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Ide

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Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

O OLHAR DE ULISSES

 

A odisseia de todos nós

 

The Odyssey of all of us

 

 

Celso Antonio Vieira de Camargo

Psiquiatra, psicanalista e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) - São Paulo / celsovieira@uol.com.br

 

 


RESUMO

Procuramos, neste trabalho, fazer uma aproximação à obra final de Bion, a trilogia Uma memória do futuro, a partir da Odisseia, de Homero e de Ulisses, de Joyce. Em todas essas produções, nota-se um esforço dos autores no sentido de busca do genuíno e do verdadeiro dentro de cada um de nós.

Palavras-chave: Bion, Joyce, Odisseia, Uma memória do futuro, Ulisses


ABSTRACT

In this paper, we try to establish some points of contact between Bion's final books, the trilogy A memoir of the future, and the Odissey by Homer as well Ulysses by Joyce. In all these productions, it's noticed an effort of searching the truth and the genuineness inside each one of us.

Keywords: Bion, Joyce, Odyssey, A memoir of the future, Ulysses


 

 

Mitos são narrativas acerca de deuses e heróis (conceito mais tradicional), mas também são, simultaneamente, uma metáfora ao nível da narração (Burkert, 1991). Esta última ideia nos parece muito útil para a psicanálise, usando-a com certa liberdade.

Os mitos, na medida em que são histórias, acumuladas durante longos períodos, acabam sendo também repositórios de experiências humanas valiosas. Esta vai ser a linha mestra que nos guiará neste percurso pela obra Odisseia, de Homero, e, mais além, em Bion.

No poema de Homero, destaca-se logo a busca pela identidade e por aquilo que é genuíno em cada um de nós.

Somos, nos quatro cantos iniciais, apresentados à Telemaquia, que é, em certa medida, a busca de Telêmaco pelo seu lugar no mundo dos adultos, passados que são vinte anos da partida de Odisseu para a guerra de Troia. E ainda sem notícias de seu retorno, ou de sua morte. Essa parte inicial nos conduz à dolorosa, mas enriquecedora, passagem da adolescência à maturidade. Telêmaco procura saber qual lugar ocupará neste mundo em que a figura do pai nebulosamente começa a se desvanecer no lusco-fusco do tempo, dimensão inevitável da vida em que tudo se desfaz.

No canto v, começamos a ter notícias de Odisseu e de todas as suas aventuras. Interessa-me aqui particularmente sua estada, durante sete anos, na ilha de Ogígia, onde é retido pela ninfa Calipso (cujo nome significa ocultar). Aqui, o relato nos informa que a ninfa tinha prometido a ele vida eterna e que jamais seria atingido pelas vicissitudes da velhice. Mas ele resiste à ideia de ficar. Num certo momento, os deuses decidem que é hora de ele partir. E a ninfa poderosa tem que se curvar ao desígnio dos deuses. Vai ao encontro de Odisseu, e a maneira como se defronta com ele é descrita de modo comovente.

Encontrou-o sentado na praia, os olhos nunca enxutos de lágrimas: gastava-se-lhe a doçura de estar vivo, chorando pelo retorno. E já nem a ninfa lhe agradava. Por obrigação ele dormia de noite ao lado dela nas côncavas grutas: era ela, e não ele, que assim o queria. Mas de dia ficava sentado nas rochas e nas dunas, torturando o coração com lágrimas, tristezas e lamentos. (Homero, 2010, p. 95, canto V)

Não é pouco o que o mito nos apresenta: Odisseu está aparentemente num paraíso, com a possibilidade de ganhar a vida eterna sem velhice, no entanto, ele recusa. Quer voltar a sua esposa e a sua ilha, a modesta e rochosa Ítaca. Seu desejo de volta é tão intenso, que acaba por mobilizar Atena, sua grande defensora, e também os outros deuses.

O que o move a acalentar durante anos esse desejo, recusando mesmo ser poupado da morte e da velhice?

