com Polidamante, que, por sua vez, também se define, tornando mais nítido o contraste: Polidamante tem perspicácia, prudência, sensatez, visão prospectiva, capacidade estratégica, é uma figura notável. Heitor, nessas cenas, carece de tais qualidades. Ele busca a glória. Está imbuído da confiança na proteção de Zeus. Nada se colocará em seu caminho. Tudo isso, o poeta apresenta na ação, e não de modo descritivo, o que poderia ser enfadonho. O leitor conhece os heróis pelo modo com que eles agem e reagem - característica essencial na épica. O agir é o ser do herói homérico, sem reflexões filosóficas ou abstratas. Nós o conhecemos pelo modo com que age no confronto com outro herói, e não porque ele tem descritas suas qualidades. Raro é o momento em que ele faz uma reflexão sobre conflitos íntimos. Esse momento está reservado a Heitor, ao final do poema.

Ao falar do "homem insaciável na guerra" junto às naus, Polidamante se refere a Aquiles, que é, indubitavelmente, o maior de todos os guerreiros, não só dos aqueus, mas dos dois exércitos. Homero ignora a tradição que o dá como invulnerável, mas o apresenta como imbatível no corpo a corpo,4 temido por todos, que fogem à sua mera aparição. Ele se realiza e se compraz no campo de batalha, ainda que não com desprezo pela vida ou pela possibilidade de morte. Fora das batalhas devido a uma injúria inadmissível ao caráter heroico de que é dotado, Aquiles está em sua barraca, inclinado a abandonar a guerra e voltar para casa. O exército aqueu sente muito a sua ausência, pois ele é tão temido, que basta aparecer em campo para que os troianos debandem para lugar seguro.

Aquiles não vê os troianos propriamente como inimigos pessoais, sabe ser magnânimo com aqueles que vence, como lembra ainda Alexander (2009), não mata por selvageria; lutar é sua habilidade maior, mas tem outras, como o dom do bem falar e o da medicina. É um personagem complexo, pois, na verdade, valoriza estar vivo. Juntou-se ao exército por circunstâncias definidas por um oráculo, e para cumprir seu destino de guerreiro. No entanto, em sua recusa, aos embaixadores do comandante do exército aqueu que tentam convencê-lo a voltar a lutar ele declara que nada tem contra os troianos; diz que viver é mais importante do que qualquer vitória. Nem a glória é mais preciosa do que a vida, uma afirmação que surpreende, na boca do maior dos guerreiros, pois subverte o próprio cerne do heroísmo: desde idos tempos, heroísmo põe glória, honra, fama em primeiro lugar e acima de tudo (Alexander, 2009). Esse é seu código central. Não que haja desprezo pelos riscos e pela morte. O herói não quer morrer. Em célebre cena da Odisseia, a alma de Aquiles diz que "preferiria ser servo de um servo e estar vivo do que reinar entre os mortos". Estar morto é ser nada, impotente, um fantasma sem substância.

Aquiles está decidido a voltar para casa. Só que os deuses determinaram outro rumo para ele, e ele se verá enredado numa trama que lhe escapa das mãos. Seu amigo Pátroclo se condói das perdas que os aqueus sofrem e propõe a Aquiles substituí-lo, usando suas armas. Após certa resistência, o herói concorda, mas recomenda a Pátroclo não enfrentar Heitor, que lhe é muito superior. No entanto, quando em campo, estimulado pela luta, Pátroclo ignora a recomendação, avança, entra em combate com Heitor, e este o mata.

Nesse ponto, Heitor novamente se equivoca: interpreta mal seu triunfo, embriaga-se com a morte de Pátroclo; vibrando, despoja-o da armadura de Aquiles, que o morto vestia. Ufana-se, veste a armadura, apossa-se das armas, considera-se agraciado pelos deuses, enquanto, no Olimpo, Zeus lamenta-se dele e prevê a proximidade de seu fim: imprudente e impudente, o guerreiro não sabe o que o espera.

