SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43 issue72Augusto Matraga and the loving encounter with our hated partsJourney and exile in the movie The secret life of words: a reading inspired by the traumatogenesis of Sándor Ferenczi author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Pulsão mulher1

 

The drive-woman

 

 

Malena Calixto

Praticante da psicanálise, no quarto ano do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Escritora. Autora do livro Qria (Editora Livre, de Marcelino Freire, no prelo) e do conto publicado no livro Linguateca: antologia, editado artesanalmente pelo poeta Douglas Diegues - São Paulo / malenamcalixto@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo nos conta de Maria Dasfaixas, uma mulher enfaixada. Suas faixas são vozes do supereu, das quais Dasfaixas tenta se livrar. No correr das linhas e do aprisionamento de Dasfaixas, a voz da analista surge como um outro que liberta em meio a outros "estranhos" em que se sente ameaçada. Um outro feminino. Castrado. Furado. Um outro pulsional que muda a direção da voz do supereu. Uma estória do desenfaixar-se para a pulsão mulher. Um chamado à feminilidade.

Palavras-chave: supereu, feminilidade, pulsão, identidade, castração


ABSTRACT

The article tells us about Maria Dasfaixas, a bandaged woman. Her dressings are voices of the superego, from which Dasfaixas tries to get rid of. In the course of the lines and the imprisonment of her, the analyst's voice appears as an'other that liberates among other "strangers" in which she feels threatened. An other female. Castrated. Stuck. An other drive that changes the direction of the superego's voice. A story from unraveling to the woman drive. Call us to femininity.

Keywords: superego, femininity, drive, identity, castration


 

 

Maria Dasfaixas. Maria Dasfaixas tem um corpo gramatical. Uma gramática. Nacionalista. Patriótica. Colonizada por um superanti-herói. Com palavras, sintaxes, pontos, parágrafos, acentos, pronomes. É seduzida pela gramática, esquecida do corpo. Só língua. Uma língua certa. Isso dá um texto. Um texto dela. Dá um chão. Um país. Um país nela. Reto. Sem contradições. A contradição sempre matou o corpo. Como se parte dele pudesse implodir pra fora dela e ela nem ser mais. A contradição não combina com identidade, um eu. Idêntico a uma gramática, que também poderia ter um outro nome. O nome de um supereu. Um eu agigantado de juízo. Altamente moral.

Sua incidência está onde emerge o esquartejamento do sujeito: mandatos insensatos que irrompem surpreendentemente no mais normal dos sujeitos, compulsões irrefreáveis, coerções inexplicáveis, obediências masoquistas, traços de caráter indeléveis, práticas autodestrutivas silenciosas ou estrepitosas, atos expiatórios e sacrificiais ligados a culpas infundadas. (Geres-Ambertín, 2003, p. 19)

E cuidado.

Zaratustra, quando traz uma boa nova (Deus está morto) ao vilarejo, uns ouvem "estamos desamparados", outros "estamos livres". Quando o pai diz, desce daí menino, uns sentem-se barrados, outros cuidados.

E culpa.

Aqui neste trabalho, a culpa é o fundamento. Um momento mítico. A-histórica. Uma culpa sem história, a priori. Não está nem na pré-história. Falo aqui da sensação de quem sente. Sente um sentimento inconsciente de culpa.

Estrondosos fracassos como respostas ao êxito, estranhas pioras em momentos de franca melhora, delitos cometidos para obter castigos que apazíguem obscuras culpas, crimes sem motivação, covardia moral... arsenal nuclear do supereu. (Geres-Ambertín, 2003, p. 20)

O que está escrito na faixa é condenação. Aqui está seu desejo dito pela negativa. Motivo da sua condenação. Presa das faixas. Sua única condição de nascença. Presa do supereu. Do eu. Não há como burlar essa lei. Qualquer indício de desejo mais uma faixa.

Eu sou presa.

Essa é a identidade de Maria Dasfaixas. Quanto maior o desejo, maior o pecado, mais dura a faixa.

