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versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021

 

O OLHAR DE ULISSES

 

O transbordar espontâneo de sentimentos poderosos: notas sobre fontes literárias na autobiografia de Bion

 

The spontaneous overflow of powerful feelings: notes on literary sources in Bion's autobiography

 

 

José Garcez Ghirardi

Professor associado da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV direito SP) - São Paulo / jose.ghirardi@fgv.br

 

 


RESUMO

Este texto adota a perspectiva dos estudos literários para examinar algumas das fontes literárias registradas por Wilfred Bion em sua autobiografia. Sugere-se aqui que a seleção de autores realizada por Bion revela uma leitura específica da tradição literária inglesa, que dá lugar central à proposta romântica e à sua crítica à vertente iluminista da modernidade. Argumenta-se, ainda, que o lugar de destaque ocupado pela poesia romântica dentro do cânone construído por Bion decorre de seu interesse nas estruturas alegóricas e metafóricas que caracterizam a dicção poética, em geral, e a dicção poética romântica, em particular.

Palavras-chave: Bion, poesia romântica, linguagem alegórica, modernidade


ABSTRACT

This paper adopts the standpoint of literary studies to examine some of the literary sources referred to by Wilfred Bion in his autobiography. It is argued that Bion's selection of authors points to a specific reading of the English literary tradition which puts center-stage the romantic poets and its critic of the enlightenment version of modernity. It is suggested that Bion's choices spring from his interest in the metaphorical and allegorical language characteristic of poetic diction, in general, and of romantic poets, in particular.

Keywords: Bion, romantic poetry, allegorical language, modernity


 

 

Nenhum poeta, nenhum artista em qualquer campo da arte, possui, sozinho,
seu sentido completo.
Sua importância, sua relevância, é a relevância de sua relação com poetas e
artistas mortos.
1
(Eliot, citado por Abrams, 2005b, p. 2537)

A afirmação de T. S. Eliot na abertura de Tradition and the individual talent, escrito em 1919, subverte, desde a raiz, os modos prevalentes de entender a criação literária no início do século XX. À perspectiva então hegemônica de que cada autor se insere em uma tradição imutável, Eliot opõe a ideia de que é o artista - o artista genuinamente inovador - quem, com sua obra, cria o campo de antecessores relevantes. Para o crítico, a reinterpretação individual do presente reconfigura e transforma representações coletivas do passado.

A obra de Eliot testemunha uma mudança radical na forma de compreender o sentido e o funcionamento dos textos literários. Ela antecipa seja as teorias críticas baseadas no ponto de vista do leitor, problematizando a suposta estabilidade do texto, seja a ascensão do fluxo de consciência como modo narrativo do gênero romance - como se vê, por exemplo, nas obras de Marcel Proust e de James Joyce.

Essa ênfase na singularidade do autor e em suas formas de apreender os discursos que moldam o imaginário coletivo se insere, por sua vez, no movimento mais amplo de mudança dos termos com que a modernidade articula a ideia de sujeito. Essa "virada expressiva", conforme sustenta Charles Taylor (1989, pp. 368-390), tem suas raízes na Europa Ocidental do século XVIII e se manifesta, com particular intensidade, na literatura do período. As revoluções de múltiplos níveis (político, econômico, social) que marcam a ruptura moderna têm como ponto comum a ideia de que "[o] que sou como self, minha identidade, é essencialmente definida pelo modo como as coisas têm significado para mim"2 (Taylor, 1989, p. 34).

Esse movimento em direção ao indivíduo e a suas questões internas constitui a alternativa romântica ao projeto iluminista que havia prevalecido como forma de moldar o espaço público depois das revoluções burguesas (Touraine, 1992, pp. 242-248). A razão cartesiana, com sua ambição de universalidade e neutralidade, dera lastro a um projeto de organização e de controle político-social que tinha por pedra de toque os papéis sociais e, de forma particular, a categoria também universal e neutra de cidadão.