Vou propor uma hipótese, ou uma conjetura imaginativa: Odisseu busca aquilo que sente como mais verdadeiro e mais genuíno dentro de si. É em Ítaca e junto com Penélope e seu filho que ele sente ser seu lugar, onde ele pode estar mais verdadeiramente em contato com aspectos genuínos de sua personalidade. É lá que ele sente que existe. É interessante ver o multiardiloso Odisseu, famoso por suas artimanhas, um dos arquitetos do famoso cavalo de Troia, com o qual os aqueus vencem a longa guerra, o guerreiro quase imbatível, capaz da façanha de nadar durante dois dias e duas noites em seguida, como vai surgir na narrativa que ele faz de sua própria história, curvar-se a este sentimento muito íntimo e de difícil expressão, embora simples de revelar-se: ele sente que é em Ítaca que ele existe, onde pode verdadeiramente ser ele próprio. Aqui, temos um sentimento que só pode ser aproximado intuitivamente: perceber-se vivo, real, presente, de maneira efetiva e genuína no mundo. Interessante observar que a narrativa inicia-se no presente, com as dificuldades de Telêmaco, depois temos a história de Odisseu, que se refere ao passado, e para terminar voltamos ao presente, quando Odisseu desembarca em Ítaca, e acaba por se confrontar com todos os pretendentes ao seu trono, e à mão de Penélope. Como estrutura, não é uma história linear, mas um conto com idas e vindas, com um trajeto bem moderno, embora tenha recebido uma versão escrita no século vii/viii a.C.

A história de Odisseu ecoa através dos tempos. Vamos encontrá-la como referência na Comédia, de Dante, escrita em 1254 d.C., também num romance singular do século XX (o Ulisses, de James Joyce), e penso que em Uma memória do futuro, de Bion.

Na Comédia, no canto XXVI do "Inferno", vamos ver Odisseu já distante de Ítaca, na oitava vala do oitavo círculo, o lugar dos maus conselheiros. O poeta florentino faz com que Odisseu, aqui somente tratado como Ulisses, pague por todos os seus supostos pecados. Teria ido parar no Inferno após um naufrágio, durante uma viagem que empreende já na velhice. Na obra de Dante, o peso da visão religiosa é muito grande, e, sendo um poeta latino, como Virgílio, coloca Odisseu ou Ulisses como um pecador digno de sofrimentos incessantes no Inferno. Afinal, Ulisses faz parte dos guerreiros que derrotaram Eneas, um dos precursores da fundação de Roma. Apesar do conteúdo fortemente religioso-cristão da obra de Dante, é curioso perceber como ele próprio também empreende uma viagem na Comédia, em busca de um rumo mais genuíno na sua vida. Tentar encontrar um sentido para a existência parece ser uma necessidade humana universal. Na religião, frequentemente o sentido é a recompensa de uma vida plena após a morte.

Na obra de Joyce, a referência a Ulisses-Odisseu é explicitada pelo autor. A proposta de James Joyce é ambiciosa, fascinante e beira a incompreensibilidade. Procura captar o fluxo da vida mental tal como sucede dentro de cada um de nós. É notável o último relato, o monólogo de Molly, em que toda a proposta de Joyce surge claramente. E após esse capítulo surgem as correspondências com a Odisseia de Homero. É difícil observá-las, e se Joyce não as tivesse relatado, provavelmente não as perceberíamos. Em trabalho anterior (Camargo, 2016), procurei explorar o episódio seis, que corresponderia à catábase de Odisseu, a descida ao Hades, o Inferno dos gregos e romanos.1 Tanto na Odisseia quanto na Eneida um episódio desse tipo é descrito. Na Eneida, além dos castigos e suplícios a que estão submetidos vários dos personagens descritos, também temos a fantasia da ressurreição das almas. Várias gerações de cidadãos importantes e fundadores do império e da república romana aguardam a hora de encarnar. Nas catábases, há sempre uma revelação, um destino que é descortinado, a rota que deve ser seguida. Aquilo que seria o destino mais genuíno do herói.

Na obra de Joyce, a descida ao Hades é representada pela ida de Leopold Bloom, um dos personagens centrais, ao enterro de um conterrâneo. Joyce procura trazer vários dos pensamentos comuns que nos ocorrem involuntariamente nessas situações, alguns repugnantes (como a imagem do rato emergindo de um túmulo), mas que podem surgir na consciência, e que, em geral, são censurados socialmente. Em Ulisses, tudo ocorre no intervalo de um dia, enquanto na obra de Homero, Odisseu leva dez anos no seu regresso. A meu ver, Joyce se ocupa da odisseia que cada um de nós vive a cada dia de nossa vida. Não percebemos tudo o que vivemos de um dia para outro, mas quando temos um intervalo de tempo mais longo, vemos quantas coisas aconteceram, quantas emoções foram vividas, e como a vida passa rapidamente.

