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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

O que é uma fronteira, hoje?

 

What is a frontier, today?

 

 

Alessandro CicconiI; Elena SantilliII; Elisabetta ZampariniIII; Letizia BarbieriIV; Liliana FerreroV; Marcio de Freitas GiovannettiVI; Maria Pina OrlandoVII; Mario GiampàVIII; Peter CoppolaIX; Grupo Antropología y PsicoanálisisX

IPsicólogo clínico e psicoterapeuta (Urbino/Pesaro)
IIDoutorado em Filologia Clássica, Línguas e Literaturas Antigas e Modernas. Especializado em Literatura Sibilina e Mitografia Sibilina (Universidade de Macerata)
IIIPsicóloga clínica e psicoterapeuta (Viterbo)
IVSocietà Psicoanalitica Italiana (spi)/International Psychoanalytical Association (IPA)
VAsociación Psicoanalítica de Buenos Aires (APdeBA)/International Psychoanalytical Association (IPA)
VISociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)/International Psychoanalytical Association (IPA)
VIIPsicóloga clínica e psicoterapeuta
VIIISociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)/International Psychoanalytical Association (IPA)
IXPsicólogo, doutorando em Neurociência em Oxford
X(Buenos Aires, São Paulo, Oxford, Macerata, Roma, Viterbo, Urbino) / mariogiampa.mg@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho, com base na teoria de Bion e na crítica de F. Corrao (1979), descreve os conceitos de "fronteira" que emergiram na pesquisa da "identidade grupal", colocou a atenção sobre os grupos pela função do incremento da consciência ético-social--política. Foram vistas as fases de estudo do grupo confrontando temas da humanidade que podem causar a sua implosão, toca a "migração do diferente/estrangeiro" quando invade fronteiras geopolíticas. A perspectiva psicanalítica será enriquecida de maneira que, valorizando os movimentos e os insights individuais e grupais, se possa determinar uma visão multifocal de fronteira a partir de dentro e de fora, do individual, do grupo e da humanidade.

Palavras-chave: fronteira, identidade grupal, humanidade, imigração


ABSTRACT

This work, based on the theory of Bion and the criticism of F. Corrao (1979), describes the concepts of "frontier" that emerged in the research of "group identity", placed the attention on the groups by the function of the increment of the ethical-social-political awareness. Were seen the study phases of the group confronting themes of humanity that can cause their implosion, touches the "migration of the different / foreign" when invades geopolitical frontiers. The psychoanalytic perspective will be enriched in such a way that, valuing the movements and individual/group insight's, a multifocal view of the frontier can be determined from within and without, the individual, the group and humanity.

Keywords: frontier, group identity, humanity, immigration


 

 

Como escreveram Corrao e Muscetta na apresentação da edição italiana do livro Esperienze nei gruppi ed altri saggi, de Bion:

A atenção analítica sobre os grupos tornou-se sempre necessária... Os grandes fenômenos emocionais de massa como o pânico, a exaltação, o furor, o luto são, no mundo de hoje, facilmente canalizados em amplas redes de mensagens de circulação difusa e contínua que penetram, frequentemente, de modo intrusivo e inconsciente na esfera perceptiva individual, determinando alterações e homogeneizações persistentes e fugazes. (1971)

Freud escreveu:

O outro é invariavelmente implicado na vida mental do indivíduo ou como um objeto, ou como um modelo, ou como um parceiro, ou como um oponente.

