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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

ODISSEIA BRASILEIRA

 

Augusto Matraga e o encontro amoroso com nossas partes odientas1

 

Augusto Matraga and the loving encounter with our hated parts

 

 

Rozany T. Pozza Aliceda

Psicóloga, membro filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) - Maringá / raliceda@uol.com.br

 

 


RESUMO

No poema de Homero, o fluxo das águas do mar, com sua imprevisibilidade e fúria, tal qual ondas emocionais arrebentando nas bordas da subjetividade, vai arrastando Ulisses ao insondável de si mesmo. Na novela de Guimarães Rosa, "A hora e a vez de Augusto Matraga", é pelo bruto sertão mineiro que se dá a aflitiva viagem rumo à apropriação do humano. Neste artigo, a autora descreve seu percurso junto ao protagonista que, a partir de uma ruptura dramática na linearidade da sua vida, inicia um longo processo de elaboração de si, uma jornada odisseica que vai resultar na ampliação da capacidade de pensar e tolerar suas emoções. Concebe-o, assim, como uma metáfora do desenvolvimento e expansão da mente. Embora a teoria possa ser depreendida do texto, a terminologia técnica foi evitada para que esse percurso imaginativo pudesse ser também uma via para levar à comunidade uma visão psicanalítica do universo psíquico.

Palavras-chave: psicanálise, A hora e a vez de Augusto Matraga, Guimarães Rosa


ABSTRACT

In Homero's poem, the flow of sea water, with its unpredictability and fury, like emotional waves breaking on the edges of subjectivity, they are dragging Ulysses to the unfathomable of himself. In Guimarães Rosa's novel, "The time and turn of Augusto Matraga", It is through the rough hinterland of Minas Gerais that the distressing journey towards the appropriation of human beings takes place. In this article, the author describes her journey with the protagonist who, from a dramatic break in the linearity of his life, begins a long process of self-elaboration, an odyssey journey that will result in the expansion of his ability to think and tolerate his own emotions, thus becoming a metaphor for the development and expansion of the mind. Without using technical terminology and allowing the theory to be understood from the text, this article aims to indicate a path that leads the reader to a psychoanalytical view of the emotional world.

Keywords: psychoanalysis, The time and turn of Augusto Matraga, Guimarães Rosa


 

 

Sapo não pula por boniteza,
mas porém por percisão.

(Rosa, 2015, p. 298)

Com este ditado popular, Guimarães Rosa inicia seu famoso conto "A hora e a vez de Augusto Matraga". E, com ele, de pronto, estabelece uma conversa íntima com a psicanálise, ao lembrar que nossas ações não são casuais e aleatórias; antes, são disparadas por necessidades e artimanhas intricadas que, parte das vezes, escapa à nossa consciência. Por boniteza é que não é!

Provocação própria da literatura, que nos ajuda a organizar e dar sentido aos fenômenos psíquicos próprios às nossas vivências, somos instigados, assim, a compor conexões entre a narrativa e a experiência subjetiva dos personagens do conto.

Vamos seguir por essa vereda...

Ao nos apresentar o protagonista, o narrador diz: "Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Estêves. Augusto Estêves" (Rosa, 2015, p. 298). Se o nome nos inscreve numa linhagem, demarca uma singularidade, um lugar de pertença no mundo, temos notícia aqui de que esses alicerces identitários do nosso personagem estão equivalidos a nada. Augusto alude à nobreza, enquanto Estêves é o pretérito do verbo estar: expressão desse personagem que, tendo sido um poderoso herdeiro de muitas propriedades, encontra-se em franca bancarrota.

E é como Nhô Augusto que ele será chamado pelo narrador, que o descreve como "alteado, peito largo, vestido de luto" (p. 299). Um homem prepotente, libertino e altivo, mas que traz também a marca da melancolia: veste-se de luto.

Na primeira cena, ele surge na festa paroquial botando banca e dando o lance decisivo para arrematar em leilão a prostituta Sariema que, logo após ser "adquirida", é cruelmente preterida: "Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! ... Capim p'ra mim, com uma sombração dessas! ... Some daqui!" (p. 302). Humilhada, a mulher abre o choro mais sentido da sua vida. É fácil ser cruel, basta não pensar. E nosso protagonista não consegue reconhecer que o outro tem fronteiras próprias e uma existência sensível; para ele, é apenas um objeto a ser usado, controlado, desprezado e destruído.