Ao lado de um corpo sem vida, passou a existir não só a doutrina da alma, a crença na imortalidade e uma poderosa fonte de sentimento de culpa do homem, mas também os primeiros mandamentos éticos. A primeira e mais importante proibição feita pela consciência que despertava foi: não matarás. (Freud, 1915/2006b, p. 305)

A primeira faixa, não matarás. Não desejarás o homem da próxima, a segunda. Não usarás shortinhos e mais e mais e mais camadas.

Maria Dasfaixas, suas faixas são vozes. Vozes do pecado. Bem sabemos da inexistência do não no inconsciente. A negativa do Freud. Vozes do pecado, querendo negá-los. Tornando-o presente. Se tem pecado, tem culpa. Foram criadas de forma traumática. Por isso, vozes escritas em ataduras de linho branco. Vozes do pecado, do destino. Vozes ela. Gramática de fora pra dentro. De dentro pra fora. Feita pela culpa. Um jogo de força e colagem. Ataduras danificadoras de pele. A faixa, um ato de repúdio. Formação de compromisso. Deixa o desejo dentro só que pelo não.

Dentro. Amarrado. Porque ele é culpado a priori (sem motivos, sem história). A condenação vira prova. Uma lógica jurídica bizarra. Não pode contestar autoridade, isso é um dado.

A psicologia das neuroses nos fez ver que, se impulsos cheios de desejos forem reprimidos, sua libido se transformará em angústia. E isto nos faz lembrar que há algo de desconhecido e inconsciente em conexão com a sensação de culpa, a saber, as razões para o ato de repúdio. O caráter de ansiedade que é inerente à sensação de culpa corresponde ao fator desconhecido. (Freud, 1913/2006c, p. 43)

O país Maria Dasfaixas, assim como o eu, forja fronteiras. Tenta reunir arbitrariamente uma unidade. Se defende. A pulsão, como estranha chega lá. Não querendo atrapalhar a unidade. Quer viver. Não quer ameaçar, mas do ponto de vista de uma unidade, ameaça.

Enfaixa mais. Por aqui. Protege esse país. Aperta bem no coração. Feche fronteiras. Vai amassar os seios. Não tem problema. Aperta com força pra não desmanchar. Deixa reta. Sem formas. Tire ondas do andar. Esconda cores. Douradas. Torneadas.2

Desde pequena Maria Dasfaixas foi ganhando gramática, fazendo faixas - "No coração?".3 Nisso foram crescendo pensamentos terríveis dentro dela. E cada vez mais as vozes atadura-linho a enchiam e a livravam de pensamentos nefastos, terríveis. Estranho isso. De tanto tentar se livrar mais vinham. Mais ficavam represadas em colas. Poderia ser um monstro. Monstro?

Tenho tanta vergonha de ser feminista, só por causa dos homens é que eu sou, porque gosto deles demais. Homem é tão fraquinho, às vezes ser tão forte me cansa, me enfara e eu brinco assim: na outra encarnação quero vir homem. É brincadeira mesmo, porque não sou espírita e a metempsicose me dá mais canseira ainda. O negócio comigo é na ressureição da carne, direto como uma estrela apaga e acende. Como eu ia dizendo, homem é fraco e mulher é forte, fortíssima. Move os dedos do pé e ele diz: meu amor. Move os lábios, ele diz: casa comigo. Move o que está fadado a mover-se, ele diz: pede o que quiseres. (Prado, 1979, p. 83)

Monstro? Maria Dasfaixas virou corpo enfaixado. Faixa de condenação de desejo. Quase múmia. Mas diferente, com órgãos dentro. Comprimidos. Apertados. Sufocados. Quase impedindo a corrente sanguínea de correr. O coração de bater. Mas inteiro. Nada faltando. Completo. Melhor estar segura que faltando pedaço. Foi necessário este destino. Este contorno. Maria Dasfaixas levou isso a ferro e fogo. Não parava de colar frases. Ia endurecendo. Para dar forma perdeu sua própria forma. Se acostumou de faixas. Se escondia ali dentro. Congelada no tempo. Embaixo, um corpo. Uma mulher. Bem no fundo.

