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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

ATELIÊ

 

21 lições para o século 21

 

 

Rodrigo Lacerda

Escritor, editor e tradutor. Entre outros livros, publicou o livro de contos Reserva natural (2018)

 

 

 

Autor: Yuval Noah Harari
Editora: Companhia das Letras, 2018
Resenhado por: Rodrigo Lacerda

 

Por um novo humanismo: A fronteira entre as ciências humanas e as exatas/biológicas na obra de Yuval Noah Harari

O historiador israelense Yuval Noah Harari, nascido em 1976, já no início de sua carreira especializou-se em história medieval e história militar, com alguns artigos publicados no assunto - entre eles, "Operações especiais na era da cavalaria, 1100-1550", "A suprema experiência: revelações do campo de batalha e a construção da cultura mundial da guerra" e "O conceito de 'batalhas decisivas' na história mundial" -, notabilizou-se num segundo momento ao debruçar-se sobre questões ligadas à chamada macro-história, isto é, aquelas referentes a temas que percorrem a trajetória da espécie humana, englobando sua evolução biológica e suas construções culturais de longa e longuíssima duração, comuns a inúmeras sociedades ao longo do tempo. Atualmente, ele é professor do Departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém.

A reorientação de sua carreira tornou-se evidente com a publicação e o sucesso mundial de seu primeiro livro, Sapiens: uma breve história da humanidade (2014). Nele, Harari percorre o longo trajeto evolutivo da espécie homo sapiens, da Idade da Pedra até o século xxi. Ele divide essa história em quatro períodos fundamentais: 1) a revolução cognitiva ocorrida 70 mil anos a.C., quando os sapiens desenvolveram a imaginação; 2) a revolução agrícola, ocorrida 10 mil anos a.C., com o advento da agricultura; 3) a unificação da humanidade, processo contínuo que se inicia com a constituição dos primeiros impérios capazes de conjugar diferentes etnias e culturas; 4) a revolução científica, ocorrida por volta de 1,5 mil anos d.C., durante o Renascimento, e que instaura a ciência objetiva e empírica no centro do pensamento da espécie. Segundo o livro, os sapiens dominaram o mundo por serem os únicos capazes de cooperar em grandes grupos, e com flexibilidade.

Em seguida à repercussão mundial do primeiro livro, Harari publicou o segundo, Homo Deus: uma breve história do amanhã (Companhia das Letras, 2016), novamente com sucesso mundial. Neste grosso modo, o historiador parte de onde havia parado no livro de estreia.

Uma primeira parte trata de como o homo sapiens, por sua inteligência e por cooperar em grandes números e com flexibilidade, tornou-se a força mais importante da natureza, a ponto de dominá-la e alterá-la significativamente. Tal poder deveu-se também, em larga medida, à sua capacidade de trabalhar mentalmente com abstrações, ampla categoria na qual se encaixam divindades religiosas, as mais diversas visões de mundo, até o conceito de nação e o valor do papel-moeda.

Ele então, com o olhar essencialista e hiper-abrangente da macro-história, dedica-se a entender essa capacidade única da espécie, a de criar narrativas que dão significado ao mundo. Segundo Harari, ao contrário do que se costuma acreditar, a ciência e a religião pertencem ambas ao mesmo campo, o da subjetividade compartilhada entre os indivíduos. Em relação ao restante da biosfera terráquea - animais, vegetais, minerais e todos os processos naturais -, as religiões fornecem aos sapiens as justificativas morais para sua "superioridade" inata; ou então, num segundo momento, são os avanços técnico-científicos que cumprem este propósito. A combinação entre a ciência e o humanismo religioso, tendo o crescimento econômico como principal motor civilizatório, teria funcionado em parceria até o advento daquilo que o autor chama de "revolução humanista", período em que o humanismo despojou-se do arcabouço religioso e afirmou o livre-arbítrio, dividindo-se, segundo ele, em três diferentes caminhos: o socialismo/comunismo, o liberalismo e o nacional-socialismo, rótulos cujos significados são variáveis ao longo da história e cujo equilíbrio de forças se alterna ao longo do tempo.

