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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

O OLHAR DE ULISSES

 

A sedução da morte: reações de aniversário, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa E Friedrich Nietzsche

 

The seduction of death: anniversary reactions, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa and Friedrich Nietzsche

 

 

Roosevelt M. S. Cassorla

Membro efetivo das Sociedades Brasileiras de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e de Campinas (SBPCAMP). Professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP) - Campinas / rcassorla@uol.com.br

 

 


RESUMO

A partir do estudo biográfico do poeta brasileiro Álvares de Azevedo formulam-se hipóteses sobre fatores que o influenciaram a prever sua morte. Estudam-se processos identificatórios que se manifestam através de associações com datas, idades e outros fatores temporais, situações denominadas reações de aniversário. Supõe-se que Álvares de Azevedo não pôde atingir o quinto ano do curso jurídico, identificado com a morte de seu irmão e de colegas de faculdade, ocorridas no quarto ano. Em seguida abordam-se fatos similares ocorridos com o escritor Guimarães Rosa, morto três dias após sua posse na Academia Brasileira de Letras, e com o filósofo Friedrich Nietzsche, identificado com seu pai. O artigo é encerrado com o relato de situações clínicas.

Palavras-chave: reações de aniversário, luto, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa, Friedrich Nietzsche


ABSTRACT

Based on the biographical study of the Brazilian poet Álvares de Azevedo, hypotheses are formulated about factors that influenced him to predict his death. Identification processes that are manifested through associations with dates, ages and other temporal factors are studied, situations called anniversary reactions. It is assumed that Álvares de Azevedo could not reach the fifth year of the law school, identified with the death of his brother and fellow students, which occurred in the fourth year. Next, similar facts occurred with the writer Guimarães Rosa, died three days after his inauguration at the Academia Brasileira de Letras, and with the philosopher Friedrich Nietzsche, identified with his father, are discussed. The text ends with the report of clinical situations.

Keywords: anniversary reactions, mourning, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa, Friedrich Nietzsche


 

 

Freud nos mostra como nos mitos e contos de fada a terceira mulher a ser escolhida é a mais interessante (Cordélia, Afrodite, Gata Borralheira, Psique). Elas são belas, porém pálidas e silenciosas. Freud demonstra que representam a morte "que ninguém escolhe, afinal, pois dela cada um se torna fatalmente vítima" (1913/2010b, p. 312). Por formação reativa se transforma na "mais bela, a melhor, a mais desejável e mais digna de amor entre as mulheres" (1913/2010b, p. 313), deusas do amor. Na verdade, as três mulheres representam os

laços inevitáveis que o homem tem com a mulher; com a genitora, a companheira e a destruidora: ou as três formas que assume para ele a imagem da mãe, no curso da vida: a própria mãe, a amada, por ele escolhida segundo a imagem daquela, e enfim a mãe Terra, que de novo o acolhe em seu seio. (Freud, 1913/2010b, p. 314)

A mulher sedutora que atrai para a morte é representada pelas sereias frente às quais Odisseu escapa colocando cera em seus ouvidos e sendo amarrado ao mastro do navio (Homero, 2014). Meneses (2020) nos recorda Adorno, que interpreta esse mito como o caminho para o desenvolvimento do eu. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao mito do Gênesis. A serpente (que tem analogia com as sereias, a mãe d'água, a Esfinge) estimula curiosidade. O preço a pagar é a expulsão do paraíso, que nada mais é que a tomada de consciência da morte. Essa tomada de consciência é a morte da fantasia de imortalidade, da fusão permanente com o objeto primário, quando, miticamente, não há necessidades nem desejos (Cassorla, 2010). Logo, a morte sedutora é bifronte (assim como a pulsão de morte): atrai para o Nada (que é sedutoramente confundido com o Tudo) e, ao mesmo tempo, estimula mudanças catastróficas onde se abandona o status quo rumo à capacidade de dar novos significados ao mundo e à vida.

A possibilidade de que esse desligamento necessário se transforme em Nada (Tudo) nos mostra o perigo sedutor dos cantos de sereia. Sabemos que o suicídio envolve fantasias desse tipo - de paraíso, encontro com Deus, retorno ao útero materno, volta à mãe Terra (Cassorla, 2019).