Não posso deixar de comentar aqui um poema de Manuel Bandeira, em que esse lapso de tempo nos é transmitido quase de um só golpe. O título do poema é "Profundamente". Ele se inicia com a lembrança de uma noite de São João, lá na infância, em que o poeta adormeceu sem ver o fim da festa. Acordou no meio da noite, e tudo tinha sumido, restando apenas alguns balões errantes, e o ruído do bonde. Aqueles que, alguns segundos atrás, cantavam e riam, agora estão deitados e dormem profundamente. Então o poeta traslada-se magicamente para o presente, e recorda-se de várias figuras de sua infância, e angustia-se: onde estão todos eles? E a resposta inexorável: deitados, todos dormem profundamente. Muito tempo se passou, e muita coisa tinha acontecido.

Bandeira coloca-nos em contato com sua odisseia, seu contato com a morte, utilizando as mesmas palavras, com sentidos muito diferentes. Num primeiro momento, todos dormem profundamente, mas possivelmente acordarão para a vida no dia seguinte. No outro momento, o sono é eterno. Aliás, já os gregos colocavam Hipnos, o deus do sono, como irmão da morte.

Joyce, a meu ver, na sua escrita, também busca algo de genuíno, ao procurar retratar de maneira crua e direta o fluxo de nosso pensamento, sem as diversas mediações que vão se interpolando entre o momento em que o pensamento surge e a maneira como depois vamos conseguir exprimi-lo através da linguagem mais articulada. Interessa a ele estudar a emergência das ideias em nós, mais do que dar a elas um formato literário mais racional. Esta parece ser sua proposta: captar o pensamento "em estado puro", por assim dizer. Algo que se aproximaria da direção proposta por Freud quando falou em associações livres (que é diferente de nosso pensamento "mais civilizado"), embora Joyce não estivesse se ocupando da dinâmica da vida mental, e sim do fluxo contínuo das ideias dentro de nós. Depois de várias páginas sem pontuação, Molly acaba seu monólogo famoso assim:

e então ele me pediu quereria eu sim dizer minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todos perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims. (Joyce, 1975, p. 846)

Isso depois de várias páginas sem parágrafo nem pontuação. Por esse livro, James Joyce foi processado por pornografia nos Estados Unidos. Felizmente para a humanidade, foi absolvido por um juiz em Nova Iorque, que tinha uma visão mais ampla da vida.

O último autor que abordarei aqui é Bion. Ele também procura um contato consigo mesmo mais autêntico, mais genuíno, mais verdadeiro. Em The long week-end, logo no prefácio, ele nos diz que sua intenção era ser verdadeiro, o que percebia como uma ambição exaltada, já que sua longa experiência lhe dizia que o máximo que poderia conseguir seria ser "relativamente verdadeiro", e que percebia sua aproximação à verdade como sendo "estética". E, em seguida, acrescenta que busca uma verdade "psicanalítica" (Bion, 1982, p. 8). Escreve, então, o transcorrer de sua vida de 1897 a 1919, completando seu percurso, sua odisseia, num outro livro, All my sins remembered, que termina com um episódio muito doloroso, em que percebemos Bion ainda se esforçando para elaborar a perda de sua primeira mulher, Betty, que morre e deixa uma criança para ser cuidada, Parthenope (Bion, 1985). O nome deriva curiosamente de Nápoles. Bion decide dar esse nome a sua filha como uma lembrança do último acordo entre ele e Betty. E, aqui, ele cita Virgílio: Illo Vergilium me tempore dulcis alebat Parthenope... Numa tradução livre: "naquele tempo, eu, Virgílio, estava sendo nutrido pela doce Nápoles..." (Bion, 1985). Bion era leitor de Virgílio, autor da Eneida, por sua vez modelada, nos seis primeiros episódios, pela Odisseia, de Homero. Era também um observador perspicaz: sua descrição de um aspecto de seu pai e sua mãe revela uma capacidade de percepção muito sutil. "A atitude de minha mãe era certamente muito mais amorosa - genuinamente amorosa - que a de meu pai. Ela nos amava; ele amava a sua imagem de nós [refere-se a si próprio e a sua irmã]" (Bion, 1982, p. 28).