Por fim, ainda em Homo Deus, Harari conclui com a ideia de que o homo sapiens perdeu o controle sobre sua evolução. Com as descobertas da neurociência, teria sido desvendado o "fundo falso" do livre-arbítrio, uma vez que o pensamento e a ação humanos resultariam de processos eletroquímicos em nosso cérebro, os quais não controlamos, pelo menos não inteiramente. O chamado "grande desacoplamento" manifesta-se, por exemplo, no desenvolvimento da inteligência artificial, uma forma de inteligência na qual não existe propriamente o que se poderia chamar de consciência. O homo sapiens é superado pela excelência da técnica. No mundo do trabalho, por exemplo, o homem torna-se, ou corre o risco de tornar-se, inútil. Apenas uma pequena elite da humanidade estará apta a dominar essas máquinas, enquanto a grande massa ficará alijada da produção. Os algoritmos e o conceito de dataísmo - uma ideologia emergente, de certo modo uma nova forma de religião, na qual o fluxo de informação é o valor supremo - dominariam a humanidade. O humanismo pós-renascentista, que adora o homem em vez de um deus, e o situa no centro do universo, estaria fadado a perecer, deixando de orientar a vida da espécie sapiens. Segundo Harari, estamos a caminho de uma otimização, via tecnologia, do corpo, do cérebro e do espírito, a qual daria à humanidade acesso a novos estados de consciência. Neles, a evolução científica regerá o livre-arbítrio, orientará a vontade humana, e também os processos naturais de nossos corpos poderão ser regulados, prolongando-lhes o tempo de vida e concedendo-lhes, quem sabe, a vida eterna. Criar-se-á, assim, o "homo deus" do título, um super-homem dotado de habilidades não naturais.

Em seu terceiro e mais recente livro, 21 lições para o século 21, Harari prossegue em suas reflexões macro-históricas. Tendo já retrocedido ao passado mais remoto no primeiro livro, e sondado o futuro mais distante no segundo, ele agora se debruça sobre o presente. Dividido em cinco partes - 1) O desafio tecnológico; 2) O desafio político; 3) Desespero e esperança; 4) Verdade e 5) Resiliência -, o livro combina ensaios publicados anteriormente a outros inéditos, todos tendo em comum o esforço de reflexão sobre os grandes dilemas tecnológicos, políticos, sociais e existenciais da humanidade nos dias de hoje.

O alcance do livro é muito amplo para esmiuçar as reflexões que faz sobre cada um desses dilemas, mas é importante que fique registrado. Entre os desafios do presente estão: o desgaste da narrativa liberal e o momento de baixa das democracias representativas; a fusão da biotecnologia com a tecnologia da informação; o surgimento de novos conceitos de liberdade e igualdade; o embate entre a necessidade de uma cooperação global e as estruturas, mentais e políticas, do nacionalismo tradicional; a amplificação da ameaça representada pelo terrorismo; a permanência da guerra na história da humanidade, numa autodestruidora "teimosia evolutiva", que nega a importância da espécie humana na biosfera e as novas formas de espiritualidade dentro do próprio secularismo; a ideia muito em voga na extrema-direita de que a racionalidade é um mito, assim como o direito à individualidade; o limite dos diferentes conceitos de justiça quando globalizados, já que feitos para regular sociedades específicas; a permanência da pós-verdade, que sempre existiu, em nosso tempo, e até sua prevalência, em comparação a outros períodos históricos; o esboço já em curso dos conflitos entre a elite candidata a se tornar super-humana e a grande massa alijada dessa nova etapa evolutiva; a exigência de uma "revolução contínua" na área educacional; e, finalmente, a ausência de sentido na experiência coletiva do homo sapiens.

Se falar de todos esses assuntos é impossível numa resenha, talvez seja possível, com base na longa lista de temas ou problemas que Harari se propôs a discutir, ressaltar um ponto especialmente interessante em sua obra. Trata-se de uma questão metodológica que ele não aborda de frente, possivelmente porque seus livros sejam voltados para o grande público (e nada assusta mais o grande público do que discussões metodológicas, palavra de editor), talvez por imaginar que sua estratégia de abordagem já seja consensual em todos os ambientes.

Refiro-me ao fato de o historiador Harari não respeitar os limites tradicionalmente impostos pelas ciências humanas, e usar dados em geral proibidos pelos cientistas sociais. Ao analisar as origens dos maiores dilemas contemporâneos e o desenvolvimento de nossas sociedades, Harari conjuga aspectos do "materialismo histórico" marxista, base do pensamento moderno sobre as sociedades humanas, às descobertas recentes, em diversos outros campos de saber, voltadas a entender por que nós, os sapiens, nos comportamos como nos comportamos, e construímos sociedades como o fazemos. Esses outros campos são a biologia evolutiva, a psicologia evolutiva, a sociobiologia, a neurociência e a biologia lato sensu.

Segundo o materialismo histórico tradicional, a transformação da vida humana deve ser analisada, exclusivamente, com base em nossas relações sociais, políticas e econômicas. Afinal, ninguém em sã consciência, à esquerda ou à direita do espectro político, ainda acredita hoje que a riqueza seja dada por graça divina, uma recompensa aos mais devotos.