A morte de Pátroclo mudará a disposição de Aquiles e também todo o desenrolar do poema: os outros chefes aqueus praticamente desaparecem de cena. Desde o Canto XVIII - quando fica sabendo da morte do amigo - até o Canto Xxiv, a onipresença de Aquiles dominará e conduzirá a ação. A dor que toma seu espírito pela perda do amigo comove e impressiona. Dor que se transforma em ódio violento, em fúria sanguinária; desabrocha nele o homicida implacável, destituído de qualquer humanidade. Volta ao campo da guerra e trucida quantos encontra pela frente, de velhos a adolescentes, sem piedade. Está em busca de Heitor, seu adversário maior, para vingar-se.

Aquiles é o personagem da Ilíada que mais evolui no que diz respeito à exteriorização de sentimentos. Nele, tudo é visível. Seus atos o revelam. Ele terá sua apoteose surpreendente no último Canto da Ilíada. No entanto, Aquiles não tem momentos de reflexão íntima sobre o que se passa com ele. É em Heitor que o poeta incluirá uma reflexão pessoal, uma conversa consigo mesmo a respeito do que sente, do que fez e terá de enfrentar, das decisões que tomou e da que terá de assumir, das consequências inerentes a qualquer posição diante dos acontecimentos. Essa é uma cena única no poema e acontece justamente na iminência da luta de Heitor contra Aquiles.

Só, diante das portas cerradas da cidade, Heitor aguarda. Pensa em seu destino. Vê-se abandonado pelos deuses. Sabe que seu fim está próximo. Lastima. Teme em seu coração, tem clareza da superioridade guerreira de seu antagonista e algoz. Quer voltar para a segurança dentro das muralhas de Troia; reconhece que não pode. Lamenta seus erros. Lembra-se de Polidamante.

Ai de mim! Se eu passar os portões e entrar para lá dos muros,
o primeiro a atirar-me com censuras será Polidamante,
ele que me disse para conduzir os Troianos para a cidade
durante a noite funesta em que se ergueu o divino Aquiles.
Mas eu não quis obedecer. Mais proveitoso teria sido!
Mas agora destruí o exército por causa da minha insensatez
e tenho vergonha dos Troianos e das Troianas de longas vestes,
não vá algum homem mais vil e covarde dizer de mim:
"Confiante na sua força, Heitor destruiu o exército".
Assim dirão. E para mim teria sido muito mais proveitoso
defrontar Aquiles e regressar depois de o ter morto,
ou então ser gloriosamente morto por ele à frente da cidade.

(Homero, 2013a, Canto xxii, 99-110)

Diante do gigante que se aproxima, o tumulto interior de sua alma o subjuga, sua coragem falha. Ele se pergunta se não haveria outra solução:

Por outro lado, poderia depor o escudo adornado de bossas
e o elmo pesado e, reclinando a cabeça contra a muralha,
ir eu próprio ao encontro do irrepreensível Aquiles;
poderia prometer-lhe que Helena e todos seus haveres,
sobretudo aqueles que Alexandre deixou na côncava nau
trouxe para Troia – Helena, que foi o início do conflito,
daremos aos Atridas para a levarem: além disso e em separado,
dividiremos para os Aqueus tudo o que a cidade contém.
E poderia arrancar aos anciãos dos Troianos o juramento
de que nada se esconderia, mas que tudo seria dividido,
todo o tesouro que a cidade agradável tem lá dentro.

(Homero, 2013a, Canto XXII, VV. 111-121)

De imediato, Heitor se dá conta de que tudo seria inútil. Não é possível qualquer gesto de amizade entre eles, antecipando o que Aquiles lhe dirá:

Mas por que razão o meu ânimo assim comigo dialoga?
Que eu não me aproxime dele, pois não se apiedará de mim
nem sentirá respeito, mas matar-me-á nu, assim como estou,
como se eu fosse uma mulher, visto que despi as armas.