Este artigo se debruça sobre fatores inconscientes que nos fazem pensar nessa sedução, promessa de uma vida idílica que nos afasta do sofrimento. Em particular estudaremos sua relação com o tempo e os aniversários.

Inicialmente busco levantar hipóteses, do ponto de vista psicanalítico, sobre aspectos da vida e da obra, e principalmente da morte do poeta brasileiro Álvares de Azevedo.

Sabemos que o psicanalista lida, na clínica, com fatos conscientes e inconscientes transformados através dos vínculos emocionais que repercutem no campo analítico. Quando nos aventuramos pela psicanálise aplicada à literatura ou outras produções sociais e artísticas, não podemos ir além de hipóteses cuja validação deixa a desejar.

Eventualmente, o aprofundamento na observação do material (artístico, por exemplo) pode alterar ou ampliar as hipóteses iniciais, mais ou menos da mesma forma que ocorre no trabalho clínico psicanalítico. A grande diferença é que o objeto a ser observado é estático, exceto no sentido de que o observador modifica sua percepção à medida que o conhece.

Penso que o artista original, ao amadurecer, deixa de lado o aspecto imitativo necessário para o principiante. Consegue, através de sua obra, criar representações simbólicas que são fruto do contato genuíno com aspectos internos que buscam dar significado artístico a determinadas realidades, por vezes obscuras. Esses significados repercutem emocionalmente no público, estimulando-o a encontrar novas conexões emocionais que o fazem sentir-se mais vivo, desvelando e ampliando sua capacidade criativa. Sentiremos admiração e gratidão pelo artista, que nos permitiu essa revelação.

Álvares de Azevedo era um adolescente, e chama a atenção sua capacidade de representar recônditos misteriosos da alma de uma forma incomum para um jovem. Existem dados biográficos razoáveis (Azevedo, 1862; 1982; Franchetti, 1988; Rocha, 1981) que estimulam nosso interesse especulativo. No entanto, suspeitamos de que se trata de relatos idealizados impactados por sua morte precoce.

O poeta faleceu com 20 anos e 7 meses, e a maior parte de sua obra foi escrita, febrilmente, no ano que antecedeu sua morte. Tentaremos mostrar, adiante, que o poeta sabia, inconscientemente, que estava prestes a falecer.

A avaliação crítica de sua obra deve ser deixada para os especialistas. No entanto, apresentaremos alguns trechos de seus poemas, no intuito de introduzir o tema principal deste artigo.

É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos loiros.
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto;
Nessas órbitas ocas, denegridas,
Como era puro seu olhar sombrio!

Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoula a mirra incandescente. (Azevedo, 1862, p. 220)

A morte é um dos temas prediletos do poeta. O viver fogoso, o pensamento animado, a beleza do rosto se transformam em cinza, caveira, algo medonho, cujo destino é o lodo. Chama a atenção o tom firme, enérgico, que denota enfrentamento pouco ressentido, somado a uma tristeza, não melancólica, como de aceitação dos fatos da vida.

Continua:

A vida é um escárnio sem sentido
Comédia infame que ensanguenta o lodo
Há talvez um segredo que ela esconde;
Mas esse a morte o sabe e não revela.
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mão entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo...
E a terra sepulcral não respondia. (Azevedo, 1862, pp. 221-222)

Aqui a raiva ressentida é mais clara. Agora aparece a mãe, outro dos personagens favoritos de Álvares de Azevedo. A mãe que perdeu o filho lhe oferece o seio, e este não responde. Não será difícil para o psicanalista imaginar que o poeta se refere a uma relação objetal na qual a mãe morta se confunde com o bebê.

Os temas morte e mãe se vinculam à mulher, amada e odiada. A mulher é santa e pura, diáfana e adormecida, donzela intocável com quem se sonha amores impossíveis; e prostituta, mulher podre, enlameada e suja, insaciável e que não sacia. Sabemos que o adolescente revive o nascimento psicológico que, quando perturbado, dificulta a dessimbiotização traumatizando a triangularidade edípica (Cassorla, 2017). A mãe traidora e puta faz parte do casal parental que se diverte sadicamente enquanto o bebê excitado se sente abandonado na sujeira.

No mesmo poema, quase imperceptivelmente, o poeta deixa a mãe enlutada e nos apresenta a prostituta.

Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.

...

Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?