O materialismo histórico, como grande denominador comum entre as diversas correntes do pensamento social, político e econômico da humanidade atual, não está acostumado - ou tão acostumado quanto pensa Harari - a dividir suas prerrogativas. É difícil aquilatar, de fora, o quanto a união interdisciplinar de bases de análise, conforme proposta por Harari, já está difundida nas ciências sociais do mundo anglo-saxão. Mas no Brasil, bem como na França, matriz de nosso modelo universitário e de organização e validação das ciências humanas, tal união ainda parece longe de ser corriqueira.

O mecanismo defensivo dos cientistas sociais tem razão de ser. Nos séculos XVIII e XIX, enquanto caía por terra a justificativa religiosa para a concentração da riqueza nas mãos de uns, e não de outros, ganhou força uma explicação científica para a injustiça, o conceito de "darwinismo social", segundo o qual os mecanismos sociais da acumulação de riqueza espelhavam os processos naturais da evolução. O mais apto se adaptaria melhor e teria mais recompensas, e, como nas demais espécies da natureza, seria inútil, prejudicial e até suicida tentar nivelá-lo ao menos apto. O conceito de "natureza humana", muito utilizado por essa corrente de pensamento, ficou estigmatizado aos olhos dos cientistas sociais desde então. O fantasma do darwinismo social, com seu equívoco essencial de não valorizar os aspectos mais positivos e generosos do comportamento humano, apenas os mais negativos e ferozes, continua assombrando os cientistas sociais e impedindo-os de fazer a conjugação que Harari faz com aparente naturalidade.

Além disso, a margem para confusão nessa abordagem interdisciplinar é grande. Se o dilema entre nature x nurture, ou, em outras palavras, entre natureza e cultura, já está tão evidente, que só se resolverá com a quebra do paradigma mutuamente exclu-dente e com a combinação das duas instâncias, executar essa ideia na prática é muito difícil. O que é um dado biológico e o que é um dado cultural? A maioria dos cientistas, de ambos os lados do fosso, não está treinada para lidar com os instrumentos de análise do outro campo, e as superposições arbitrárias podem ser eticamente difíceis de defender, para não dizer desprezíveis. São poucos os que praticam essa fusão com a naturalidade, propriedade e elegância de Harari.

E assim, em vários meios acadêmicos, incluindo o nosso, a história, a sociologia, a antropologia, a ciência política, a economia e as demais ciências humanas aparecem ainda quase intocadas pelas descobertas dos últimos quarenta anos sobre o comportamento humano, em outros campos de saber. Nesses meios, as ciências humanas estão para as ciências de fundo biológico como a astrologia está para a astronomia. Diz o ceticismo astronômico que, desde o surgimento desta ciência, já se descobriram novos planetas, novas estrelas, novas conformações siderais, o sistema solar já foi organizado de várias maneiras, reconheceu-se a existência dos buracos negros e da matéria escura, mas nada disso alterou as maneiras com que os astrólogos calculam nosso mapa astral!

Nesse sentido, a obra de Harari tem vários pontos de contato com a de Edward O. Wilson, o grande biólogo, criador da sociobiologia. Diz Wilson:

Não quero ser mal interpretado. Não estou insinuando que somos impulsionados pelo instinto, como os animais. Porém, para entender a condição humana, é preciso aceitar que temos instintos e que seria prudente levar em consideração nossos ancestrais mais distantes ... A história, por si só, não pode alcançar esse nível de entendimento. Ela se detém na alvorada do letramento, quando entrega o restante da narrativa à investigação detetivesca da arqueologia. ... Para uma narrativa humana realista, a história deve abranger tanto o biológico quanto o cultural. (Wilson, 2018, p. 22)

Até nos EUA, nos anos 1970, as ideias de Wilson e seus primeiros apoiadores enfrentaram fortíssimas resistências dos cientistas sociais, que os viam como defensores de um neodarwinismo social, e dos biólogos tradicionais, que também desejavam manter-se distantes das derrapagens subjetivas das humanidades. Mas lá hoje Wilson e sua sociobiologia estão consagrados, e divulgadores científicos/pensadores como Harari, mesmo no campo da história e da análise político-social, já têm alguma liberdade para utilizar as novas ferramentas vindas da biologia e adjacências. Para tomar um só exemplo dentre centenas, diz Harari:

Nas últimas décadas a pesquisa em áreas como a neurociência e a economia comportemental permitiu que cientistas hackeassem humanos e adquirissem uma compreensão muito melhor de como os humanos tomam decisões. (Harari, 2018, p. 41)

Entre nós, contudo, o meio acadêmico ainda tem sido incapaz de promover tal união de esforços. Do lado dos cientistas ligados aos estudos biológicos, existe a tendência a menosprezar os determinismos sociais e explicar tudo mediante uma programação natural da espécie humana. Do lado dos cientistas sociais, estes ainda se veem envolvidos em disputas ideológicas exclusivamente culturais. A ética do materialismo histórico rechaça a existência e, portanto, a tolerância com limitações instintivas e biológicas à criação de uma sociedade igualitária. Ao fazê-lo, priva suas formulações do precioso banco de dados já reunido sobre os sapiens pelas ciências da evolução humana e a neurociência. Há uma negação completa da "animalidade" da própria espécie, aqui no melhor sentido do termo, o de pertencimento constitutivo ao mundo natural.