(Homero, 2013a, Canto XXII, VV. 122-125)

Dominado pelo medo, ele corre ao redor das muralhas, sob o olhar compadecido de Zeus. Até que se recupera, aceita a luta e enfrenta Aquiles, que se abate sobre ele "como o falcão das montanhas facilmente se abate sobre uma pávida pomba à sua frente". Cumpre assim a razão de ser o guerreiro que ele é, mesmo sabendo ser impossível vencer. Torna-se de novo, aos nossos olhos, o admirável herói defensor de Troia que sempre foi e desperta profunda pena pelo modo cruel como é morto e tratado depois de morto.

Teria sido Heitor um personagem real da Ilíada, como tantos de quem há indícios arcaicos? Ou teria sido uma composição de Homero, que o inventou? Hipótese muito considerada, essa. Se assim for, o poeta pode trabalhar suas características com plena liberdade. E fica mais fácil compreender as características humanas - aquelas demasiado - que compõem Heitor. O poeta teria se dedicado a desenhar um herói que não perde a grandeza, mas que comete muitas falhas; nenhum outro personagem da Ilíada é apresentado com tantas contradições. Ele é um combatente excepcional, mas não alçado a um status supra-humano, como por vezes Aquiles o é. Por conta disso, entre outras coisas, considera-se que Heitor seria também o mais amado pelo poeta.

Homero prenuncia e antecipa, com essa cena, uma das características centrais da tragédia grega, que só florescerá alguns séculos mais tarde em Atenas. Ao mostrar Heitor refletindo e formulando com clareza, no íntimo de sua alma, seus conflitos e equívocos, seu medo, seu destino, Homero apresenta um dos elementos que fazem a tragédia grega ser o que é - ainda que haja outros tão ou quase tão importantes.

A épica é um mundo de homens. Às mulheres está reservado outro lugar: o interior das casas. São caracterizadas como sedutoras, belas, companheiras, esteio das famílias, rainhas e princesas respeitadas, esposas abnegadas; também são vistas como enganadoras, perigosas, pérfidas; mas não entram em campos de batalha. Ficam na sombra dos homens que se destacam.

Na tragédia grega esse elemento também está presente, mas acrescido de outro que muda radicalmente a posição das mulheres. Elas são apresentadas como protagonistas decisivas no rumo dos acontecimentos5 (especialmente com Eurípides). Da mesma forma, o foco dos conflitos muda para outro plano, não mais o confronto com o outro, mas agora o confronto consigo mesmo. Em certa medida, todas as tragédias contêm esse elemento. Uma das mais tocantes e que serve aos objetivos deste texto nasceu do gênio de Sófocles.

 

Antígona

"Não nasci para o ódio: apenas para o amor." Assim se define Antígona, no centro de seu drama. Sófocles compôs essa tragédia sobre a filha de Édipo bem antes da mais conhecida dos psicanalistas, Édipo rei.

Tebas estivera em guerra devido à luta pelo poder por parte dos irmãos Etéocles e Polinices. Conforme acordo, eles se alternariam anualmente no governo de Tebas. Ao final do primeiro ano, Etéocles se recusa a entregar o trono, e Polinices ataca a cidade. Eles lutam e se entrematam. Temos a sorte de conhecer esse drama pela tragédia Os sete contra Tebas, de Ésquilo.

 

 

Na tragédia de Sófocles, Creonte assume o poder e determina que Etéocles seja enterrado com honras, mas que o corpo de Polinices seja abandonado sobre a terra para apodrecer e ser devorado por animais. A pena pela desobediência seria a morte. A tragédia de Sófocles põe a jovem Antígona frontalmente contra essa ordem, que a atinge no coração: um irmão, diz Antígona, sobretudo quando os pais se foram, é uma perda absoluta. Durante a noite ela cobre o corpo de Polinices com terra e faz os rituais fúnebres. Apanhada em flagrante, é levada diante do rei.