Nesse projeto, as idiossincrasias individuais necessitavam ser neutralizadas no âmbito da vida pública, ficando sua manifestação - sempre controlada, mas a partir de outras dinâmicas - restrita ao espaço da intimidade e do privado (Foucault, 1999, p. 217). A denúncia do caráter problemático desse apagamento que os papéis sociais operam sobre as características individuais constituirá o cerne da produção artística de corte romântico.

Este artigo propõe que as predileções literárias registradas por Wilfred Bion em sua autobiografia revelam uma leitura específica da tradição literária inglesa, que dá lugar central à proposta romântica. Assim como o artista criador proposto por Eliot, Bion reconfigura o cânon a partir da originalidade de suas próprias intuições. A centralidade de autores como Blake, Wordsworth, Coleridge e Shelley, e a recorrência com que aparecem no texto de Bion3 permitem sugerir uma apreensão singular da tensão entre as matrizes iluminista e romântica da modernidade.

Propõe-se, também, que o lugar de destaque ocupado pela poesia romântica dentro do cânone construído por Bion, longe de ser acidental, decorre de seu interesse nas estruturas alegóricas e metafóricas que caracterizam a dicção poética, em geral, e a dicção poética romântica, em particular. Este texto adota a perspectiva dos estudos literários para examinar algumas das fontes que se tornaram relevantes para Bion esperando poder contribuir, desde esse ponto de vista, para o trabalho dos especialistas que se dedicam à obra desse grande psicanalista.

Além dessa introdução, o artigo se estrutura em três seções: a primeira, Aquele que deseja e não age, gera a peste, apresenta algumas das premissas que informam o projeto literário romântico na Inglaterra do final do século XVIII e início do século XIX. A segunda, O olhar interior, que é a delícia da solidão, aponta a importância da metáfora e da alegoria como estratégias de cognição e expressão do sujeito. Ambas são seguidas por uma breve seção de Considerações finais.

 

Aquele que deseja e não age, gera a peste: a vertente romântica do projeto moderno

Comentando a autobiografia de Wilfred Bion, Anne Lise Scappaticci sustenta que a estrutura profunda da narrativa bioniana se articula em torno da "distância entre os vértices no indivíduo (intrapsíquico) e no grupo (interpessoal)" (2015, p. 182). O espaço dialético que a autora detecta na escrita de Bion aponta para a sensibilidade particular do autor em relação a uma característica fundante das sociedades modernas: elas se estruturam a partir de uma inédita clivagem entre self e sociedade.

O mundo medieval desconhecia essa cisão, uma vez que um e outro vértice se fundiam por meio de um amálgama entre o religioso, o político e o social que não permitia conceber uma dicotomia entre o sujeito e sua comunidade. Como observa Alasdair MacIntyre, os estamentos medievais não eram "características acessórias dos seres humanos, que poderiam ser descartadas para se descobrir o 'verdadeiro eu'" (2007, p. 79), isto é, eles não eram um externo, posterior ao indivíduo. Existir como sujeito era pertencer ao estamento.

Essa unidade se dissolve com o advento da modernidade, na esteira do "desencantamento do mundo" que, a um tempo, resulta e impulsiona as revoluções burguesas. A gramática moderna para a subjetividade apresenta termos marcadamente diversos de sua antecessora medieval e separa, em fronteiras bem demarcadas, o sujeito de seu entorno (Giddens, 1991, p. 14). A proposta filosófica de Descartes, assim como o bom selvagem de Rousseau, por exemplo, não são compreensíveis sem o estabelecimento dessa disjuntiva fundamental entre o "intrapsíquico" e o "interpessoal", para retomarmos a formulação de Scappaticci. Instalada essa separação, surge imediatamente a consciência de uma tensão permanente nesses dois polos.