Mas é em Uma memória do futuro que a procura da vida psíquica mais primordial aparece mais claramente. Os títulos dessa trilogia já nos informam de muita coisa.

O primeiro livro chama-se O sonho. Temos aqui uma família inglesa, marido, mulher e empregados, esperando o aparecimento dos inimigos, invasores desconhecidos, cujo surgimento é iminente. Bion conduz-nos a um clima surreal, tal como acontece quando nos deitamos para dormir e nossa vida psíquica mais integrada começa a ceder lugar às imagens oníricas. Somos lentamente invadidos pelo sonho, e nossa consciência é subvertida pela vida onírica. E, de fato, no livro, os invasores surgem, e os patrões e empregados têm seus papéis subvertidos. Isso fica muito explícito na troca que se estabelece entre Rosemary, até então empregada, e Alice, a patroa. Alice passa a servir a Rosemary. Há um diálogo curioso entre elas, que, ao evoluir, nos deixa sem saber quem está falando. E alguém, possivelmente Rosemary, a certo ponto diz: "Eu sou Thais. Sou Helena de Troia. Fiz com que a humanidade visse a beleza. Fiz com que centenas de navios fossem ao mar e queimei as torres de Ílion" (Bion, 1975/1989, p. 43). Helena de Troia todos conhecem. Thais, somos informados em A key to "A memoir of the future" (Bion, 1981), é uma cortesã ateniense, amante de Alexandre, o Grande e do rei do Egito. São mulheres poderosas, mas que trazem em si a semente de algo destrutivo, tal como a Bíblia nos apresenta Eva, ou Hesíodo mostra Pandora (Hesíodo, 1989), que, ao abrir o jarro enviado por Zeus a Epimeteu, libera as doenças e sofrimentos da espécie humana, somente restando no jarro a expectação, ou esperança.

No capítulo 63, há um episódio confuso, em que vemos surgirem lembranças de um episódio de guerra, narradas pelo personagem "Captain Bion", mas misturadas com outros acontecimentos, como acontece nos sonhos, em que aos restos diurnos juntam-se reminiscências de vários períodos de nossa vida. Surgem também Bion, o personagem Eu Mesmo, dinossauros, Sherlock Holmes, Microft, Watson. Poderíamos dizer que Bion coloca no mesmo enredo aspectos racionais e investigatórios de nossa vida mental, ao lado de elementos internos ossificados e extremamente conservadores. Ele está se utilizando, nesses livros, da liberdade que alcançamos nos sonhos para colocar em ação vários pensamentos e emoções primordiais que passam pela nossa mente.

No capítulo 179, há esta curiosa fala atribuída ao personagem Homem:

Certos eventos e emoções são menos agradáveis que outros; esses, as pessoas esperam que não ocorram; elas desejam sentir sensações prazerosas que não cessem jamais. Fazem-se tentativas de manipular ideias e sentimentos para que entrem em conformidade com um princípio de perpetuidade. Em todos os domínios existe um desejo que nada venha a perturbar o senso de permanência. Tal desejo entra em conflito com a natureza do objeto estudado. É difícil conceber algo mais livre de freios e restrições do que os pensamentos e sentimentos. Porém, ao se fazer uma tentativa de conferir a eles uma expressão escrita, ou mesmo falada, a liberdade de pensamento já se desgastou. A liberdade de pensamento comunicado não é absoluta em momento algum. (Bion, 1989, p. 183)

Aqui temos uma das chaves para essa trilogia. Bion está tentando explicitar seus pensamentos da maneira mais livre possível, embora sabendo que uma liberdade absoluta não é possível. Ao escrevermos ou falarmos, modificamos o pensamento ou emoção original que vivemos.