Vem, pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se ainda podes amar, ergue-te ainda
Une teu peito ao meu, pálida sombra. (Azevedo, 1862, pp. 223-224)

A prostituta se torna bela e fria, e é comparada a uma Madona descorada, aproximando-nos da mãe morta e mortífera, pálida sombra. O poeta vai suspirar em seu seio, com seus lábios doloridos e febris. Quase sempre essa mulher, que ele apenas pode beijar, está adormecida. O acolhimento ao seio ou em seus joelhos (deslocamento do útero), idealizado, é vivenciado também como moribundo.

Porventura dormi... Meu Deus! Que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei!

Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou... Amei... Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos. (Azevedo, 1862, p. 225)

Após o amor, o poeta parece saciado, mas é mentira, a sede continua. A oscilação entre o amor e sua falta (que tenta deslocar para Madona e prostituta pecadora) o deixa confuso. A culpa se mescla com a pureza idealizada, tanto da mulher como dele mesmo. No entanto, o gozo termina com a morte. Ou melhor, a morte se confunde com o gozo, como veremos adiante.

- Que tens? desmaias? Que tens mancebo?

- Nada. É cedo ainda. Não é ela inda não. Chamei por ela...

Foi em vão... delirei...

- Por quem?

- A morte

- Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!

- Se a morte é sofrimento eu sofro tanto,

Que a mudança do mal será consolo;

Se a morte é sono, meu cansado corpo

No descanso eternal deixai que durma.

- Eu também sofro... mas a morte assusta,

Eu, mísera mulher nas amarguras

Descorei e perdi a formosura...

No amor impuro profanei minh'alma

E nesta vida não amei contudo!

...

Não sou a virgem melindrosa e casta

Que nos sonhos da infância os anjos beijam

E entre as rosas da noite adormecera

Tão pura como a noite e como as flores;

Mas, na minh'alma dorme amor ainda.

Levanta-me, poeta dos abismos

Até o puro sol do amor dos anjos. (Azevedo, 1862, pp. 229-230)

Estamos frente a um amor impossível. O poeta quer uma virgem diáfana em cujo colo aconchegar-se como anjo. Mas, febril de desejo, precisa de uma mulher também ardente, que o deseje. A solução é complicada, mas criativa: na verdade, a mãe somente se tornou prostituta por acaso, por força maior, por fome (como ocorreu com ele, sedento, num deserto, precisando saciar sua sede). Pode-se perdoá-la e ele também perdoar-se, voltando a pureza e o vínculo mãe-filho. Mas a morte está sempre presente, como punição, pelo sexo sujo ou através da fantasia de fusão - volta ao útero materno. A sedução da morte.

Ah! vem, alma sombria, que pranteias.
Por quem choras? Por mim? Em vez de prantos
Deixa-me suspirar em teus joelhos.
Tu, sim, és pura.
Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão. Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma entre os joelhos;
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho - o mundo é largo
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar num deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher... Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu minha sina...
Maldita, minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil. Maldita! (Azevedo, 1862, p. 237)

"Maldita, minha mãe, que entre os joelhos / Não soubeste apertar, quando eu nascia, / O meu corpo infantil. Maldita!". Frente a todos os conflitos entre vida e morte o melhor seria não ter nascido...

Álvares de Azevedo nasceu em 12 de setembro de 1831. Era um menino saudável até que perdeu seu irmão menor. Tinha nesse momento 4 anos de idade. A partir de então tornou-se triste e doentio. Isso consta em todas as biografias. Tinha vários irmãos, e fica evidente que foi o mais sensível à perda, chamando a atenção seu comportamento.

Foi um aluno brilhante, e em 1848, isto é, com 17 anos, entra na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Logo se salienta, tanto do ponto de vista jurídico como literário. Os alunos de Direito, na época, constituíam a vanguarda, tanto política como artística. Através deles os movimentos europeus entravam na Província, já que os estudantes devoravam a literatura universal.

Estamos no auge do Romantismo, e todos os jovens queriam ser Byron ou Musset. Em 1850, se mata um colega seu, quintanista. Álvares de Azevedo deveria estar no terceiro ano. Devido a seu brilhantismo ele é escolhido para discursar nas elegias fúnebres do colega.