Essa tensão solicita novos modos de controle e de organização: um sujeito que não se subsume ao coletivo é sempre, potencialmente, uma ameaça à coesão do corpo social. A preocupação onipresente com o "homem natural" - isto é, com o ser humano não moldado pelos regramentos sociais - se torna, por isso, um dos temas centrais da teoria política da primeira modernidade. O exemplo provavelmente mais destacado dessa perspectiva é Leviatã, a obra clássica de Hobbes, publicada em 1651. Nessa obra, Hobbes localiza no desejo, visto como elemento constitutivo do homem natural, a causa primordial da ameaça que cada indivíduo representa para a comunidade política:

Se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro... (Hobbes, 2019, p. 46)

Para controlar esse desejo e exorcizar a possibilidade de os homens se destruírem mutuamente em nome de sua preservação ou deleite, Hobbes sustenta que é necessário criar um mecanismo normatizador e repressor: o Leviatã, imagem do Estado e de seu monopólio da legislação e da violência.

Na dimensão política (lato sensu) do projeto moderno, estabelece-se, assim, uma lógica de disciplina que exige o controle dos desejos e o apagamento, no espaço público, das características individuais, uma vez que elas são vistas como potencialmente nocivas à unidade do coletivo. Simultaneamente, esse processo civilizador demanda fazer prevalecer a vontade ao desejo e afirmar a primazia dos papéis sociais, com todos os seus múltiplos códigos, etiquetas, injunções e interditos, sobre as idiossincrasias individuais. Ao descrever esse processo em seu clássico O declínio do homem público, Richard Sennett observa que, nas sociedades modernas "[o] comportamento 'público' é, antes de tudo, uma questão de agir a certa distância do eu, de sua história imediata, de suas circunstâncias e de suas necessidades" (2014, p. 221).

A vertente romântica da modernidade rejeita em termos inequívocos essa injuntiva fundamental de "agir a certa distância do eu". Ela se insurge contra uma proposta de civilidade a que acusa de, em nome da harmonia e do progresso social, operar uma redução inaceitável do horizonte de desenvolvimento da vida humana. A artificialidade da civilização é comparada negativamente, pelos românticos, à espontaneidade da natureza, assim como a linearidade da razão cartesiana é apontada como inferior à riqueza das emoções espontâneas.

Para os românticos, a sociedade que se erige sobre as bases da filosofia iluminista, do utilitarismo e das formas estatais de controle e repressão, longe de ser um avanço em relação a outros modos de vida, é uma forma de perverter e destruir a misteriosa riqueza do mundo natural e, de maneira ainda mais grave, de empobrecer nossa própria natureza interior, aniquilando, pelo totalitarismo da razão, nossa capacidade de desenvolver as "linguagens mais sutis" (Taylor, 1989, pp. 393-401) de que necessitamos para entender e expressar o nosso verdadeiro self.

A literatura será o canal privilegiado para a construção e propagação dessa perspectiva alternativa, bem como para a crítica à matriz iluminista e à política de controle e repressão que ela solicita. Serão os textos literários, sobretudo a poesia, que difundirão uma visão que prioriza a singularidade fluida e eternamente cambiante dos seres humanos em detrimento da rigidez dos papéis e de seus interditos. Serão os poetas românticos que sustentarão, de maneira radical, que a possibilidade de realização do humano deriva não da heteronomia imposta pela sociedade, mas pela celebração de nosso desejo e de nossa radical autonomia.

"Olhe em seu coração e escreva" (Sydney, citado por Abrams, 2005a, p. 976): o verso famoso de Sydney em Astrophil and stella (ca. 1580) anuncia os primeiros movimentos dessa transformação fundamental ao afirmar que, para encontrar a verdadeira poesia, o poeta deve abandonar as musas exteriores e buscar inspiração dentro de si. No mesmo período, Shakespeare denuncia o caráter postiço das convenções poéticas (em seu soneto 130) e expressa, por meio de Polônio, a ideia de que o princípio para vivermos bem com os outros é sermos fiéis a nós mesmos (Hamlet, I, 3).