Em seguida, Quim Recadeiro traz o recado da sua esposa, Dona Dionóra, que pede para que ele vá até ela, e ele responde: "- Desvira, Quim, e dá o recado pelo avesso: eu lá não vou!..." (p. 302).

Essas primeiras cenas vão contando que seu ódio e seu desdém são as únicas ferramentas de que ele dispõe para se relacionar. Nhô Augusto, em sua prepotência, desconsidera peremptoriamente o outro, todavia procura um lugar de importância no grupo, quer ser visto e atrair o olhar sobre si - ele não declina do contato, o busca, mas o faz de maneira torta; ao mesmo tempo em que se aproxima, faz todos se afastarem dele, produzindo um sentimento de medo e rechaço. E somente atrai para si sentimentos dessa natureza quem tem a certeza inequívoca de que não será amado.

Um bebê que busca o olhar da mãe e reiteradamente não o encontra, não na medida da sua necessidade, pode guardar dentro de si um sentimento tal de rechaço que vai moldar seu funcionamento mental e inundar todas as suas relações posteriores, tal qual os dejetos da barragem de Brumadinho deslizando impiedosamente e ceifando a vida de tudo que encontra pela frente. E é na necessidade esmagadora de desprezar aqueles com quem podia se nutrir de amor que encontramos notícias dos fracassos iniciais que Nhô Augusto viveu e que agora derrama sobre o outro. Ele deixa de ser o rejeitado, agora ele é o rejeitador.

Por decisão de Nhô Augusto, sua esposa, Dionóra, e a filha, Mimita, seguem viagem para Morro Azul acompanhadas de Quim. Ela fica triste pelo desleixo, mas voltar para o retiro sem a companhia do marido "só tinha por que se alegrar"; afinal, com a morte do seu pai, ele ficara ainda "mais estúrdio, estouvado e sem regra", e agora, nunca tendo trabalhado, acumulava dívidas e falta de crédito.

No caminho para o retiro, eles pousam na casa de um tio que lamenta o casamento da sobrinha. Ela lhe diz: "- Sorte minha, meu tio... / - Sorte nunca é de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já está velha ao meio-dia..." (p. 304).

O tio contesta assim a ideia de um destino do qual não podemos fugir. É por ele que sabemos um pouco da história de Nhô Augusto: sua mãe faleceu quando ele era ainda pequeno, seu pai era como se pai não tivesse, seu tio era criminoso e ele foi criado pela avó, que "queria o menino p'ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo" (p. 304). A sua violência então entranha-se com perdas muito precoces e com um ambiente pouco provedor de experiências de acolhimento e compreensão: ausência da mãe, ausência do pai, familiares violentos e uma avó que, ao só rezar, não abre espaço para expressar e aceitar as emoções do infante, antes as abafa com essa incessante, empobrecida e estereotipada narrativa. E quando a frustração é maior que nossa capacidade de tolerá-la, dentro da gente, a falta dessas boas relações iniciais não é sentida apenas como uma ausência, mas como uma presença: a presença de alguém hostil que deliberadamente quer nos privar e nos fazer sofrer. Isso fratura a confiança da criança perante o mundo, criando um registro que captura e transforma todas as relações, ainda que potencialmente boas, em experiências más, nocivas e ameaçadoras. Porque a experiência má traga a experiência boa.

De volta à viagem, em algum momento, Mimita pergunta à mãe: "- Por que é que o pai não gosta de nós, mãe?" (p. 304).

Não há resposta.

E no caminho aparece Ovídio Moura, que gostava de Dionóra e que "tinha uma força grande, de amor calado, e uma paciência quente" (p. 303). Guimarães Rosa parece referir-se ao poeta romano Ovídio Naso, que escrevia poemas de amor e que foi exilado, quiçá por inveja, pelo imperador Augusto. Aqui também, na nossa história, Ovídio é o homem dotado de uma capacidade afetiva e amorosa infactível e quimérica ao nosso personagem central. Esse homem calmo, cujo nome significa ovelha, neste momento se insurge e a interpela: "vem comigo... Ou ... nunca mais você há-de me ver!..." (p. 304).

A conversa com o tio sobre um destino que se pode mudar e a pergunta que revelou a tristeza devastadora da filha, e a dela mesma, reverberam em sua decisão e ela se lança a uma nova vida. Ela vai, levando a filha e sem olhar para trás.