Em 1851, morre outro colega, também quintanista. Álvares de Azevedo agora está no quarto ano da Faculdade de Direito. Novamente, ele é o encarregado do discurso de despedida. Mas, já antes, o poeta manifestava a ideia de que iria morrer. Há relatos de amigos a quem dizia que tinha esse pressentimento. Conta-se sobre um momento em que diz isso à própria mãe. Esta se retira chorando, como que confirmando o fato.

A ligação de Álvares de Azevedo com sua mãe e com sua irmã é bastante intensa, e isso pode ser verificado não só na obra, como nas biografias e nas cartas. Há um carinho de amante-bebê, e fofocas femininas sobre os casos na Província (a família morava no Rio). A relação com o pai, visível através das cartas, é bastante formal.

As previsões de sua própria morte logo tomam corpo, e o poeta afirma que morrerá no ano de 1852. Consta que Álvares de Azevedo teria escrito na parede, ao lado de sua cama, os nomes e as datas de morte de seus dois colegas falecidos no quinto ano da faculdade. O primeiro em 1850, o segundo em 1851. Abaixo ele escreveu: 1852, deixando o nome em branco.

Nas férias do quarto para o quinto ano o poeta adoece. Parece que após uma queda de cavalo começou a ter dores abdominais intensas. Estava no Rio, com seus pais. As dores levam os médicos a efetuarem uma intervenção cirúrgica, e passa semanas tentando recuperar-se. Possivelmente teve uma infecção pós-operatória. Há suspeitas de que sofria de tuberculose. Nesse período continua escrevendo, passando noites em claro, o que já vinha fazendo meses antes. Praticamente toda sua obra foi escrita entre 1851 e os meses que antecederam sua morte.

Morre em 25 de abril de 1852 (Domingo da Ressurreição, escrevem os biógrafos) na cama de sua mãe. Suas últimas palavras foram: "que fatalidade, meu pai!". Sua obra foi publicada postumamente, sendo a Lira dos vinte anos um sucesso instantâneo. Escreveu ainda O conde Lopo, Poesias diversas, O poema do frade, Macário, Noite na taverna e outros estudos.

Um problema estimulante para o psicanalista é especular sobre fatores que teriam levado Álvares de Azevedo a prever sua morte e a acertar a previsão. Sabemos que muitas pessoas imaginam quando vão morrer, mas raramente acertam. Conhecemos pessoas que julgam que sua vida terminará aos 33 anos, como ocorreu com Jesus Cristo. Processos identificatórios entram em jogo entre grupos africanos e indígenas em que uma pessoa morre, de morte aparentemente natural, quando quebra um tabu. O paciente melancólico pode morrer de morte "natural" logo após a perda de um ente querido ou em datas relacionadas com essa perda. Por outro lado, podemos adiar a morte por algum tempo até que se realize algum desejo: por exemplo o casamento de um filho, a finalização de uma obra (Cassorla, 2021).

A questão das idades e dos tempos pode ser exemplificada com a seguinte suposição. Se alguém perde seu pai quando este tinha 50 anos, não será improvável a fantasia de que poderá morrer quando atingir os mesmos 50 anos de idade em que seu pai faleceu. O objeto pai internalizado (que inclui um complexo emocional a ele vinculado) se transforma - nos lutos patológicos - em uma sombra que cai sobre o ego, conforme a famosa frase de Freud (1917/2010a). A pessoa estará mais vulnerável a somatizações, doenças orgânicas, transtornos mentais e descargas emocionais. Os pacientes percebem, muitas vezes posteriormente, que viveram um ano complicado.

Existem muitos relatos sobre doenças, acidentes, atuações e mortes, coincidindo com datas de aniversário de morte ou com idades ou outros eventos. Chamamos esses eventos de reações de aniversário (Cassorla, 1982; 1986; 2021).

Poderíamos pensar que Álvares de Azevedo se identificou com os colegas do quinto ano. A pergunta será - por quê? Seriam colegas próximos? Por outro lado, sabemos que era "moda" morrer jovem entre os poetas românticos. Nossa questão, no entanto, é pensar que fatores podem ter contribuído para a previsão da morte e, principalmente, para seu acerto.

Antes façamos uma pausa. Uma poesia mais leve, irônica, para mostrar que o poeta também sabia divertir-se.

Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós - e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!
Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! e dormir solteiro! (Azevedo, 1862, pp. 253-254)

Voltemos a nosso tema. No próximo poema, escrito 30 dias antes de sua morte, Álvares de Azevedo a antevê, assim como a reação de sua mãe e irmã. O poema foi lido em seu funeral.

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria,
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas,
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas, essa dor da vida que devora
A ânsia da glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã! (Azevedo, 1862, p. 271)

A previsão da morte aparece no próximo poema. Fica clara a relação entre o gozo sexual e a morte. A mãe, fada, mulher, goza e faz gozar e mata, como a bruxa que, com seu cajado, nos mata, também gozando.

E cedo morrerei: sinto-o, nas veias
O meu sangue se escoa vagaroso
Como um rio que seca nas areias,
Como donzela que desmaia em gozo
Teus lábios, fada minha, me queimarão
E as lânguidas artérias me esgotarão! (Azevedo, 1862, p. 320)

Minha hipótese é que Álvares de Azevedo vivenciou um processo melancólico relacionado à morte de seu irmãozinho. O futuro poeta tinha 4 anos e iria completar 5. Isso explica sua debilidade física e emocional, como a descrevem os biógrafos.

Especulamos que essa relação objetal se instalou dentro de sua mente, acusando-o de continuar vivo em detrimento do irmão morto. Como sabemos, faz parte das fantasias humanas o assassinato do rival visando a posse exclusiva do objeto (confundidos com mãe e irmã). A fantasia onipotente é que o desejo causou essa morte. No entanto, a mãe roubada do irmão continua traidora em outras partes de sua mente, já que ela se prostituíra com seu pai, dando à luz esse irmão e tantos outros. Proponho que esse luto pelo irmão, com culpa e perseguição, e essa energia dirigida à mãe idealizada permaneceram encistados, em equilíbrio relativamente estável. Penso na analogia entre colegas de curso e irmãos. A morte dos irmãos de curso desfaz as defesas, e Álvares de Azevedo revive, inconscientemente, a morte do próprio irmão. Dou importância ao fato de esses colegas haverem morrido no quinto ano da faculdade. Lembremos que o poeta morreu nas férias do quarto para o quinto ano, como se ele não pudesse passar para o quinto ano, como ocorreu com seus irmãos de curso. Ora, seu irmãozinho também não pôde chegar ao quinto ano de vida. Morreu antes, no quarto.

Em outras palavras, especulo que Álvares de Azevedo se sentia culpado por ter sobrevivido a seu irmãozinho. Terá que pagar por esse crime, mas essa punição fica adiada até que ocorre a morte dos irmãos de curso, morte essa que ativa os objetos internos encistados. A intuição e previsão de sua morte é eliciada, portanto, por esses números. Mobilizam-se defesas maníacas que, somadas a capacidades sublimatórias, fazem com que escreva a maior parte de sua obra nos meses que antecedem sua morte. O esforço febril pode também ter contribuído para a morte. O acidente e suas complicações médicas iniciaram o processo autodestrutivo inconsciente. A punição é ainda mais terrível porque antes experimenta intensamente a vida, ainda que de forma maníaca/melancólica.

O conhecimento psicanalítico nos mostra que os primeiros lutos ocorrem no início da vida envolvendo as primeiras impressões de separação do objeto. Esses fatos primitivos constituem o assoalho onde se instalarão os lutos posteriores. Penso que esse é um dos fatores que faz com que o poeta represente, em sua obra, basicamente as relações primitivas entre mãe e bebê.

Álvares de Azevedo é o patrono da cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras. A essa cadeira se candidata o escritor João Guimarães Rosa, em 1957, quando tem apenas 10 votos. Em 1963 candidata-se de novo e é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967. O escritor adiava a cerimônia da posse porque intuía que não suportaria a emoção. Finalmente ousa e, ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "a gente morre é para provar que viveu". Três dias depois, em 19 de novembro, falece subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), não podendo pedir socorro. Tinha 59 anos (Nogueira Jr., 2000).

As hipóteses levantadas neste artigo não puderam, ainda, ser cotejadas com dados biográficos detalhados de Guimarães Rosa. Encontrei, porém, uma coincidência que chama a atenção. Em seu discurso fala carinhosamente de seu antecessor na mesma cadeira, seu amigo João Neves da Fontoura. A leitura nos faz pensar que o sente como se fosse um pai. Fontoura nascera em 16 de novembro de 1887 e a posse estava ocorrendo em um outro 16 de novembro, 80 anos depois.