A partir do final do século XVIII, essas intuições de Sidney e Shakespeare ganharão crescente acolhida e se tornarão matriciais para moldar uma nova compreensão de humano. Blake, voz pioneira entre os românticos, oferece uma das versões mais bem estruturadas dessa celebração do self face aos imperativos do social. Provérbios do inferno (1789) pode ser lido como um libelo em defesa do desejo como caminho para a epifania pessoal. Seus aforismas iconoclastas sintetizam, com força incomparável, a crença na sacralidade de cada sujeito:

Aquele que deseja e não age, gera a peste.
A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria.
As prisões são feitas com as pedras da Lei e os bordéis com os tijolos da Religião.
Nenhum pássaro voa alto demais se voa com as próprias asas.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
É melhor assassinar uma criança em seu berço do que nutrir desejos não realizados.
(Blake, citado por Abrams, 2005b, pp. 113-115)

O casamento do céu e do inferno, título da obra em que aparecem esses provérbios, nos indica, entretanto, a complexidade da perspectiva de Blake e sua compreensão das ambivalências do desejo. Avessa a qualquer tipo de simplificação, sua poesia coloca em cena, a todo instante, o caráter necessariamente dialético das relações entre heteronomia e autonomia, entre sociedade e self, que se revela no equilíbrio delicado e sempre provisório que se estabelece entre os opostos do céu e do inferno. Na poesia de Blake, nenhum dos termos dá conta, isoladamente, da riqueza interior dos indivíduos.

O mesmo movimento se vê em outra de suas coletâneas poéticas, Canções da inocência e canções da experiência (1789), obra em que ele busca representar dois estados contrários da alma humana. A oposição entre as poesias O cordeiro (em Canções da inocência) e O tigre (em Canções da experiência) é talvez a instância mais emblemática da perspectiva do poeta sobre esses polos a um tempo antagônicos e complementares, sempre irredutíveis um ao outro, sempre definidos a partir de seu oposto.

A intuição de Blake sobre as imbricações necessárias entre self e desejo, bem como sua intuição sobre a relação inescapável entre realidade interior e mundo exterior, seria elaborada pouco tempo depois por William Wordsworth. No prefácio que escreve para a segunda edição (1801) de Lyrical ballads (1798), Wordsworth elabora uma teoria poética que busca dar conta da antinomia produtiva de Blake. Esse texto apresenta uma definição de poesia genuinamente revolucionária: "A poesia é o transbordar espontâneo de sentimentos poderosos: ela tem sua origem na emoção relembrada na tranquilidade"4 (Wordsworth, citado por Abrams, 2005b, p. 273).

A associação entre poesia e emoção, tomada muitas vezes como axiomática por leitores de hoje, representava uma inovação radical no início do século XIX. As epopeias, os sonetos de corte petrarquianos, assim como as elegias e a pastoral eram as formas poéticas mais correntes, todas rigidamente codificadas. Elas não se propunham a expressar sentimentos ou emoções "reais" de quem as escrevia, mas a realizar a persona implícita em cada um desses gêneros.

Nessas modalidades poéticas, a persona que enuncia o discurso não se confunde com a pessoa do poeta; essa cisão é tão marcada, de fato, que as noções de autoria que assumimos contemporaneamente não existiam até a modernidade. Os contemporâneos de Shakespeare, por exemplo, acreditavam ser absolutamente descabido assinar os sonetos que compunham - o que explica a dificuldade presente em atribuir, com algum grau de segurança, a autoria aos poemas da época (Marotti, 1995, pp. XI-XII). O material da poesia, até aquele momento, era o repertório comum de topoi e imagens associados aos diferentes gêneros literários.

O Prefácio é o primeiro texto a sustentar, categoricamente, que o verdadeiro objeto da poesia não são as convenções literárias externas, mas a emoção que o poeta é capaz de sentir internamente. A teoria poética de Wordsworth está em linha e reforça a noção de prevalência do singular, do interior e do emocional sobre o coletivo, o exterior e o racional. Ela participa da "virada expressiva" a que se aludiu anteriormente. A tarefa do poeta é a de olhar para dentro de si, como propusera Sidney, tendo as emoções por guia nesse rico labirinto interior.