Um feminino?

Muito desejo. Muita pulsão provoca muito endurecimento a Maria. Evoca frases de punição. Provoca. Ela precisa morrer de tanta vida. Quanto mais forte mais dura ela fica. Mulher faixa usa faixa pra fugir da castração. É inteira. Total. Castração é morte. Morte de um ideal. Lugar onde pensamentos nefastos são perdoados. Palavra estranha essa. Castração, a palavra estranha. Palavra estranha é castração. É ameaça.

Cala boca! Enfaixa. Enfaixa.

Castração - "Não calo" - lugar onde tudo convive. Maria Dasfaixas é quase viva porque nunca conseguiu morrer. Quando se consegue abre um leque de possibilidades. Isso é castração, uma paleta de cores e possibilidades. É não faixa. Se pudesse ter morrido poderia viver livre. Mas não. Ainda não. Talvez até o fim destas linhas. Mas ainda não. É preciso processo pra rasgar destino.

Uma determinada mãe deseja que seu filho seja inteligente, a criança, marcada por esse desejo, dependendo de certas vicissitudes, poderá vir a ocupar o lugar da inteligência - Substantivo: lugar totalizante, fechado, e poderá nunca vir a ter acesso à adjetivação. (Lima, 1995, p. 73)

Maria Dasfaixas. Dasfaixas é substantivo, destino imutável? Ou é adjetivo? Atributo mutante, como Maria Morena. Maria do Miltinho. Maria que gosta de verde. Maria corinthiana. Ela é das faixas ou está com elas?

A ela parece substantivo, vozes do destino. Escritas no escuro da noite. Nas embarcações vindas do além-mar. No transgeracional. Numa gramática pronta. Voltada aos olhos castanhos de um país.

Inveja as adjetivadas. As mais livres das coisas que a definem. Poderia ser Dasfaixas se fosse também Maria das Dores, das Alegrias, dos Amores, dos Ardores. Com mais trânsito entre eles, não sempre presa ao Dasfaixas. Mas como? Como se faz isso? Uma coisa sempre será uma coisa. Eu disse coisa? Sim, disse isso. Maria Dasfaixas luta para ser total. É coisa. Substância. Substantivo. Duro. Colado. Falta de processo. A culpa faz alimentar a onipotência, driblar a castração. A culpa. Dasfaixas, a condenada. Sem ser julgada. É Dasfaixas.

É. Seu eu, um eu condenado de faixas. Um afastamento qualquer de sua identidade totalizante a tira do prumo. Maria Dasfaixas tem esse corpo gramatical. Ela é. Muito eu. Pouco sujeito. Esse mesmo, enfaixado e seduzido por palavras ditas.

Ditadura.

Sem carne.

Ditadura não liga pra carne. Precisa seguir uma ideia nefasta. Pouco importa se é nefasta, precisa seguir uma ideia. Navegar não é preciso. Viver é preciso.

Desde pequena. Isso importa para Maria Dasfaixas. Uma ideia. Tão platônica. Muito ideia e pouco corpo. Desde pequena.

Pequena. Lugar infinito de parada que faz morada até hoje. Maria Dasfaixas tem idade. Mas vive seu infantil duro. Branco e cheio de cola. Uma faixa após a outra. Mais cola. E cola. Nada pode parecer remendo. Remendo é feio. O eu é preciso ser inteiro. O de Maria Dasfaixas. Como se o corpo infantil ganhasse grandeza nas faixas. Crescesse assim. E não com carne. Osso. Sangue. Até cresceu, mas a adolescência, a bela e curva adolescência a tirou do tempo e voltou-a à infância. Ao infantil. Com força. A adolescência tem mania de fazer corpo na gente.

O corpo precisa, de comida. A psique deseja, macarrão. Instinto e pulsão. Corpsíquico. Continuando, a adolescência tem mania de colocar brilho nos cabelos e olhos. Tem mania de fazer o desejo pulsar loucamente até quase parar. Tem mania de fazer menina virar mulher. Então volte sua pecadora. Volte pro infantil de onde Maria Dasfaixas nunca deveria ter saído.