E Quim, num galope doido, corre avisar o acontecido a Nhô Augusto, que, de imediato, manda que chamem seus homens. Ele vai e volta com outra desolação: seus capangas, que não vinham recebendo pagamento, foram trabalhar para o Major Consilva, inimigo de longa data. E mais, todos no lugar diziam que ele não tinha mais nada, que perdera as fazendas e as riquezas herdadas pelo pai e que, tendo feito tanta malvadeza, havia quem quisesse pegá-lo à traição. Mas Nhô Augusto, estribado em sua onipotência, não consegue enxergar que seu reino augusto havia ruído e que perdera tudo o que tinha; ele recusou e negou categoricamente a realidade que apontava sua ruína para preservar a ilusão do seu poder e sua onipotência. Estratégia perigosa que o põe - e a todos que usá-la - em perigo.

Assim, ele parte sozinho para fazenda do Major Consilva e, ao chegar, de pronto os porretes lhe caem em cima.

E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau de testa peluda ... é uma raça de homem capaz de guardar o passado em casa ... e ir buscar da rua outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar vingança. (p. 307)

Temos aí a lógica do ressentido, daquele que ocupou um lugar de importância (o rei do cangaço) e o perdeu, mas imagina poder recuperá-lo logo mais à frente, bastando para isso manter suas reservas de ódio bem conservadas e continuamente reabastecidas. Estratégia para proteger aquele que acredita não ser nada além do que sua pretensão e egocentrismo que abrigam sua precariedade, o fazem acreditar que é; o ressentimento traz a segurança de que o que foi perdido, o foi temporariamente, e que aquela condição tão necessária há de ser recuperada. Para tolerar sentimentos tão temerários, que põem em risco o que sente ser vital, o sujeito se agarra à raiva, e a humilhação vira fomento de um projeto odioso de vingança, não num acerto de contas com a própria ufania, com a própria humanidade, afinal nós perdemos coisas na vida, todos nós.

E no lance de maior humilhação, os capangas metem o ferro com a marca de gado do Major Consilva "na polpa glútea ... de Nhô Augusto", que dá um salto e cai num despenhadeiro, seu corpo rola nas moitas desaparecendo lá embaixo. Imaginando que tivesse morrido, os capangas resolvem colocar a cruz ali mesmo para de noite ele não vir puxar os pés. Se os capangas creem que precisam da cruz para protegê-los de uma desforra é porque sentem culpa do que fizeram, mas não conseguem reconhecê-la, são alienados dos próprios sentimentos e precisam se valer desses recursos mágicos. Nhô Augusto, por sua vez, pulando no vazio da ribanceira, nos leva a pensar num intenso deslocamento e perda da noção da própria existência, um lançar-se a uma nova vida, uma ruptura drástica e perigosa, mas potencialmente transformadora.

Vendo de longe o acontecido, um "preto" se aproxima e encontra "vida funda no corpo tão maltratado"; resolve levá-lo para seu casebre, onde, com a ajuda da esposa, passa a cuidar dele. Depois de vários dias desacordado, Nhô Augusto finalmente desperta e, apesar da dor do corpo todo partido, "disse a si [mesmo] que era melhor viver" (p. 310). Deparava-se com a realidade, desde sempre recusada, de que dependia de outra pessoa. "E, aí, Nhô Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento ... Até que pôde chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de menino ao abandono" (p. 310). Com a sua estrutura emocional, a que o havia mantido em pé até então, tão fraturada quanto seus ossos, aparece o que se escondia sob ela: a sua enorme fragilidade e desamparo. "E, sem saber e sem poder, chamou alto soluçando: / - Mãe... Mãe..." (p. 310).

Passaram-se muitos meses de recuperação, Nhô Augusto entrando em contato com seus pecados e se vendo indigno de absolvição. Os pretos trazem um padre para que ele pudesse se confessar. O vigário o escuta e o faz ter esperança no perdão, desde que rezasse, trabalhasse por três, ajudasse os outros e controlasse o gênio: "faça de conta que ... é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele..." (p. 312).

O padre propõe, assim, o pacto civilizatório de renúncia aos impulsos selvagens que nos habitam, qualidade que nosso protagonista não possuía. Recomenda-lhe o trabalho, e trabalhar é renunciar à onipotência, é aceitar o princípio da realidade; e rezar, porque rezar ancora a esperança. E ainda o assegura: "Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua" (p. 312).