A centralidade das emoções deriva, por sua vez, da convicção de que elas são as manifestações mais diretas da singularidade absoluta de cada indivíduo. Seu escrutínio ajuda a revelar aquilo a que Steven Mullaney denomina "estruturas de sentimento" (2015, pp. 22-26) e permite o acesso aos mistérios do inner self. À universalidade da razão iluminista, Wordsworth contrapõe a singularidade do sentimento. Para ele, "nosso intelecto curioso distorce a beleza das coisas": a verdadeira sabedoria só poderá ser atingida se, fechando os livros e a racionalidade tacanha de seu discurso verbal, "sairmos para a luz" e deixarmos "a Natureza ser nossa mestra".5 É apenas a partir dessa experiência não contaminada pelo intelecto que podemos alcançar a autorrealização profunda que vem da apreensão sensorial da beleza.

Importa observar, entretanto, que Wordsworth apresenta as emoções como matéria-prima da poesia, mas que aponta, simultaneamente, a necessidade de o fazer poético se realizar a uma certa distância dessa experiência primal. O texto poético não é a emoção, mas sua expressão, e sua expressão codificada. Para ser compreensível, o inefável das sensações e dos sentimentos individuais necessita ser traduzido para o coletivo da linguagem.

A poesia romântica inaugura, assim, um espaço de análise interior (já prenunciado no trabalho dos confessores e nos detalhados exames de consciência do século XVII) e de busca de compreensão das próprias paixões que se tornaria hegemônica nos séculos seguintes. É esse desejo de compreensão que ilumina a segunda parte da definição revolucionária: a poesia não é apenas "o transbordar espontâneo de sentimentos poderosos", mas "tem sua origem na emoção relembrada na tranquilidade". Ela nasce no sentimento, mas só se realiza no discurso. Para realizar a alquimia de transformar o primeiro no segundo, metáforas e alegorias são elementos imprescindíveis.

 

O olhar interior, que é a delícia da solidão: perspectiva romântica e linguagem metafórica

O argumento de Eu vagava solitário como uma nuvem, de Wordsworth, é emblemático desse movimento que vai da experiência à introspecção, da introspecção à expressão. Nessa poesia, o poeta caminha sem rumo certo quando, inesperadamente, seu olhar discerne um grande campo de narcisos amarelos, próXImos a um lago azul, dançando suavemente ao ritmo da brisa suave. A beleza do momento é tão absoluta que ele não pode senão sentir-se absolutamente pleno, e plenamente feliz.

A profundidade com que a emoção desse encontro o transforma como sujeito só será percebida, entretanto, mais tarde quando é "relembrada na tranquilidade":

Olhei - e olhei - mas pouco sabia
Da riqueza que tal cena me trazia.
Pois quando me deito num torpor,
Estado de vaga suspensão,
Eles refulgem em meu olho interior
Que é para a solitude uma bênção;
Então meu coração começa a se alegrar,
E com narcisos põe-se a bailar. (Wordsworth, 2017)

A experiência vivida se torna parte do poeta, estruturando e dando sentido à sua vida interior. Ele se descobre a si mesmo na identificação com a natureza, com sua espontaneidade e sua força vital. A natureza é a matriz de compreensão do self, mas o caminho que ela indica só pode ser trilhado por meio da reflexão tranquila. Nem a experiência, nem a reflexão podem isoladamente produzir a plenitude dessa autocompreensão. A união entre uma e outra se dá por meio da linguagem alegórica.

Paul Ricoeur aponta justamente para a tensão intrínseca a todo discurso metafórico: "O 'é' metafórico significa, ao mesmo tempo, 'não é' e 'é como'. Se isto é exato, estamos autorizados a falar de verdade metafísica, mas em um sentido igualmente 'tensional' do termo 'verdade'" (1975, p. 11).6

Por essa natureza ambivalente, a linguagem metafórica como índice do inefável serve perfeitamente ao projeto romântico de traduzir, sem falsear, a complexidade da experiência interior. A relação equívoca das metáforas desmascara a pretensão descritiva da linguagem ao mesmo tempo que permite construir sentidos provisórios, possibilitando diversas configurações entre o conotativo e o denotativo. O mesmo vale para a alegoria, que amplia para o nível de sistema o deslocamento que as metáforas produzem.