Joyce tenta captar na escrita o fluxo da vida mental. Bion tenta captar o fluxo de nossa realidade psíquica, o que inclui nossas fantasias inconscientes, e para isso ele põe em jogo todos os vários personagens que, se prestarmos atenção, habitam dentro de todos nós. Com isso, Bion vai também nos dando uma imagem mitológica da nossa mente, colocando em ação nossa imaginação, nossos medos, nossas conquistas e nossas fantasias.

O título do segundo livro também é muito expressivo: O passado apresentado. Tal como ocorre nos sonhos, certos trechos do passado são reapresentados, como parte do trabalho de elaboração de experiências emocionais ainda não totalmente digeridas. No princípio, há um início de reorganização emocional. Alice (uma das personagens principais) como que desperta do sonho, e temos a impressão de que a racionalidade vai voltar a dominar. Mas é uma impressão fugaz. Logo tudo se desorganiza novamente ou, talvez fosse melhor dizer, assume um formato que a lógica não pode apreender. Aqui aparece pela primeira vez o personagem pa, que é identificado como P(sico)-A(nalista). As várias questões com as quais Bion, e qualquer um de nós se defronta, são colocadas. Sem respostas, naturalmente. Mas com nuances de evolução. Assim, no segundo livro, surge um diálogo entre pa e o Sacerdote, que termina mais ou menos assim - Rosemary aponta para pa e para o Sacerdote, e diz: "vocês dois chegaram a um acordo". Ao que o Sacerdote replica: "é um acordo mais aparente que real". E o Psicanalista: "nós chegamos à mesma cerca, ao mesmo tempo. E isto dá a ilusão de um acordo, que obscurece o fato que estamos em lados diferentes da cerca" (Bion, 1977/1996b, p. 228). Essa diferença é fundamental: a religião se ocupa da alma, como a psicanálise, mas o que cada uma dessas disciplinas quer dizer com esse termo é completamente diferente, embora em certos momentos possa haver alguma superfície de contato.

O terceiro livro é intitulado The dawn of oblivion (Bion, 1979/1996a), ou A aurora do esquecimento, na tradução para o português de Paulo Sandler. Tal como no sono, a madrugada vai trazendo o despertar, e com ele o esquecimento. Mesmo assim, Bion mantém a estrutura não racional da obra até praticamente o final, que termina com um diálogo entre Alice, um dos personagens, e pa.

PA: "Porque, a menos que o animal humano aprenda a se tornar um perito em discriminação, ele ficará sujeito ao perigo da escolha errada".

Alice: "Guerra nuclear, por exemplo".

PA: "não há rótulos anexados a maioria das opções; não há substituto para o crescimento da sabedoria. Sabedoria ou esquecimento - faça a sua escolha. Desta guerra, não se dá baixa jamais". (Bion, 1979/1996a), p. 201)

Assim, através desses três livros, Bion também nos informa a respeito da sua própria odisseia como ser humano. Como Joyce, ele parte do fluxo de nossa vida mental, sem os freios inevitavelmente impostos pela racionalidade, acrescentando todos os estranhos personagens que vamos vendo aparecer à medida que a trilogia se desenvolve, representantes de nossa vida psíquica mais profunda. A leitura é muito difícil, pois com nossa visão habitualmente lógica e racional não conseguimos apreender o sentido da escrita. Ele próprio nos informa ao final do terceiro livro: "durante toda minha vida tenho sido aprisionado, frustrado, perseguido por senso comum, razão, memórias, desejos e - o maior fantasma de todos - entender e ser entendido. Esta é uma tentativa de expressar minha rebelião, de dizer adeus a tudo isso" (Bion, 1979/1996a, p. 205).

Mas percebemos, ao longo da leitura (difícil) da trilogia, que Bion procura elaborar muitos acontecimentos de sua vida, ao mesmo tempo em que tenta colocar seus "pensamentos selvagens", ou seja, ideias audazes, que possivelmente não caberiam num livro mais acadêmico. Trata de problemas humanos reais, como essa discussão na última frase do terceiro livro, entre sabedoria e esquecimento. Este último pode nos levar à catástrofe. Negar a realidade pode até ser momentaneamente prazeroso, mas traz consequências terríveis.