Guimarães Rosa encerra seu discurso desculpando-se pelos quatro anos em que evitou a Academia enquanto comemora o aniversário de seu antecessor. Reflexões sobre vida e morte fazem parte do trecho, lido três dias antes de sua própria morte:

Nem aguentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária - dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei, e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de quatro anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas - o que é um pormenor de ausência. Faz diferença? "Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta" - Krishna instrui Arjuna, no Bhágavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: joão neves da fontoura.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: "Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!" - desfere então o salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mais eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico.

- Ministro, está aqui cordisburgo. (Guimarães Rosa, 1967)

Para o leitor psicanalista se abre um leque de possibilidades que incluem identificações permeadas de aspectos destrutivos.

Em Nietzsche me defrontei com um exemplo privilegiado da luta Eros × Tânatos, com o tempo como o mediador. No segundo parágrafo de Ecce homo lemos:

Meu pai morreu aos trinta e seis anos; ele era tenro, gentil e mórbido, como um ser predestinado a desaparecer; ficou a sua recordação como uma doçura de vida, que é a própria vida. Declinou a sua existência pelo mesmo tempo em que deveria declinar a minha. Aos trinta e seis anos desci ao ponto mais débil de minha vitalidade: vivia eu ainda, mas sem enxergar um palmo diante de mim. Então - foi em 1879 - renunciei à minha cátedra em Basiléia; vivi durante o verão, como uma sombra em Saint-Moritz e o inverno seguinte, o mais pálido de minha existência, em Naumburgo.

No fundo, havia eu adquirido o vago e a imprecisão de uma sombra. Foi nesse período que nasceu O viandante e sua sombra, onde há alguma coisa de fantasmagórico. (1888/1985, p. 14)

Nesse trecho, o autor descreve, claramente, a identificação com seu pai e sua "morte em vida", na mesma idade em que aquele morrera. No entanto, pôde criar, e o título de seu livro lembra novamente a frase de Freud (2010a), quando descreve que no luto a sombra do objeto cai sobre o ego. Isso ocorreu quase 30 anos antes da intuição freudiana...

 

Adendo

Para o leitor que se interessa pela clínica separei algumas reações de aniversário já relatadas em Cassorla (1982; 1986; 2021).

1. Um paciente sofreu enfarte do miocárdio, em 17 de fevereiro, aos 33 anos de idade, e havia tido outro aos 22 anos, aproximadamente na mesma data. Estudando-se o caso, descobre-se que, quando o paciente tinha 18 anos, um amigo íntimo havia falecido na mesma data - 17 de fevereiro - em um acidente de automóvel. As circunstâncias estimularam a que o paciente se sentisse culpado, perseguido e responsável pelo que ocorrera. Durante o tratamento identificaram-se fantasias inconscientes comuns em processos de luto, como ambivalência em relação ao amigo e a culpa por ter sobrevivido.

2. Maria vem à consulta com o clínico geral porque está angustiada e chorando muito há aproximadamente um mês e não tem a menor ideia do motivo. Sua relação com o marido e os filhos é boa, a família toda procura apoiá-la, mas não sabe o que fazer. A médica, intuitiva, permite que Maria fale e exponha seus sentimentos. De repente, vem uma lembrança a sua mente. Era mocinha e fora dar banho em três sobrinhas, em um riacho. A menor faltava um mês para completar 2 anos de idade. Na confusão do banho, essa menina afundou e foi levada pela correnteza, morrendo afogada. O fato é rememorado com muita emoção.

Em seguida, espontaneamente, Maria conta que tem três filhas, e a terceira acabara de completar 2 anos na véspera da consulta. A médica mostra a Maria a coincidência da idade da sobrinha e a recém-completada pela filha. Maria surpreende-se e, emocionada, detalha seus sentimentos de culpa e desespero em relação ao episódio com a sobrinha.

Maria vivia um complexo processo de identificação entre sua filha e sua sobrinha. Seus sintomas haviam se iniciado exatamente um mês antes do aniversário da filha, a mesma situação temporal da morte da sobrinha. O momento eliciou lembranças, medos e culpas inconscientes que se articularam com a rede simbólica do pensamento com a ajuda da médica.