As obras de Coleridge exploram deliberada e magistralmente as possibilidades dessa coesão instável que é a alegoria. Desde o título, Kubla Khan ou Uma visão em um sonho: um fragmento, evidencia esse esforço de evocação e deslocamento, sobrepondo sonho e visão, profecia e descrição, passado e futuro em um discurso que se afirma, desde o início, incompleto. A visão interior de Coleridge reflete especularmente a visão exterior de Wordsworth em Eu vagava solitário como uma nuvem, mas resulta igualmente reveladora.

A mesma lógica preside à composição de A balada do velho marinheiro, em que a figura enigmática de um albatroz - fonte, simultaneamente, de salvamento e maldição para uma embarcação perdida nos mares - serve como centro de gravidade para as múltiplas possibilidades de significação da alegoria. Também aqui, Coleridge adota uma dicção hermética e desenvolve uma narrativa em que a fusão de indícios de loucura e de sanidade, de demência e de clarividência, indica a profundidade do mistério do sujeito que as enuncia.

A aproximação entre sonho, alegoria e sentidos ocultos aparece também em Escuridão, que Byron publica em 1816 e que mereceu a tradução de Castro Alves. A versão do romântico brasileiro aparece em Espumas flutuantes (1870):

Tive um sonho que em tudo não foi sonho!
O sol brilhante se apagará; e os astros,
Do eterno espaço na penumbra escura,
Sem raios e sem trilhos, vagueavam.
A terra fria balouçava cega
E tétrica no espaço ermo de lua.
A manhã ia, vinha... e regressava...
Mas não trazia o dia! Os homens pasmos
Esqueciam no horror dessas ruínas
Suas paixões. E as almas conglobadas
Gelavam-se n'um grito de egoísmo
Que demandava - luz. (Castro Alves, 2013, p. 139)

O desenvolvimento do poema, a exemplo das obras de Coleridge citadas anteriormente, é extenso e repleto de imagens que insinuam um sentido velado por baixo da superfície do verso. A paisagem de desolação apresentada por Byron nesse "sonho que em tudo não foi um sonho" instiga a construir uma leitura alegórica dessa escuridão que cobre o mundo sem permitir, no entanto, qualquer interpretação definitiva.

A poesia romântica inglesa que tanto fascinava Bion faz, assim, recurso constante à metáfora e à alegoria como forma de estruturar o discurso e de permitir ao sujeito, superando a linearidade da racionalidade cartesiana e de seus imperativos de estruturação lógica, revelar-se e expressar-se como mistério e singularidade.

 

Considerações finais: notas sobre fontes literárias na autobiografia de Bion

a narrativa autobiográfica é como contar um sonho ou uma sessão. Está comprometida com a busca de verdade e, assim, não segue as regras do senso comum, a cronologia, a lógica, ou a razão, a resolução de conflitos ou, ainda, o pressuposto de eliminar ou evitar a tensão. A tensão é uma condição intrínseca. (Scappaticci, 2018, pp. 229-230)

As observações de Scappaticci (2018), em "A autobiografia de Wilfred Bion: psicanálise, uma atividade autobiográfica", sugerem um diálogo profundo e complexo entre a perspectiva de Bion e as premissas que informam a poesia romântica de que ele era leitor assíduo. As ideias de que narrativas autobiográficas apresentam um aspecto onírico e de que buscam articular uma verdade que se desvincula das regras do senso comum - retomando, assim, a proposta de Ricouer sobre uma verdade tensional - coadunam-se sem sobressaltos, como se procurou indicar aqui, com os pressupostos que informam a vertente romântica do projeto moderno.