Na nossa vida pessoal, podemos adquirir alguma sabedoria, certamente à custa de sofrimentos, ou podemos "esquecer", deixar de lado, e com isso sermos conduzidos a catástrofes. Devemos lembrar aqui que o crescimento também pode nos conduzir a uma satisfação pessoal muito grande: a alegria de existir realmente, com um contato verdadeiro com a vida - esta parece ser a trajetória empreendida por Bion, que nesses livros nos coloca em contato com sua intimidade, realidades pessoais, pensamentos surpreendentes, sobre si mesmo, mas também sobre nosso destino como seres humanos.

Não é uma obra para ser lida como um romance linear, pois não tem nenhuma característica sequencial. Não é uma história que tem um começo, se desenvolve e termina logicamente. Isso faz com que emprestemos aos livros um sentimento de frustração, de impaciência, mas essas emoções fazem parte da proposta: fazer com que o leitor se defronte com os sentimentos frustrantes envolvidos no crescimento e procure desenvolver suas próprias reflexões. Ao final, talvez possa sentir que evoluiu e ter toda a satisfação envolvida nisso.

Iniciei este trabalho com a Odisseia de Homero. Nela também vemos um homem sofrendo para alcançar algo que lhe parece mais verdadeiro para sua vida. Na Comédia de Dante, essa busca aparece novamente, com um colorido religioso marcante, o que certamente vai limitar o alcance de sua impressionante obra. Joyce busca expressar através da literatura o fluxo de nossa vida mental tal como ele é processado naturalmente.

Bion acrescenta a essa busca uma dimensão que só a psicanálise pode trazer: a intimidade de nossas fantasias, os aspectos ossificados de nossa personalidade, a criatividade correndo paralelamente à destrutividade, nossas aspirações à imortalidade, ao prestígio, a sentirmo-nos importantes, e finalmente a redução ao pó, destino final de toda a vida.

No capítulo onze de A aurora do esquecimento, ele cita um trecho de Cimbelino:

Nunca mais temas o calor do sol,
Nem as cóleras furiosas do inverno.
O teu dever cumpriste neste mundo,
Voltas ao lar, e recebes a paga.
Devem ao pó voltar moças e rapazes dourados
Como ao pó volta o limpa-chaminés.
Nunca mais temas a carranca dos grandes,
Fora do alcance do tirano estás.
Não mais cuidados de comer, vestir.
O caniço e o carvalho se equiparam,
Saber, talento, realeza. Tudo
Deve a isto chegar, tornar-se pó. (Shakespeare, 1984, p. 429)

Dante, Shakespeare, Joyce, Bion, tornaram-se pó. Seus livros, suas ideias, suas conjeturas imaginativas, no entanto, continuam vivas a nos enriquecer e vitalizar, permitindo que tenhamos acesso a nossa vida mental de maneira nova e criativa.

 

Referências

Alighieri, D. (1998). A divina comédia: inferno (I. E. Mauro, Trad.). Editora 34.         [ Links ]

Bandeira, M. (2007). Estrela da vida inteira. Nova Fronteira.         [ Links ]

Bion, W. R. (1981). A key to "A memoir of the future". Clunie Press.         [ Links ]

Bion, W. R. (1982). The long week-end. Karnak Books.         [ Links ]

Bion, W. R. (1985). All my sins remembered. Fleetwood Press.         [ Links ]

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Bion, W. R. (1996a). Uma memória do futuro: a aurora do esquecimento (P. C. Sandler, Trad., Vol. 3). Imago. (Trabalho original publicado em 1979)        [ Links ]

Bion, W. R. (1996b). Uma memória do futuro: o passado apresentado (P. C. Sandler, Trad., Vol. 2). Imago. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Burkert, W. (1991). Mito e mitologia. Edições 70.         [ Links ]

Camargo, C. A. V. (2016). Bion: transferência, transformações e encontro estético. Primavera Editorial.         [ Links ]

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Homero (2010). A odisseia (F. Lourenço, Trad., 8.ª ed.). Livros Cotovia.         [ Links ]

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Virgílio. (2018). Eneida (C. A. Nunes, Trad.). Editora 34.         [ Links ]

 

 

1 Ressalte-se que no Hades grego e romano há uma região, que é o lugar dos bem-aventurados, onde estão pessoas e personagens que vivem uma vida feliz (bem, razoavelmente feliz, sem sofrimentos. Aquiles habita esse lugar, mas se queixa amargamente de sua condição).

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