Aperta o que pulsa. Até quase parar. Não pare. Nada pode amolecer. Precisa estar presa. Tira esse troço pulsante. Deixe sem respirar. Não há problema. Mas não me venha com liberdades. Condenada. Condenada a dureza. Condenada a ferro. Condenada! Condenada!

Pulsão. Pulsão. Pulsão.

Seria isso um pulso grande? Enorme? Sem tamanho?

A vida se tira pelos pulsos. Por isso pulsão?

Seria isso um coração que bate? Coração não pensa. Quer bater. Não tem tempo pra pensar. Quer bater. Bater. Bater. Sem juízo. Sem parada. Constante. Coração é um órgão. É orgânico. É corpo. É compasso.

Pulsão. Seria isso uma dor de cabeça? Que lateja. Fricciona. Aperta feito contrição. Estou certa que não seria um ato de contrição.4 A pulsão não peca, é amoral. Sem juízo. Sem juízo. Como sem juízo? Corpo enfaixado é corpo com juízo. Para o bem e para o mal e não para além de bem e de mal.

Pulsão. Seria isso vida? O que faz viver? O que movimenta? Faz correr? Andar? Se mexer? Energia? Força? Que danado é isso de pulsão?

É morte? Como pulsão pode ser morte? Morte? Se é pulsão?

Nome de morte não combina com pulsão. Mas a morte traz pulso. Pulso forte. Reconhece a vida em sua potência. Ah! A morte! O que seria de nós sem a morte? Há que morrer. Há que lutar. Há que acabar. Haja luta. Há que viver.

Pulsão.

Pulsão é um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal; o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a sua meta. (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 394)

Nada nada poético.

Pulsão é poesia. Inexistente na língua portuguesa. Uma língua criada.

Quem dirá que isso não é poesia? Quem dirá?

Na poesia quando se diz dono da palavra, quando se diz guardador de palavra, ela, a poesia, não existe. A poesia está nas palavras jogadas ao mundo, soltas, livres. Elas te atravessam. Arrombam. Devoram. Passam por você. Nunca serão suas. Nunca. A escuta analítica, também, é poesia. O feminino. A pulsão.

Pulsão. Criada para dar conta de algo explosivo, vulcânico. Big bang é pulsão. Explosão é expansão. Destruição e vida num fenômeno só. Uma expansão de matéria se movendo. Continente negro escuro de mulher. Matéria vindo de dentro. Gerida em sangue. Concebida no amor. Ou não. Vida soberana. Morte também. De uma explosão nasce vida. Do universo. Vida humana. Pulsão de morte traz vida. Arriscado dizer-se assim. Mas a vida vem de uma grande expansão. De encontro. Do Big bang. Do continente da mulher que recebe em si o sêmen. De uma explosão, de um parto.

Parto, na língua portuguesa, conjunto de fenômenos mecânicos e fisiológicos que levam a expulsão do feto e seus anexos do corpo da mãe. É preciso abandonar a gramática. Subverter a gramática, como diz o poeta Manoel de Barros, preferido de Maria. Maria Dasfaixas tenta subverter - Parto - lugar de partir de onde veio. Lugar de trabalho. De difícil elaboração. Mas parto, de onde vim e pra onde não sei. Lugar do feminino. Não sei. Toda faixa certeza não é feminino.

Há que se aprender
Uma outra língua
em nós.
O estrangeiro.

Pulsão pode ser o feminino? O estrangeiro? A não faixa?

[trieb]:

1. força interna que impele ininterruptamente para a ação, ímpeto perene (também utilizado como verbo).

2. tendência, inclinação.

3. instinto, força inata de origem biológica dirigida a certas finalidades.

4. ânsia, impulso no sentido de algo que toma o sujeito, vontade intensa (também utilizado como verbo).

5. broto, rebento. Designa, na botânica, o broto que nasce do caule (também utilizado como verbo). (Hanns, 1999, pp. 69-70)

O que seria o feminino? O não ser. Força, tendência, instinto, ânsia, broto. Aquilo que está sempre sendo. Naquele quase exato momento. O que é esse feminino?