Blake, Wordsworth e Coleridge, assim como Keats, Shelley e Byron colocam em xeque, com a força fascinante de seus versos, o triunfalismo iluminista e sua crença em uma razão pura, universal e soberana, liberta finalmente das trevas, do erro e da superstição. Eles desestabilizam o discurso ufanista da civilização como progresso e da ciência como libertação. Na poesia dos românticos, o sujeito humano é irredutível aos ditames da lógica cartesiana e seu sentido é sempre fugidio, sempre provisório.

O sujeito suposto nesses versos é, desse modo, o antípoda do "eu" suposto pelo cogito de Descartes, que sugere uma consciência transparente a si mesma, perfeitamente aparelhada para entender o mundo. A persona dos românticos é sempre um mistério, para si e para os outros, uma tensão permanente entre desejo e consciência, intuição e expressão, imaginação e observação. Ela é a "feroz simetria" de O tigre, a um tempo terror e fascínio.

Uma segunda dimensão do diálogo entre proposições de Bion e a proposta romântica pode ser vista no esforço de compreensão desse self misterioso, a um tempo solitário e relacional. A tensão entre o "transbordar de emoções" enquanto riqueza inquestionável e a necessidade de "lembrá-las na tranquilidade" para que possam ser transformadas em expressão e em discurso para o outro molda profundamente o trabalho de todos os poetas citados. A todo tempo, encontra-se neles um esmero, quase uma obsessão, pelos aspectos formais do poema: o ritmo, a rima, a cadência sonora.

Esse cuidado não é uma negação do caráter inefável do que se sente interiormente, mas uma condição para torná-lo apreensível, ainda que limitada e provisoriamente, por meio de sua representação metafórica e alegórica. Esse movimento não será estranho a um trabalho de teorização sobre a subjetividade humana que procura combinar o rigor da reflexão analítica e o respeito ao mistério do individual. É possível sugerir que a literatura, para Bion, tenha sido um elemento central para a construção de um olhar que permitisse superar essa aparente antinomia.

 

Referências

Abrams, M. H. (2005a). The Norton anthology of English literature (Vol. 1, 8.ª ed.). Norton.         [ Links ]

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Scappaticci, A. L. S. A. (2018). A autobiografia de Wilfred Bion: psicanálise, uma atividade autobiográfica. Jornal de Psicanálise, 51(95),229-242.         [ Links ]

Sennett, R. (2014). O declínio do homem público (L. A.Watanabe, Trad.). Record.         [ Links ]

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Touraine, A. (1992). Critique de la modernite. Fayard.         [ Links ]

Wordsworth, W. (2017). Solitário qual nuvem vaguei. Poesias Preferidas. https://bit.ly/3ALze42        [ Links ]

 

 

1 "No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his appreciation is the appreciation of his relation to the dead poets and artists" (tradução livre do autor).
2 "What I am as a self, my identity, is essentially defined by the way things have significance for me" (tradução livre do autor).
3 A presente análise toma por base o trabalho da professora e psicanalista Anne Lise S. Silveira Scappaticci, reconhecida especialista em Bion, tradutora e estudiosa de sua biografia. Agradeço à professora Anne Lise a oportunidade de aprendizado que me proporcionou ao longo de nossos diálogos em preparação para o evento As matrizes literárias no pensamento de Bion, realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP), em 05 de junho de 2021.
4 "Poetry is the spontaneous overflow of powerful feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility" (tradução livre do autor).
5 "Our meddling intellect/ Mis-shapes the beauteous forms of things"; "Come forth into the light of things,/ Let Nature be your teacher" (versos de The tables turned [1789], de Wordsworth, citado por Abrams, 2005b, p. 252 - tradução livre do autor).
6 «Le 'est' métaphorique signifie à la fois 'n'est pas' et 'est comme'. S'il en est bien ainsi, nous sommes fondé à parler de vérité métaphorique, mais en un sens également 'tensionnel' du mot 'vérité» (tradução livre do autor).

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