O comportamento do indivíduo com relação aos pais, aos irmãos, às irmãs, à pessoa amada, ao médico... e todas as relações que são objeto da investigação analítica podem ser considerados fenômenos de ordem social. (1921)

Para a compreensão completa dos fenômenos mentais, Bion afirma ser necessário um tipo de visão binocular do indivíduo, conseguida através da combinação dos dois métodos complementares constituídos pela análise individual e pela análise de grupo. É importante ter em conta a amplitude dessa visão de Bion, pois ele pensa que o desafio com o qual a comunidade deve se confrontar não é o de procurar-se fora de si mesma, mas sim nas relações emocionais inconscientes que existem entre seus membros, e o crescimento dessa mesma comunidade dependerá do modo com o qual enfrentará essa questão. Bion sustenta que o homem não tem grandes problemas em estabelecer relações com o exterior de acordo com a lei. O problema, diz ele, emerge quando se deve adequar às "oscilações emocionais inconscientes que existem nas relações humanas" (Bion, 1996, p. 364). Frequentemente, para enfrentar essas questões, o ser humano se refugia no aumento do controle das leis externas, o que implica um controle rígido. Coisa que não resolve o problema.

James Hillman e Michael Ventura exortaram-nos a olhar para fora da janela do nosso consultório. O que encontramos saindo de nossas quatro paredes? O mundo. Em particular, um mundo cheio de sintomas. Aproximando-nos da janela, encontramos o ser humano em um mundo mais vasto, encontramos o inconsciente coletivo e a sua desumanidade.

O que fica fora é um mundo que se vai deteriorando. Por que a psicoterapia não se deu conta disso? Porque a terapia é trabalhar somente o que está dentro da alma. Removendo a alma do mundo e não reconhecendo que a alma está também no mundo, a psicoterapia não pode fazer o próprio trabalho. (Hillman e Ventura, 1998)

Nosso grupo, nascido em Roma em 2016, em sequência a um seminário intitulado "Diálogos sobre a Felicidade", começou a refletir a respeito do amplo tema antropologia e psicanálise, tendo sempre se confrontado com as grandes temáticas da humanidade e de sua desumanidade, particularmente nas migrações. Perdendo e inserindo participantes, entre encontros e desencontros de diversas disciplinas, deixou-se penetrar por temáticas perturbadoras e provocadoras, confrontando-se com a dinâmica das fronteiras internas e externas do psiquismo, a ponto de uma quase implosão. Nascido para estudar a infelicidade e/ou o desejo de felicidade da multidão de emigrantes "não desejados" que violam as fronteiras, nosso grupo tentou encontrar uma perspectiva, um pensamento, uma "fronteira de pensamento" grupal, frente à emigração do diferente, do estrangeiro, das várias culturas, que, na era da globalização e da velocidade dos transportes, possa "poluir", desconstruir, a identidade da cultura territorial "invadida". O grupo experimentou a falta de uma visão, percepção, assimilação da diversidade do nomadismo atual e

se encontrou sem uma fronteira mental e física, ao observar da nossa perspectiva o Outro, pensando a si mesmo com uma identidade que vai além das fronteiras linguísticas, religiosas, políticas e econômicas. Pensando sua identidade para além das teorias psicanalíticas e antropológicas, em busca de um pensamento arcaico e nômade: o todo em um "não lugar", no espaço do software Skype, onde nasce um pensamento "pensado" entre a Argentina, o Brasil, a Inglaterra e a Itália, entre psicanalistas da International Psychoanalytical Association (IPA), pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Universidade de Macerata e psicoterapeutas de Roma, Viterbo e Urbino.

Nossa experiência é uma experiência de fronteira, um cruzamento de culturas, experiências, idades, formações e disciplinas, que oscilam na constante tensão entre individualização pessoal e identificação grupal. As três perceptivas privilegiadas para o diálogo foram a psicanálise, a neurociência e a literatura. Esta última, aparentemente outsider, revelou-se particularmente importante na difícil tarefa de encontrar um equilíbrio, pois cada exemplo literário condensa em si uma "fronteira migrante" (Propp). O confronto contínuo entre interno e externo, a relação nolens volens entre autor, texto e sociedade replica em versão prática a relação de pesquisa entre a identidade dos pensadores singulares e aquela de um grupo que se reconstrói segundo um processo em migração estática.