É estar por um triz. Risco. Força. Ânsia, ânsia de vida. É puro desejo. Desamarrado. Livre. É pecado. Nem é. Pra pulsão não existe certo e errado. Confundi pulsão com feminino. Fundi. Inconsciente na escrita.

Pulsão, palavra que não existe no dicionário português. Palavra inventada. Manoelização da palavra. Aberta feito arco-íris em dia de sol com chuva. Desassossego pra psicanálise. Alimento de analistas. Lugar de explosões e expansões.

Além disso, a forma aberta do conceito, o fato de ele, como diz Freud, "poder ser aceito ou não", de acordo com os critérios do leitor, significa uma espécie de nova emancipação da teorização psicanalítica, que, a partir do Além do princípio do prazer está livre de um novo modo - liberada pelo próprio Freud - para se indagar a respeito de suas coisas. O além do princípio do prazer de Freud é um conceito aberto à pesquisa posterior, e assim ele foi de fato construído. Trata-se de um conceito não necessário, como eram necessárias as noções freudianas da primeira fase da sua teorização - pulsões sexuais, censura, defesa, recalcamento etc. -, mas necessário de um modo diferente, como um forte impulso de renovação da psicanálise. (Ab'Sáber, 2018, pp. 34-35)

Além do princípio do prazer abre campo. Como o feminino abre para Dasfaixas. É incerto. Não fecha. Não conclui. Não é provido de certezas. Só incertezas. Um texto genuinamente feminino no corpo de Freud. Um não sei que abre. Abre a paleta da existência. Sua voz é pra além do que se sabe. Sua voz é dúvida. Abertura. Uma outra língua. Uma nova gramática.

Maria Dasfaixas não. É certeza, assolada pelo supereu. A faixa é a própria sentença tentando cobrir a vida. É a falta de movimento. Dura como canhão. Ferrenha como um tanque.

Mas não.

Maria Dasfaixas cria língua quando escreve. A arte. Querem acabar com a arte. País fechado. Extermínio do outro.

Pare! Você está indo longe demais. Volta aqui. Não saia disso.

Vozes encobridoras da pulsão - "Continuo" - nada define pulsão. Ela é indefinível. Plástica. Malemolente. Escorre feito água. Uma cachoeira de rio abaixo. Vai vai. Sua meta é o mar. Ou um lago. Ou a destruição de uma casa. Ou a construção de outra. De um corpo. Sua meta é alcançar por onde se deixar. Ela é vida? Ela é morte? Ela é mortevida.

No que concerne ao campo psicanalítico de ideias, só podemos presumir que se realiza uma fusão e amalgamação muito ampla, em proporções variáveis, das duas classes de instintos, de modo que jamais temos de lidar com instintos de vida puros ou instintos de morte puros, mas apenas com misturas deles, em quantidades diferentes. (Freud, 1924/2006a, pp. 181-182)

É conservadora. Quer porque quer retornar pro lugar de onde veio. Mas não, nunca se conforma. Nem com o rio. Nem com o mar. Nem com nada. Ela não para. Nunca. Nunca se conforma. Sua repetição não se conforma. Nunca. Só quando morre. Morre mesmo. De morte morrida. Antes disso ela vive. Às vezes morta, às vezes pulsando pra ser vida. Parece até que é uma coisa só. Aposto nisso. Maria Dasfaixas me diz que é isso. E pensando em teoria e clínica, fico com a clínica e faço minha própria teoria no encontro. No acontecimento. No outro. Em Maria Dasfaixas.

Feminino pulsão. Pulsão feminina.

A pulsão é feminina? Reparem no artigo a. Mas "o" também pode ser feminino, pelo menos na gramática inventada. Invenção do eu.

Volta. Não vá longe demais. Volta pra dentro.