Só não podia ficar triste, continua o padre, "porque a tristeza é aboio de chamar o demônio". Nhô Augusto se defendia da tristeza desde sempre com sua irritante autossuficiência escorada na ilusão de que não precisava de nada nem de ninguém. Não poder ficar triste é não poder pensar. E a proposta do padre é que ele deixasse de ser um não pensante arrogante para ser um não pensante humilde. E, assim, Nhô Augusto irá colocar a penitência no lugar do pensamento.

Mas talvez ele não tivesse mesmo, ainda, uma mente apta a pensar seus sentimentos. Infelizmente, somos dotados de uma capacidade ímpar de sentir emoções, mas escassa condição de pensar e tolerá-las dentro de nós. Restava a ele usar a mesma força que produziu a violência que o arruinou, para agora refreá-la e conquistar sua salvação.

E como pode, Nhô foi seguindo adiante. Ele foi se lembrando das rezas aprendidas com a vó e, ao fazê-lo, ia recuperando um registro de vínculo e de alguma intimidade que vivera com ela. Embora, para ele, a vida já se acabara, só esperava a salvação.

O ódio dá força, nos faz sentir no domínio. Já o amor nos põe diante da realidade da nossa insuficiência, do quanto precisamos do outro. É mais fácil odiar... Ainda assim, por mais cruel que sejamos, o que desejamos mesmo é ter aptidão para a bondade. E Nhô Augusto não queria mais odiar, contudo não aprendera a amar.

E com o corpo mais recuperado, ele resolveu ir para um sítio distante, único bem que ainda possuía. E com ele foram os "pretos ... que ... agora não o podiam deixar nem por nada" (p. 313). Havia ali, doravante, um casal disponível, vertendo cuidado e ternura com aquele que passaram a considerar um filho. Nhô Augusto experimentava assim, talvez pela primeira vez, o sentimento de pertencimento. Ao sair, se ajoelha, abre os braços e jura: "- Eu vou p'ra o céu... E a minha vez há de chegar... P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..." (p. 313).

Sentir-se digno do amor de um casal finca a esperança no perdão celestial, ainda que pense em usar meios poucos ortodoxos para o ingresso no céu. As experiências da vida e a realidade, tal qual capangas golpeando e impondo limites, foram enfraquecendo sua arrogância e polindo seu jeito brigão, mas não os eliminaram. E do céu, desafiava, não seria rejeitado de jeito algum!

E quando chega ao novo lugar, todos logo gostaram dele porque "era meio doido e meio santo", nada desejava além de trabalhar e rezar. E, assim, trabalhando sem trégua, mais de seis anos se passam. Um dia, um velho conhecido dele, Tião, passa pelo povoado e se surpreende ao saber que ainda estava vivo. Tião lhe dá tristes notícias: Major Consilva havia arrematado e agora era dono das suas fazendas, Quim fora morto ao tentar vingança quando soube que seu patrão havia sido assassinado, sua esposa continuava vivendo, e muito bem, com Ovídio, e a filha Mimita fora enganada por um homem e caíra na vida. Mais no início do conto, vimos que a filha, ainda criança, ressentia-se pela ausência de amor paterno, e o olhar do pai é um elemento importante para garantir à filha êxito no curso de sua feminilidade e confiança em sua capacidade de cativar os homens. Mimita não teve esse olhar...

E nos olhos de Tião havia nojo e desprezo testemunhando a vergonha que Nhô Augusto sentia de si mesmo. Ele pediu a Tião que não falasse mais nada e que a ninguém contasse que o viu, porque era como se tivesse morrido mesmo, não existia mais Augusto Estêves. Sem poder negar aqueles fatos tão terríveis, era a si mesmo que Nhô Augusto negava. Infeliz e desmoralizado, buscou consolo ao cismar que no céu entraria de qualquer maneira, não toleraria mais essa humilhação e, assim posto, se ajoelhou rejurando: "- P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..." (p. 315).

Com tanta tristeza, Nhô titubeou em sua obstinação, desejou beber e cigarrear, mas temia o castigo no fogo do inferno, "era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme". Sozinho, sem padre por perto, "se confessou aos seus pretos tutelares, longamente, humanamente, e foi essa a primeira vez" (p. 316). Divide seu desmazelo com a preta, e é nesse momento que sabemos que seu nome é Quitéria. Nhô consegue compartilhar seus sentimentos, pois, agora, há esperança de ser compreendido e de encontrar, na intimidade com alguém, um abrigo emocional nesse momento de mudanças e notícias dramáticas. O desmazelo da alma estava ali, as dores, o medo, a impotência, mas agora atenuado por alguém que lhe devolve a confiança nos vínculos. "Quitéria é essa que quita a dívida que a vida tem com Nhô Augusto, quita a dívida materna" (Menezes, 2007, p. 66), e ele pode seguir seu caminho sem tanto ódio.