3. Uma paciente, em análise, conta que ontem fora dirigindo a outra cidade. No retorno, na estrada, passou a sentir-se mal, como que desfalecendo. Ficou muito assustada, imaginando que estaria tendo um ataque cardíaco ou algo similar e que poderia morrer. Parou o carro em um posto de gasolina onde havia uma lanchonete. Nesse momento fez a hipótese de que poderia estar com a glicemia baixa, por não ter se alimentado corretamente. Pediu um iogurte e, enquanto o sorvia, foi se sentindo mais calma. De repente se sentiu curiosa em relação à validade do produto. Examinando a embalagem descobriu que ela cessava justamente naquele dia, 20 de maio. Nesse momento, abruptamente, lembrou-se de que sua mãe falecera justamente no dia 20 de maio, 10 anos atrás. Durante a sessão lhe ficou claro que sua viagem estava relacionada a uma longínqua lembrança de infância, quando sua mãe a levava para aquela cidade para comprarem roupas de inverno. O aconchego das roupas e a alimentação láctea se revelavam muito próximos, simbolicamente, do objeto materno perdido.

4. Outro paciente procurou atendimento psiquiátrico em uma instituição pública porque não conseguia parar de chorar. Seu cachorrinho havia sido atropelado. Não compreendia por que essa morte o teria abalado tanto. Não era tão "ligado" ao animal e já vivenciara outras perdas antes, sem tanto sofrimento. Entre elas a morte de seu filho, na infância, de uma doença hematológica grave, fazia muito tempo. Não conseguia relacionar seu estado emocional atual com essa ou qualquer outra perda. O psiquiatra o ouvia, cuidadosamente, acompanhando sua fala. Em determinado momento o paciente lembrou-se da data do exame de sangue que havia confirmado a doença do filho. Era a mesma data da morte do cachorrinho. Durante o rápido processo terapêutico - em que o psiquiatra lhe mostrou a associação escondida - o profissional formulou a hipótese (para si mesmo) de que o paciente, de alguma forma, havia contribuído para a morte do animal, não cuidando dele adequadamente. Sentimentos em relação aos demais processos de luto seriam investigados posteriormente em um tratamento psicoterápico.

5. Outra situação: a paciente, em análise, estranha porque resolveu submeter-se a uma cirurgia estética que nunca havia considerado, justamente naquele momento. Durante a sessão percebe que estava com muito medo de morrer, de ser anestesiada e não acordar. A dupla analítica não consegue compreender o que estaria ocorrendo, para além do manifesto. Após a cirurgia a paciente se mostra triunfante por ter sobrevivido e, aos poucos, se descobre que ela estava para completar 50 anos de idade, justamente a idade em que sua mãe morrera. Lembra-se de que sua avó morrera durante um ato cirúrgico. Somente então se lembrou de algo que sempre lhe vinha à mente: de que não poderia viver mais que sua mãe. Pouco tempo depois a paciente descobriu, surpresa, que havia escolhido a mesma equipe cirúrgica que antes havia operado uma pessoa conhecida. Ela morrera pouco tempo depois e ouvira boatos sobre um possível erro médico.

6. A imprensa noticia curiosidades sobre pessoas conhecidas. Yvonne de Gaulle, viúva de Charles de Gaulle, morreu num dia 8 de novembro, um dia antes da data de morte do marido, nove anos antes. A notícia destaca que Yvonne havia confessado a seus filhos que desejava morrer no mesmo dia que ele. Impõe-se a fantasia de reencontro após a morte.

Após o suicídio da atriz Jean Seberg se soube que, anos antes, o fbi espalhara a falsa notícia de que ela, grávida de 7 meses, era amante de um dos líderes dos Panteras Negras e que ele era o pai da criança. O rumor saiu em várias publicações e, pouco depois de ler a notícia, a atriz entrou em trabalho de parto e deu à luz a uma menina morta. Ela e seu marido, o escritor Romain Gary, processaram as publicações e receberam indenizações. A atriz sofreu de profundas depressões recorrentes. Em cada aniversário do parto prematuro ela tentava o suicídio. Até que teve êxito. Seu marido se matou um ano depois e deixou uma carta em que assinalava que seu suicídio não deveria ser relacionado à morte da esposa, mas sim ao título de seu último livro (A noite será calma).

 

Referências

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