O destino não é feminino - "Não volto" - o destino fecha todas as possibilidades. Maria Dasfaixas, sua crença é destino. Está fechada. Lacrada. Substantivada. Em sua gramática não há adjetivos. Processo. Não há mais ou menos. É tudo total. Absoluto. Não há castração. Só há lugares totais. Castração se dá no momento em que se vê incompleto. Não tudo. Mas a faixa. A faixa traz isso. Nada de buraco. Nada feminino. Tudo duro feito pau. É morte. Pulso enfraquecido. É condenação. Eu preso. Culpado.

Não! Não saia daqui. Aqui é um lugar seguro! Fecha as pernas, mulher.

Sendo a pulsão considerada como quantidades de exigências para a vida psíquica, dá trabalho - "Saio sim" - lugar de fazer trabalho. Trabalho do aparelho. Trabalho do corpo. Trabalho de desenfaixes corporais para atingir o psiquismo. Ela vem crua. Com força brutal. Se depara com eu. Esse eu precisa de uma identidade. A pulsão ameaça o eu, ou melhor, o eu se sente ameaçado pela pulsão. O feminino dá medo.

Todo eu é machista?

O eu luta. Desesperadamente para ficar de pé. Para ter um nome. Pra ser substantivo. E se identifica com o bom. Com o belo. Com a verdade. É duro. Enfaixado.

É improvável que o senhor não esteja errado, mas por que sempre a verdade? (Nietzsche, 1885/2005, p. 21)

A verdade tem a ver com a identidade?

Aperta essa faixa. Seja boa. Boa! Não levanta esse braço. Obedeça sempre. Sempre. Pessoa desobediente não alcança o céu. Fica dura. Sem se mexer. Congele. Não dialogue. Você pode se perder. Desaparecer. Congele. Deixe o outro de fora. O estranho. Ele rasga e estraga tudo. Proteja o seu país. Contrários não!

Maria Dasfaixas não consegue ter sua gramática - "Desobedeço" - responde a um julgamento sem juiz. Ela é filha. Filha da culpa.

O próprio sofrimento é o que importa; ser ele decretado por alguém, que é amado ou por alguém que é indiferente não tem importância. Pode mesmo ser causado por poderes impessoais ou pelas circunstâncias; o verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha oportunidade de receber um golpe.
(Freud, 1924/2006a, p. 183)

Seja sempre boazinha. Assim não sofre. Não olhe pra fora. Vira pra cá. Pra dentro.

Mas dentro de Maria, inscrito na própria faixa está sua libertação - "Não olho" - o eu pode crescer. Não precisa se proteger das provocações. Ele pode ficar grande. Sair desse infantil. Maria Dasfaixas cresceu. Outras possibilidades. Outros arranjos.

Um eu que age. Ação. Que faz sua própria gramática. Um eu incompleto. Cheio de buraco. Com espaços vazios. Lugares descobertos. Vácuos. Um eu que toma chuva, se rasga ao sol. Se inunda. Se esvazia. E cresce. E acolhe tudo tudo que ele não conhece. Acolhe.

Mas como essa libertação pode ocorrer? Como?

Outras vozes? Outras vozes. Vindas de um processo de análise. Da escuta das vozes do pecado. É preciso ouvi-las. Entendê-las. Abraçá-las. Saber de onde vem. A que veio. Injeções de amor. Vindo de um lugar que não o comum, mas de um lugar transferencial. Uma escuta feminina. Aberta. Pulsional. Vinda de processo. De incerteza com a própria certeza. De rasgos. Pedaços deixados ao chão. De desamparo. De excessos de vida causados por pânicos suportados. Suportar um não eu. Um outro. Um estranho dentro.

Outro? Precisa de proteção. Outro?

Seria o feminino, lugar obscuro, continente negro dentro da psicanálise freudiana - "Não, você não é única" - lugar breu assim como o da pulsão? Lugar de uma escuta outra que não a acostumada. Lugar de novas vozes. Frases. Gramática inventada. Lugares escuros escusos onde moram desejos impulsos e pulsos. Onde habitam liberdades, continentes nunca explorados. Lugares não eu. Da diferença. Lugares sujeitos. Blocos submersos azuis prontos pra serem explorados.