E, pouco a pouco, sorrateiro como o tempo das águas, Nhô sentiu que não precisava mais enxotar a tristeza como o padre recomendara. Sentindo-se digno de ser amado e contando com alguma reserva de experiências de acolhimento, a sua tristeza é mitigada e passa a ser tolerável. Agora ele pode ser triste! Ele considerou também que poderia fumar, que "não era pecado", até faria "esperar melhor, mais sem pressa, a hora da libertação" (Rosa, 2015, p. 318). As novas experiências também aplacam sua culpa, e ele se permite, então, algum prazer, dispensando a radicalidade com que buscava redimir-se.

Dias depois, chega ao povoado o bando do temido Joãozinho Bem-Bem, nome estranhamente infantil e delicado para um jagunço tão temido, o que indica que ele, ao contrário de Nhô Augusto, fora uma pessoa muito boa um dia. Guimarães Rosa aprecia essas ironias que colocam o bem e o mal numa mesma gamela.

E Nhô Augusto vai encontrá-los e, como bom samaritano, os convida a se hospedarem em sua casa. Ali entre eles, ouvindo histórias de valentia, Nhô vai ficando muito excitado e, de improviso, cria e narra uma cena em que os capangas, um a um, se apresentam empunhando suas carabinas, ostentando audácia e causando tanto medo que põe até gente muda a sair gritando. Sua expressão é de tanto deleite com a cena criada que todos o olham com estranhamento. Nhô Augusto se dá conta do descomedimento, se cala assustado, constrangido, e retoma rapidamente sua fala humilde: "- Mais galinha, um pedaço, amigo?" (p. 323). Ele bebe dois goles de cachaça, pega e experimenta a carabina... Vai ressurgindo o homem valente que ele queria esquecer. Joãozinho Bem-Bem representa a parte rejeitada dele mesmo, o que traz de volta o conflito e reacende seus desejos secretos recusados. O desânimo, a partir dali, não o larga mais.

E antes de partir, Joãozinho Bem-Bem agradece a hospitalidade e, intuindo que Nhô era bom de briga, o convida para se reunir ao grupo. "Não me tenta, que eu não posso..." (p. 324).

Nhô Augusto pensou que eles estavam "no bom, porque não tinham de pensar em coisa nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de cabeça em-pé", (p. 325), diferentemente dele, que estava todo desonrado. De novo somos informados que a força que o impelia a buscar salvação era sua desonra, sua soberba ferida; ele não podia ser desonrado mais uma vez sendo levado para o inferno.

Nessa noite, ele dormiu "montado num sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força" (p. 325). Nhô Augusto ansiava por um lugar onde seus impulsos violentos, tão difíceis de domar, encontrassem um desafogo, e ele cria, assim, um deus à sua imagem e semelhança...

Acima de tudo, agora Nhô Augusto podia sonhar! Seus conflitos, sua fúria, seus sentimentos brutos, antes vomitados sobre o ambiente, encontravam um lugar dentro dele na forma de elementos simbólicos exibidos no ambiente privado dos sonhos.

E nosso protagonista segue, por toda uma invernada brava, trabalhando até sem "precisão nenhuma" e contando com o cuidado dos negros considerados, havia tempo, seu pai e sua mãe.

O desejo pelas mulheres, tanto tempo esfriado, começou a voltar, e Nhô Augusto considerava que assim mais valia a penitência com a "tentação estimulando" e tendo "o diabo ali perto, subjugado e apanhando de rijo" (p. 326).

Quando as chuvas cessam, Nhô sai no terreiro e vê a manhã bonita que gargalha num bando de maitacas. Ouviu o burburinho das aves itinerantes e, quando todas passaram, pensou que elas já deviam estar longe.

Indaga o narrador: "Longe, onde?" (p. 327).

E, de repente, "nada adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião", Nhô Augusto resolve ir embora: "porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!" (p. 328).

Nhô Augusto podia se separar dos novos pais, não de forma onipotente, negando a importância deles, ao contrário, porque agora, ao partir, podia carregá-los dentro de si.

Deixou o sítio e tudo mais para os pais e partiu no lombo de um jumento, assim como Cristo, em mais uma referência religiosa do conto. E todos, no vilarejo, sentiram muito a sua partida, nosso protagonista experimentando o sentimento de estima e de pertencimento.