Muitas coisas poderiam ser ditas a respeito dessa peça extraordinária; porém, isso fugiria em excesso dos objetivos deste texto. Mas a tentação é grande, pois, além da beleza e inspiração, há uma profusão de diálogos e cenas que merecem reflexão.Por exemplo, o momento em que a jovem aparece acorrentada segue-se a uma exaltação sobre a maravilha que é o Homem e suas potencialidades, num movimento irônico que se encontra várias vezes nas tragédias de Sófocles. "Muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem", começa o canto do coro desfiando realizações ao alcance desse ser capaz de acorrentar uma jovem ainda adolescente, porque ela ousou fazer um ato de piedade.

Interpelada por Creonte, Antígona sustenta ser ela, sim, quem desobedeceu a sua ordem. Pois, diz, a lei de Creonte não supera e nem a ele cabe "violar aquelas não-escritas e intangíveis leis dos deuses". Sepultar os mortos é um ato inquestionável de piedade, e não o fazer é condenável.

Creonte indaga se ela não sente vergonha do que fez.

A: Honrar um irmão não pode ser vergonha.
C: E o outro, que o matou, não era teu irmão?
A: Sim, de um mesmo pai e de uma mesma mãe.
C: Por que o ofendes, pois, honrando ao outro impiamente?
A: Não é o que diria o que está sepultado.
C: Sim, se ao ímpio rendes honra igual à dele.
A: Não era um escravo: era igual, era irmão.
C: Vinha contra a terra que o outro defendia.
A: Pouco importa: a lei da morte iguala a todos.
C: Mas não diz que o mau tenha o prêmio do justo.
A: Não será talvez piedade isso entre os mortos?
C: Mesmo morto, nunca é amigo um inimigo.
A: Não nasci para o ódio: apenas para o amor.
C: Se amar é o que queres, vai amar os mortos!
Enquanto eu viver, mulheres não governam.

(Sófocles, 1997, VV. 511-525)

Cego de indignação em sua posição de governante da cidade, o rei ordena que Antígona seja enterrada viva em uma gruta onde deve ficar até morrer.

Hémon, filho do rei e noivo de Antígona, tenta convencer o pai a mudar de ideia em interessantíssimo diálogo. O debate entre ambos é digno de figurar como exemplo das muitas nuanças que a forma de apresentar argumentos pode conter. No entanto, seja com doçura ou com dureza, Hémon não logra convencer o pai e se insurge contra ele, afastando-se em fúria.

A sorte de Antígona está selada. Sófocles a retrata com claro conhecimento do que se passa e do que tem diante de si. São doloridas suas palavras, quando se dirige ao túmulo que lhe está destinado:

Ó túmulo, alcova nupcial, meu abrigo
subterrâneo em que hei de morar para sempre,
e onde encontrarei quase todos os meus
que entre os mortos já Perséfone acolheu!
Eu, a última e a mais infeliz, desço a ti
sem haver provado meu gole de vida.
Entretanto, lá, tenho firme esperança,
hei de ser bem-vinda a ti, meu pai; a ti,
minha mãe; a ti, meu irmão bem-amado:
pois que, mortos vós, com minhas próprias mãos
vos lavei, vesti e fiz as libações
sobre a vossa tumba. E agora, Polinices,
eis meu prêmio por querer honrar teu corpo.
E tive razão aos olhos dos insensatos.
Se eu tivesse filhos, e os perdesse,
e um esposo morto apodrecendo ao sol,
a cidade não maldiria o que fiz.
Qual a norma, pois, por que me conduzi?
Morto meu esposo, outro não faltaria
que me desse, como o primeiro, outro filho.
Mas, com mãe e pai já entre as sombras do Hades,
nunca poderei ver nascer outro irmão:
eis por que te dei minha preferência
e por isso Creón me julgou culpada
e rebelde às leis, meu irmão bem-amado.
E fui presa, e vou – sem haver conhecido
nem o leito, nem o cântico nupcial,
nem o esposo, nem os filhos por criar –
sem amigos, só, desgraçada, descendo
ainda viva para o fosso sepulcral.