Libertação vem de um outrodentro que vem de fora. Assim... Você conta a sua história, associa livremente e um outro fora, analista, escuta. Pega cada faixa e dá um outro tom. Um outro afeto. Borra a palavra. Poetiza. Tira certeza. Destrói muros, muros fálicos. Vai fazendo buracos lentamente, dando espaços para pulsão. Sem condenação. Sem condenação. Experimentações de euoutro. Dentro. Feminino. Lugar de não sei.

Maria Dasfaixas não lava suas faixas, vai substituindo palavras. Experimentando novas. Oferecendo a face não para apanhar, mas pra se mostrar. Mostrar os olhos, boca, pernas. Buracos. Na faixa, no muro. Na análise. Uma outra voz:

Essa também é você. Que estranha essa voz. Essa também é você. Como?

Ela tenta. Mas nada é definitivo - "Eu?" - a pulsão de morte tem uma forte tendência a voltar ao que era antes. Antes do nada. Volta um tanto. Voltas com vida e morte. Assim vive. Pulsão de morte dando trabalho pra vida. Vida. É preciso trabalhar. Pulsão de vida.

Só que tem uma outra que chega. Vida. Uma outra subversão, gramatical. Outra mulher? Outra? Sim. Outra pulsão. Mas não outra fora. Outra dentro. A mulher que chega é a pulsão. Ela vive dentro da faixa. Resquícios de letras. Essa outra mulher vive dentro. Ela mesma. A estranha em si. Adjetivada. Louca. A outra adjetivo, motivo de inveja de Maria Dasfaixas. Ela mesma. A outra, mulher. A outra do mesmo sexo. A outra em si. A pulsão é a outra. Estranha ao eu. A estranha que entra rompendo barragens. Diques. Sustentando o destempero. A alucinação. A loucura da não unidade. Do encontro das águas. Parada. Corrente. Força. Forças desconstruidoras. Destruidoras e construtoras de si mesmo.

Ela vive e dura o tempo que merece. Um segundo.

Um acontecimento. Uma adolescência. Uma mulher. Uma mulher é um tempo.

Uma poesia.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. (Beauvoir, 1949, p. 9)

O outro. A outra de Maria Dasfaixas. O eu de Maria Dasfaixas reconhece seu outro pela voz de outra mulher. A analista encarna a pulsão de Dasfaixas. Dessa forma, ela consegue se relacionar melhor com seu estranho. A transformação é na transferência.

Essa mulher pulsão que chega também é você. Alucina a unidade. Arranca faixas. Deixa-as desuniformes ao chão. Jogadas.

Como viver sem faixas? Maria Dasfaixas? Vai perder sua identidade.

Dasfaixas é substantivo ou adjetivo? Está parecendo adjetivo. Dá pra mudar - "Vivo sem faixas. Estou" - nua. Livre. Erótica. Insuficiente. Sem destino. Pega de surpresa por vozes analíticas. Analista é um furador de certezas. Um produtor de mulheres. Encarnador de feminino. Um sujeito que não sabe. Analista que não sabe faz Maria des-saber de coisa certa. De destino. Analista que não sabe é castrado. Dá voz ao pecado, da carne. Carne nua. Inédita. Crua. Carne e pulso e Leila e Simone e Marielle... e Carmem...

O que impele Carmem, ao contrário, para as suas aventuras inesperadas é tão somente a fruição de viver livremente, tanto quanto seja possível, é claro. O resto não lhe interessa absolutamente, pois é o resíduo descartável de sua substancialidade erógeno. Por isso mesmo, pode ser eliminado e esquecida para sempre, já que é incorpóreo no seu estado quase puro. Carmem poderia dizer de boca cheia que tudo aquilo que é corpóreo não lhe é estranho, na medida em que a mobilidade encantada de seu corpo, propiciada pela liberdade de seu desejo, lhe basta inteiramente. Enfim, isso define de maneira eloquente a suficiência de Carmem, marcada que é na sua raiz pelo valor da insuficiência, o que abre definitivamente o seu ser para o outro e para o mundo. (Birman, 1999, p. 69)

Carmem, personagem operística de Bizet, é aquela outra que vive nas faixas, no entre, na carne de Maria. Ela zomba das faixas. Tem corpo. Desenfaixe. É Carmem Miranda, Carmem trágica. Sem dramas. Carmem virando.