As fronteiras são também um lugar de criatividade e não apenas para a identidade (Winnicott, 1982). Disso são exemplos o nascimento da bioquímica (Kuhn, 1970) e também nosso grupo que, não obstante perspectivas e disciplinas diferentes - muitas vezes incompatíveis em nível prático e epistemológico (Heidegger, 1978) -, conseguiu produzir novas perspectivas individuais e uma língua grupal. Enquanto a psicanálise encontra fronteiras na psicologia profunda (Freud, 1923), as técnicas da neurociência moderna encontram fronteiras perceptivas entre diversos objetos e entre o "nós e o eles" (Carhart-Harris et al., 2014; Hart et al., 2000; Molenberghs & Louis, 2018). Mas não nos esqueçamos que Freud (1920) previa a relevância entre as duas disciplinas e que a psicanálise contribuiu para inspirar estudos que definiram a neurociência moderna (Kandell, 1999).

A experiência da migração torna possível distinguir as forças de vida e as de morte. A esperança de uma vida melhor, a abertura a novos horizontes, o encontro com uma cultura e uma língua nova são fronteiras a serem atravessadas. Esses aspectos batem de frente com a desilusão, o desenraizamento doloroso, a perda irremediável e os sentimentos de humilhação e rebelião. Tais fraturas na continuidade da existência tornam, muitas vezes, necessária a mise en acte de novas fronteiras, dessa vez internas, os mecanismos de dissociação e fragmentação para fazer frente à vergonha, ao medo e à confusão, mecanismos defensivos que sugerem uma imagem de uma fronteira atrás da qual se esconder da dor. A tristeza pode tornar-se um afeto congelado se não se pode exprimir a dor quando essa fronteira não é permeável, e a transmissão do trauma pode se propagar por diversas gerações.

De forma análoga ao próprio objeto de estudo, nosso grupo viveu essas contínuas oscilações entre o dentro e o fora, e nosso trabalho se caracterizou numa busca constante de uma identidade, de um nome e de objetivos. As vivências que circulavam como descrições do trabalho com os migrantes eram um espelho das vivências internas do grupo: frustração, solidão, impotência e desorientação.

Uma intenção comum, uma fronteira a ser atravessada juntos, a criação de um novo objetivo tornou-se um objeto catalisador: a produção de um trabalho para a Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) trouxe uma nova linfa vital ao grupo, impondo um poder regenerativo e transformando a impotência em potencialidade. Agir em vez de ficar ruminando. Entretanto, ao lado das sensações salvadoras advindas do novo objetivo que nos trouxe a cobiçada identidade, e unidos na perseguição do objetivo que esconjurava a desagregação, apareciam vivências persecutórias relacionadas à Fepal. Uma ritualização con-tratransferencial daquilo que Virginia De Micco (2017) definiu como o "trauma cultural do migrante".

A migração se configura essencialmente como um trauma identitário no qual, para entender a carga traumática da experiência migratória, dever-se-á, acima de tudo, reconstruir-se, enquanto psiquismo individual à dimensão constitutiva da experiência cultural. Nesse sentido, a cultura é corpo-afeto, dimensão literalmente incorporada que estrutura a percepção/representação da própria cor-poreidade/afetividade e da própria imagem de si, a partir das relações primárias (De Micco, 2017).

Para Lacan (1964/1979), o ser humano está imerso na linguagem e dividido em si mesmo desde o início da vida, não havendo um tempo precedente à inserção da criança no simbólico. O sujeito, portanto, se constitui no campo do outro, no qual vem a introduzir-se, perdendo-se para sempre na linguagem, de modo singular, mas também segundo linhas estruturais cujos fios se perdem nas gerações.