(Sófocles, 1997, VV. 891-920)

Antígona não faz apologia da morte ou do morrer, mesmo que seja "pelo crime de ser piedosa". Não há morbidez na jovem. Ela lastima, não quer morrer, mas a coerência com seu caráter e com sua natureza não lhe deixa alternativa. Ela é como um indivíduo que só tem um nome a zelar, e, se o banaliza, nada lhe resta, a não ser, aí sim, a morte, mas a morte do espírito, que o lança num vácuo sem fim. Ela reconhece isso e sabe as consequências de sua escolha. Ela sabe que "entre vivos e entre mortos não habitarei com vivos nem com mortos!"

Antígona é trágica, mas Creonte é um infeliz desgraçado. Os acontecimentos se precipitam. O rei, alertado por Tirésias, só muito tarde percebe a enormidade da dupla infração que cometeu: enterrar um ser vivo e deixar um morto insepulto. Desnorteado, ele corre até a gruta. Vê Hémon em lamentos diante da jovem que se enforcara; lançando um grito de ódio contra o pai, Hémon se joga sobre a própria espada e morre; e a rainha Eurídice também se suicida ao saber da morte do filho. A Creonte só resta ver que tudo "ao redor de mim é ruína. Tudo oscila. Abateu-me um destino implacável". Ao fim, ele se torna digno de pena.

Antígona vive um dilema inarredável. Ela se vê diante de duas alternativas igualmente inescapáveis. Ela não pode se decidir por nenhuma das duas e a nenhuma das duas ela pode renunciar, sem trair a si mesma. Pois, ou se submete ao rei e permanece viva repudiando sua verdade; ou se opõe e morre, permanecendo coerente com aquilo que dá sentido à sua vida. Enterrar o corpo do irmão a levará à morte. Não o fazer contradiz e ofende toda a razão de sua existência. Não está em Antígona renegar o que a define como é. Não há terceira opção. Ela está diante de um conflito insolúvel; pagará alto preço por qualquer das soluções disponíveis. Seu amor se realiza no ato de sepultamento do corpo de seu irmão e na renúncia à vida, que lhe é imensamente cara, necessária para a coerência com os mais altos valores que ela defende. Ao mesmo tempo, ela anseia por conhecer e cultivar o amor de Hémon, seu amado, e assim dar sentido também à sua condição de mulher. Só que viver em desacordo com sua própria alma torna-se impossível, pois produz uma deformação na qual a personagem não reconhece a si mesma.

O tremendo conflito que Sófocles desenha no drama dessa jovem passa pela límpida consciência daquilo que a caracteriza como um ser que pode viver e estar no mundo em condição mental e espiritual não acessível a outros seres animais, modelo para os homens de todos os tempos.

Antígona é a vítima derradeira da maldição que pesava sobre a casa de Laio. Com ela, a família se extingue; em seus estertores, porém, lança um facho de luz deslumbrante, cuja extensão talvez ainda não sejamos capazes de aquilatar o suficiente.

A todos os mortais está reservado o mesmo destino, determinado pelas leis da vida. O respeito ao corpo morto do irmão encarna e evidencia a condição de todo homem: um ser diante de si mesmo, de seu desamparo e vulnerabilidade, de sua dependência e abandono. Somente outro homem - no sentido amplo do termo - pode proteger e cuidar daquilo que o define como tal. Somente outro homem pode evitar a degradação do frágil tecido que une os irmãos - aqui também no sentido amplo do termo, pois todos somos irmãos de Antígona. Etéocles, o irmão já sepultado - diz ela - não se diria ofendido por seus cuidados com Polinices, e Creonte está muito longe de perceber o alcance dessa afirmação. Por isso, no ato de Antígona encerra-se o amor a toda a humanidade, o que evidencia sua nobreza natural e confere-lhe grandeza.

Encontramos ecos em pessoas reais, cujas vidas retratam aspectos próprios de nosso tempo. Para ficar em apenas um exemplo: em 1943, a jovem Sophie Scholl, fundadora e participante do movimento Rosa Branca, que se opunha a Hitler e ao nacional-socialismo, contou à carcereira um sonho que teve na noite anterior a seu sumário julgamento e decapitação.