Ia entoando o canto que ouvira dos guerreiros do Joãozinho Bem-Bem: "A roupa lá de casa / não se lava no sabão: / lava com ponta de sabre / e com bala de canhão..." (p. 329).

A música é uma maneira de manejar emoções; as que falam de ódio, como muitas canções infantis, ajudam a neutralizar nossos aspectos destrutivos. E, para Nhô Augusto, só cantar "não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas ... nos caminhos do sertão. ... Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente" (p. 329). O belo existe, mas é preciso ser capaz de apreciá-lo. E as boas experiências emocionais do nosso protagonista vão dotando sua mente da capacidade de reconhecer a beleza e a ternura que a vida tem a oferecer. O selvagem que emanava ódio vai dando lugar ao homem sensível habilitado a reconhecer as qualidades do seu mundo.

Nhô deixava que o jumento decidisse os caminhos a serem seguidos, e é assim que ele entra em Rala-Coco. E como é impossível fugir daquilo que nos constitui, lá ele encontra Joãozinho Bem-Bem, esse outro que é si mesmo. E Joãozinho o recebe com "olhos alegres, ... no rosto um ar paternal" (p. 332). Conta que o bando estava ali para vingar o assassinato de um dos seus homens, Juruminho, cujo assassino sumira no mundo. Novamente, ele o convida para se unir ao grupo e lhe oferece as armas do falecido, pois bem via que já havia sido "brigador de ofício". Nhô Augusto põe a mão na arma como "um gato poria a pata num passarinho" (p. 333), mas, apesar de tentado, declina do convite.

Os capangas chegam arrastando o pai do assassino, e Joãozinho Bem-Bem, num gesto de crueldade, manda que ele escolha qual dos filhos seria morto para consumar a vingança. O desespero desse pai que pede clemência e suplica que seja ele o vingado não o comove.

Nhô Augusto, alisando a lâmina da faca e numa voz calma, pede para o amigo parar com aquilo, o que Joãozinho Bem-Bem considera um atrevimento, e se instala, à vista disso, a "viragem dos climas". Arrebatado, Nhô anuncia: "- Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!..." (p. 335).

E ele se pôs a gritar tantas palavras imorais há tantos anos não ditas; foi matando alguns homens e colocando os outros a correr até que ficaram somente os dois, Nhô Augusto e Joãozinho Bem-Bem, o seu duplo, a parte recusada dele mesmo. Inicia-se, então, um verdadeiro balé carregado de ódio e de ternura, um corpo a corpo que aponta para os limites porosos entre um e outro. Enquanto se ferem e se encharcam de sangue, trocam palavras gentis.

Na peleja, a lâmina de Nhô Augusto talha o abdome de Joãozinho de baixo para cima, que diz, antevendo a morte: "- Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta e de mais coragem que eu já conheci!..." (p. 336).

Nhô Augusto pede que o amigo se arrependa dos seus pecados para que pudessem ir juntos para o céu.

Joãozinho morre primeiro, e Nhô Augusto, antes de falecer também, com o rosto radiante, diz: "- Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas!" (p. 338).

Nosso protagonista suplanta o sentimento de humilhação e encontra um lugar de importância no mundo. Com um sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, Augusto Matraga morre.

Enfim, chegara a hora e a sua vez.

A luta, o entrelaçamento dos corpos, a violência e a ternura juntas: uma metáfora para o encontro amoroso com as nossas partes odientas. Encontro tão necessário...

Se o amor quer abolir as distâncias, recusar a diferença e impedir a separação, é o ódio que demarca as fronteiras que permitem nos diferenciar do outro e sustentar, assim, nossa subjetividade e autonomia. Como só é possível amar de verdade quando há uma distância possível para enxergar o outro, chegamos ao intrigante paradoxo dos vínculos humanos: é o ódio que abre caminho para o amor.

 

Referências

Menezes, A. B. (2007). A hora e a vez de Augusto Matraga ou "de como alguém se torna o que é". Literatura e Sociedade, 12(10),64-80.         [ Links ]

Rosa, J. G. (2015). A hora e a vez de Augusto Matraga. In J. G. Rosa, Sagarana (pp. 298-338). Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1946)        [ Links ]

 

 

1 Texto apresentado no projeto Conversas Psicanalíticas, do Núcleo de Psicanálise do Norte do Paraná (NPNP), que objetiva levar o pensamento psicanalítico à comunidade.

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