No duelo aparentemente eterno entre esquerda e direita, predominante no campo das ciências humanas, ainda não se impôs a ideia de que a psicologia evolutiva da espécie humana fez de nós criaturas divididas entre imperativos contraditórios. Em seus livros, Wilson mostra-nos como, ao longo de milhares e milhares de anos, o homo sapiens introjetou em nível biológico a chamada "seleção multinível". Segundo ele, nossa evolução possui dois vetores contraditórios, que precisam estar em equilíbrio. A evolução interna do grupo, em última instância, sua sobrevivência, exige algum nível de competição entre seus membros, que desenvolvem diferentes aptidões e diferentes níveis de perícia no que fazem. Paradoxalmente, na competição entre os grupos, aqueles dominados pela ausência de altruísmo e pela exacerbação dos interesses individuais saem sempre perdendo e não sobrevivem, ou pelo menos pagam um preço muito alto para isso.

Para muitos na área das ciências humanas, o ideal de superação das mazelas sociais que afligem nossos povos parece incompatível com a ideia de algum nível de determinismo biológico, quando na verdade talvez seja o contrário: esta incompatibilidade ilusória pode ser justamente aquilo que até hoje impediu maior consenso sobre como superar tais mazelas. Como resolver um problema, se você nem admite sua existência? Como superar um obstáculo, se ele não entra nos seus cálculos de ação?

Como já ficou dito, abdicar do império do materialismo histórico puro, em que os rumos da coletividade não sofrem o aporte do determinismo biológico, é incômodo e até mesmo arriscado. Harari, às vezes, apoiado nesse intercâmbio entre biologia/ neurociência e humanidades, parece chegar a conclusões no mínimo temerárias:

Referendos e eleições sempre dizem respeito a sentimentos humanos [grifo dele], não à racionalidade humana. Se a democracia fosse questão de tomadas de decisão racionais, não haveria nenhum motivo para dar a todas as pessoas direitos iguais em seus votos - ou talvez nem sequer o direito de votar. (Harari, 2018, p. 70)

Mas o pulo do gato vem em seguida, quando, ao contrário do que faria um cientista social puro, revaloriza o lado mais instintivo da humanidade:

A democracia supõe que sentimentos humanos refletem um misterioso e profundo "livre-arbítrio", que este "livre-arbítrio" é a fonte definitiva de autoridade e que, apesar de algumas pessoas serem mais inteligentes do que outras, todos os humanos são igualmente livres. (Harari, 2018, p. 71)

21 lições para o século 21 é, portanto, um livro que aborda algumas das principais encruzilhadas de nosso momento histórico, analisando-as sob uma ótica interdisciplinar bastante moderna e arejada.

Embora lide com temas complexos, a leitura é simples, e o autor, muito didático. Se há algum defeito nesse último livro de Harari, este reside justamente na forma expositiva do livro. Há um certo molde estrutural que organiza talvez um pouco demais o fio dos raciocínios. Cada parte tem uma ementa; cada capítulo, uma tese, sua exposição em termos genéricos e algumas variações; cada subcapítulo, uma demonstração da tese em diferentes circunstâncias reais ou uma aplicação dela em uma circunstância específica. A previsibilidade dessa organização do discurso, ao longo de quase quatrocentas páginas, às vezes dá no leitor um certo cansaço, proveniente, entretanto, mais da forma de exposição do que das ideias discutidas, quase sempre muito interessantes. Isso, porém, é menos importante; não está na forma de narrar a grande novidade do livro.

 

Referências

Harari, Y. N. (2014). Sapiens: uma breve história da humanidade. Companhia das Letras.         [ Links ]

Harari, Y. N. (2016). Homo Deus: uma breve história do amanhã. Companhia das Letras.         [ Links ]

Harari, Y. N. (2018). 21 lições para o século 21. Companhia das Letras.         [ Links ]

Lacerda, R. (2018). Reserva natural. Companhia das Letras.         [ Links ]

Wilson, E. O. (2018). A evolução e nosso conflito interno. In E. O. Wilson, O sentido da existência humana. Companhia das Letras.         [ Links ]

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