Em um dia ensolarado, eu levava no colo uma criança num longo vestido branco para o batismo. O caminho para a igreja conduzia ao topo de uma montanha íngreme. Mas eu segurava a criança bem firme. De repente, diante de mim se abria uma fenda de geleira. Só tive tempo de colocar a criança em segurança do outro lado – então caí do precipício.

Ela tenta esclarecer o sentido desse sonho singelo: "A criança é a nossa ideia, que irá prevalecer apesar de todos os obstáculos. Tivemos o privilégio de sermos os precursores, mas antes temos que morrer por ela" (Scholl, 2013, p. 74). Em sua cela foi encontrado um papel com a denúncia que sofrera, em cujo verso ela escrevera a palavra "liberdade".

O cinema nos brindou com um filme retratando a jornada de um homem que empreende uma viagem interplanetária para finalmente adentrar os recônditos enterrados em seu íntimo no confronto com seu pai. Trata-se de Ad-Astra: rumo às estrelas (2019), ficção científica em que o astro Brad Pitt interpreta magnificamente Roy McBride, um contido astronauta, com olhares e expressões que revelam toda uma vida interior de caráter tanto épico quanto trágico.

 

Travessias

O herói épico entra em luta contra um inimigo externo. Tudo é exteriorizado, e ele justifica seus atos pela existência do oponente, que enfrenta em campos de batalha ou mesmo em acaloradas discussões nas assembleias. Seu adversário é o Outro, com o qual tem certa identificação, mas que não é ele mesmo; o herói reconhece isso e expressa-o em seu comportamento. O embate trágico se dá em outro plano, pois o herói enfrenta a si mesmo. Vive o conflito no íntimo de sua alma, mesmo que o declare de modo explícito. Ele é seu próprio adversário. A luta se dá entre forças opostas que habitam seu interior e o lançam em experiências por vezes excruciantes. Não necessariamente termina em morte física, como ocorre com alguns grandes heróis épicos que se destacam em campo de batalha. Alguns escapam, como Eneias, herói troiano que sobrevive à guerra e cumprirá seu destino em outro lugar, como relata Virgílio, na Eneida. Também na tragédia, o herói pode sobreviver à violência que sobre ele se abate. Não escapa, porém, da consciência que adquire. Do trágico não há como se subtrair, pois o conflito acontece na alma do indivíduo (foi com Sófocles que a alma passou a figurar no centro da tragédia grega, como destaca Jaeger, 1986). O homem trágico vai sempre ao encontro daquilo de que ele foge ou até gostaria de fugir, mas o encontro fatídico é inescapável. Isso está, em certa medida, presente no herói dos poemas épicos, mas indubitavelmente o embate trágico é mais bem retratado nas tragédias.

Em Antígona, o processo é vivido lentamente: a jovem vivencia seu conflito, ao mesmo tempo em que percebe o desfecho irrecorrível. O embate trágico de Antígona passa pela presença de todas suas faculdades mentais. Sua decisão terá consequências que ela conhece de antemão. Sua dor não é adiada, não é encoberta, é visível, é sentida e vivida por ela desde o início, não é sofrimento escondido. É bem diferente de Édipo, que realiza todas as ações, toma decisões e se conduz sem atinar com o que o espera mais adiante. Não se dá conta do final que o aguarda, nem percebe os indícios que poderiam tê-lo alertado. Quando tem um insight, toda a verdade oculta a seus olhos desaba sobre ele com violência - o tema Édipo, já examinado à exaustão, está longe de ter sido esgotado.6 Antígona vive conscientemente o embate em que se envolve. Ela sabe qual será o destino final que a aguarda, e não recua, pois, para ela, isso sim seria a morte - não do corpo, mas de sua alma. Muitas vezes se torna mais angustiante ler ou assistir à representação de Antígona do que à de Édipo rei, pois com Édipo fica-se na expectativa de sua descoberta e da dor que virá. Com Antígona, vive-se junto com ela todo o processo, muito mais pungente.