É por isso mesmo que Carmem é uma personagem completamente encorpada e incorporada na sua carne, da ponta de seus pés à raiz de seus cabelos, já que tão somente a finitude da experiência mundana pode possibilitar a radicalidade presente na sua corporeidade. (Birman, 1999, p. 69)

Maria Dasfaixas junta super, eu, com isso. Quando faz isso vira Maria das Juntas, Maria do Isso. Do eu. Do super. Maria do Agora. Maria não coisa. Maria Sendo.

Sendo pulsão. Sendo feminino. Sendo inédita. Muda o texto. Vira poesia. Poesia em faixas.

Mas é um eu contaminado com o processo primário? Processo primário é poesia, também. Eu - poesia - poesia no eu.

Um eu mole. O eu é sempre desenfaixado e por isso, talvez, sempre enfaixante. Eterno conflito vivo. Acaba em morte.

As faixas caem ou viram poesia. Viram...

Dasfaixas? Dasfaixas?

Minha mulher acaba de nascer e morre. É trovão. Um passo. Uma curva.
Um instante. Morre sem registro.
Minha mulher tem um inimigo forte. Só de pensar em nascer mata. Sem dó.
A todo instante.
Minha mulher não vive.
Vive.
É relâmpago. Forte. Brilha. Mas racha em uma árvore qualquer. Mata.
E morre. E vive.
Minha mulher é bonita. Não pode. Não deve.
Impermanência.
É bonita.
Chuva de verão. Vem com tudo. Enche bueiros. Mata.
Minha mulher não.
Minha mulher sim.
É lampejo. Passageira.
Minha mulher é um traço. Fino. Leve.
No papel.
Não usa shorts. Só decotes.
Batom.
Nada de mulher.
Tudo de mulher.
Minha mulher acaba de viver e morre. Aqui. De vez. Em quando.
Na janela do quarto. No cigarro. Morre cinza. Sem sol e bronze.
Sofre ataques invisíveis. Duradouros. Incessantes.
Minha mulher fraqueja. Toda hora. Toda hora.
Se assusta. Luta. Minha mulher se apavora.
De ser.
De ser mulher.

 

Referências

Ab'Sáber, T. (2018). Prefácio: Freud e o ensaio Além do princípio do prazer. In S. Freud, Além do princípio do prazer (pp. 21-40). L& PM.         [ Links ]

Beauvoir, S. (1949). O segundo sexo. Nova Fronteira.         [ Links ]

Birman, J. (1999). Cartografias do feminino. Editora 34.         [ Links ]

Freud, S. (2006a). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 173-188). Imago. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

Freud, S. (2006b). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 285-310). Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (2006c). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 17-192). Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Geres-Ambertín, M. (2003). As vozes do supereu. Educs.         [ Links ]

Hanns, L. (1999). A teoria pulsional na clínica de Freud. Imago.         [ Links ]

Laplanche, J. e Pontalis, J.-B. (2001). Vocabulário da psicanálise. Martins Fontes.         [ Links ]

Lima, A. A. S. (1995). Pulsões: uma orquestração psicanalítica no compasso entre o corpo e o objeto. Vozes.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2005). Além do bem e do mal. Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1885)        [ Links ]

Prado, A. (1979). Solte os cachorros. Nova Fronteira.         [ Links ]

 

 

1 Artigo elaborado com base em monografia apresentada no segundo ano do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no seminário Pulsões, coordenado pelo professor Tales Ab'Sáber.
2 As vozes do supereu de Maria Dasfaixas virão em itálico.
3 O eu de Maria Dasfaixas virá entre aspas.
4 Uma oração cristã que expressa a tristeza do pecador pelos seus pecados cometidos.

Creative Commons License