Se a migração tem a ver com a refundação do Si mesmo, com uma crise identitária e com o sentido de pertencimento, devemos refletir que é no início da viagem que o sujeito se torna Migrante, ficando assim até a superação da fronteira, momento de encontro com o Outro. Quando o Migrante encontra o olhar do Outro, é definido como Imigrante. Trata-se de coordenadas que assinalam o ingresso do Migrante no mundo novo: como ele se situa enquanto imigrante na constelação significante dos desejos e dos medos do Outro, e como encontra uma acomodação de vida, necessária a cada curva da existência. Como pode, assim, o imigrante reconstituir-se no lugar do Outro que lhe preexiste?

Retomando De Micco (2017): trata-se de um delicadíssimo e incessante processo de reformulação identitária que deixa o imigrante constitutivamente em risco de desmonte de sua estrutura egoica. Um desmonte do qual nós, como grupo, estivemos muito perto, em um longo e tumultuoso processo de definição e redefinição de objetivos, de identidade e de superação de fronteiras inerentes ao assunto complexo e insidioso da migração, tendo pontos de vista e disciplinas diferentes, mas que, pouco a pouco, construíram laços suficientemente estáveis.

É como se, dentro do grupo, cada um de seus componentes tivesse "atuado" as vivências da migração, da mesma forma que numa sessão de terapia pode-se jogar com o paciente, ou como os autores que jogam com os personagens dos romances, ou como os mitos jogam com a simbolização e a representação das vivências humanas, ou como a ciência que joga rompendo com a fronteira do conhecido.

Pela sua característica de jogar, em uma situação relativamente protegida do "como se", oferece a rara oportunidade de experimentar as próprias capacidades sem ter medo das consequências e de aprender novas competências, identificando aqueles aspectos pessoais que influenciam. No grupo, existiram muitas "atuações", e somente a sua posterior reflexão pode favorecer profundos insights individuais, não só em relação ao papel atuado, mas também em relação à própria dinâmica do grupo de trabalho. Ao mesmo tempo, o grupo, em decorrência de "atuar" em conjunto e de sua reflexão, pode aumentar sua própria consciência, seja a respeito da maneira em que mira a situação objeto de pensamento, seja em relação às dinâmicas relacionais internas e subjacentes do grupo. Uma contínua oscilação entre as fronteiras de dentro e de fora, da individualidade, do grupo e da humanidade.

Ansiedades diversas podem aparecer: ansiedades persecutórias frente à mudança, ao novo e ao desconhecido; ansiedades depressivas que dão lugar ao luto pelos objetos abandonados e pelas partes perdidas do si mesmo; e ansiedades confusionais devido à incapacidade de discriminar entre o velho e o novo, entre o dentro e o fora. Crises estas que podem figurar uma situação de "mudança catastrófica" (Bion), que pode levar a uma catástrofe ou a uma evolução enriquecedora e criativa, no sentido de um renascimento regenerativo.

Nosso trabalho de pensar a migração, a identidade e as fronteiras reais e/ ou percebidas seguramente não nos levou a uma solução do problema, todavia é uma tentativa de conhecer e reconhecer o mais além da fronteira, come escreveu Henry Roth em seu romance Chiamalo sonno (1964): "Se conseguires traduzir em palavras aquilo que sentes, isso te pertence".

A recente emergência sanitária nos colocou frente a novas fronteiras a serem exploradas; ao mesmo tempo, foram aumentadas as distâncias interpessoais e diminuídas as fronteiras digitais. Como pensar o conceito de fronteira fora de um paradigma territorial, isto é, da complexidade de um paradigma essencialmente cultural?

Nosso século se funda a partir de três eventos: a revolução da internet, que, segundo Luciano Floridi (2017), traz à cena a subjetividade on life; o 11 de setembro de 2001, o dia que fez ruir a fronteira entre Ocidente e Oriente; e a pandemia atual, que evidenciou a vulnerabilidade de nossa civilização. Juntos, todos os três eventos nos colocam a seguinte pergunta: qual a fronteira entre nossos conceitos e nossas crenças, nossas ilusões?

 

Referências

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