Esse elemento de observação e reconhecimento do próprio conflito interior é escasso na épica. Heitor tem um momento de exceção. Zeus e os deuses já haviam determinado sua morte e a queda de Troia, mas Homero não exclui o fator humano, que são as próprias decisões de Heitor e que tiveram também uma influência decisiva. E o herói reconhece isso. Ele implica a si mesmo em seu destino com penosa consciência, e admite que contribuiu para chegar aquele momento. Ou seja, apesar de destacar a ingerência divina nas ações dos homens, a épica homérica é coalhada de predições de caráter trágico. Homero considera que o homem não pode fugir de si mesmo. Esse é um dos elementos que definem a tragédia grega - ainda que longe de ser o único -, mas está presente também na épica.

Ou seja, o embate épico e o embate trágico se interpenetram. O épico contempla acentuadamente o herói no confronto com um outro que não é ele, seja adversário ou parceiro. No embate trágico, o herói depara consigo mesmo e enfrenta seus próprios conflitos, muitas vezes silenciosamente. O reconhecimento do próprio conflito está no cerne do trágico, mas não é estranho à épica. Homero deixa isso magnificamente claro com Heitor. Como teria sido nos poemas que se perderam? Essa pergunta faz refletir, mas provavelmente nunca teremos uma resposta.

Na clínica estamos o tempo todo transitando entre esses extremos, e eles sempre se tocam. A pretensão, no processo psicanalítico, seria pôr o conflito interno - o embate trágico - no centro. Quando o indivíduo tenta escapar de enfrentar-se, até pode conseguir, mas ao custo de artimanhas que levam à mutilação da personalidade: defesas, artifícios, ludibrios, tantos desvios de caminho que resultam por vezes em sintomas limitantes, mas o final pouco varia. Às vezes tais estratégias e subterfúgios funcionam durante a vida inteira. Não é para menos, pois o reconhecimento de quem se é, da sua verdade e contradições, dos equívocos, o enfrentamento da realidade, pode ser muito mais penoso do que a alienação. A par disso, na clínica também se empreende uma jornada épica, pois o tempo todo vive-se em relacionamento com o Outro, que chama para um embate. O Outro ajuda a descobrir as potencialidades de cada um. O final pode ser compensador: há alguns momentos supremos com insights transformadores, em geral fruto de longo caminho já percorrido. E há os insights silenciosos, na calada da alma do indivíduo. Mas chega-se à casa.

 

Tempos sombrios

Em 1918, o mundo estava em plena Guerra Mundial. A epidemia da gripe espanhola encontrou terreno mais do que propício para ceifar vidas a rodo. Morreram cerca de 50 milhões de pessoas. Quando tudo acabou, de algum modo as pessoas se recuperaram. Para bem ou para mal, pouco importa. O fato é que se recuperaram e, por certo tempo, o empenho foi a reorganização da vida e do mundo.

Estamos também, atualmente, em meio a uma pandemia com um vírus que ainda ninguém sabe muito bem como neutralizar. Ser vivo ou não, o vírus se replica velozmente. Também essa pandemia há, porém, de acabar, e os sobreviventes hão de se recuperar - como e em quais direções, ainda não sabemos.

Todos estamos inseridos nesse ambiente, querendo ou não. As pessoas foram impelidas a mudanças que não estavam nos planos. Os psicanalistas não são exceção. Poucos consideravam seriamente o atendimento online como uma prática possível e, menos ainda, como predominante ou, mesmo, exclusiva. E, no entanto, fizeram-se necessárias aceitação e adaptação. Temos uma situação externa que se impõe sem pedir licença; e temos nossas reações, recursos e características pessoais para pôr em ação, uma vez que, como disse um de nossos poetas maiores: "Chegou um tempo em que a vida é uma ordem".

Então, por que Heitor? E por que Antígona? Vivos em diferentes expressões literárias, Heitor e Antígona têm um forte ponto em comum: ambos vivem e morrem por amor. Antígona, por amor ao irmão, à sua verdade e à vida, da qual ela se despede com mágoa. Heitor, por amor à cidade, à esposa e filho, aos troianos atocaiados atrás das muralhas. Nenhum dos dois quer morrer, nem escolheria o confronto ou a guerra; foram também empurrados pelas circunstâncias que os levaram a assumir posições das quais não poderiam recuar sem trair exatamente aquilo que os mantinha vivos.

E por que pôr no texto diretamente aquilo que sai da boca dos personagens, em vez de contar e analisar? Os mitos são modelos, são representações, são sonhos. "Mitos são o sonho de um povo" (J. Harrison, citada em Dodds, 1988, p. 116) - afirmação retomada por Bion. O contato direto com o texto possibilita o sonhar do leitor, e aí o campo é aberto e inesgotável. A busca passa pelos anseios íntimos de cada um. Pois o mito, para a clínica, é inspiração e fonte de aprofundamento da compreensão de coisas.

 

 

Ulisses é Ulisses. Mas sua viagem é também a de Heitor, de Aquiles, de tantos outros heróis homéricos, algumas delas apoteóticas, outras catastróficas, ou ainda desastrosas. É a viagem de Édipo, de Antígona, de Ifigênia e de tantos outros heróis da tragédia. É de Sophie Scholl, de seu irmão e companheiros. Também de personagens imaginários, como Roy McBride, em que os autores expressam a si mesmos. É empreendida em cada processo analítico, mas também na vida de todas as pessoas, com mais ou menos profundidade e consciência. Pois a viagem de Ulisses é a viagem de todos nós.

E mais: enquanto há vida, a viagem prossegue. Como na narrativa homérica, algum tempo depois de chegar a seu reino e assumir-se como rei responsável por sua terra, como esposo e pai amoroso, Ulisses parte novamente. A viagem só termina quando a vida termina. A psicanálise tem essa mesma perspectiva. A viagem-análise - como disse certo desbravador - é interminável.

 

Referências

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Mandela, N. (2010). Conversas que tive comigo (A. L. de Andrade & outros, Trads.). Rocco.         [ Links ]

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Scholl, I. (2013). A rosa branca - a história dos estudantes alemães que desafiaram o nazismo (J. P. Perez & T. Reichmann, Orgs.; A. C. Schafer & outros, Trads.). Editora 34.         [ Links ]

Sófocles (1997). Antígone. In T. Vieira (Org.), Três tragédias gregas (G. Almeida, Trad.). Perspectiva. (Trabalho original de 442 a.C.         [ Links ])

 

 

* Os desenhos deste artigo são de autoria de André Caliman (www.andrecaliman.com).
1 Havia seis outros poemas, cinco dos quais ligados ao ciclo de Troia: Cypria (julgamento de Páris), Aethiopie (morte de Aquiles), Little Iliad (cavalo de Troia), Iliou Persis (queda de Troia), Nostoi (retorno dos heróis) e Telegony (continuação da Odisseia). Hoje existem apenas breves resumos de seus conteúdos em um antigo manuscrito da Ilíada, verdadeiro tesouro guardado a sete chaves em Veneza (Davison, 1955).
2 A quem possa interessar, consultar "Mitos: expressão do humano" (Migliavacca, 2003).
3 Por exemplo, em literatura inglesa, no célebre romance de Emily Bronte, Wuthering Heights (O morro dos ventos uivantes), de 1847, a criada Nelly Dean não só conta a história do apaixonado par principal, mas em certos momentos, mesmo sem querer, sua atuação influencia decisivamente o rumo dos acontecimentos.
4 Aquiles é morto por uma flechada traiçoeira de Páris, que era hábil no arco.
5 Diferentemente do que acontecia na sociedade ateniense, onde a tragédia grega floresceu. A mulher ficava em casa e não tinha participação na vida da cidade. Não quer dizer que deixavam de ter sua força e influência (ver, por exemplo, Blundell, 1995).
6 Se houver interesse, sugiro meu artigo "A dimensão trágica do psiquismo: um ensaio" (Migliavacca, 2004).

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