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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

O negacionismo: uma leitura psicanalítica de O castelo branco, de O. Pamuk

 

Negationism: a psychoanalytic reading of The white castle, by O. Pamuk

 

 

Fabiano Chagas RabêloI; Karla Patrícia Holanda MartinsII

IPsicanalista, professor do curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPAR), doutor em Psicologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), participante da Letra Freudiana - Escola de Psicanálise - Fortaleza / fabrabelo@gmail.com
IIPsicanalista, professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista PQ do CNPQ - Fortaleza / kphm@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo realiza uma comparação entre a resposta à epidemia no romance histórico ficcional O castelo branco e a situação pandêmica brasileira atual. Questiona-se a lógica que pauta uma série de decisões equivocadas e reincidentes do governo federal, para daí investigar as diretrizes do discurso de negacionismo que as fundamentam. Salientam-se as diferenças e semelhanças entre o negacionismo e outras formas de crenças como a fé religiosa, a superstição e a convicção baseada em fatos. Pergunta-se como, em um contexto politicamente conturbado, teocêntrico e ditatorial, os personagens da trama do livro conseguem mobilizar uma campanha sanitária eficaz, enquanto no Brasil, em um ambiente democrático e supostamente laico, as autoridades hesitam em tomar as medidas necessárias. Os referenciais conceituais utilizados são conceitos freudianos de ferida narcísica, narcisismo das pequenas diferenças, ilusão e desmentido (Verleugnung).

Palavras-chave: negacionismo, pandemia, psicanálise, ciência, religião


ABSTRACT

The article makes a comparison between the response to the epidemic in the fictional historical novel The white castle and the current Brazilian pandemic situation. The logic that guides a series of wrong and repeated decisions by the federal government is questioned, in order to investigate the directives of the negationism discourse that underlie them. The differences and similarities between denialism and other forms of beliefs, such as religious faith, superstition and fact-based conviction, are highlighted. One wonders how, in a politically troubled, theocentric and dictatorial context, the characters in the book's plot are able to mobilize an effective health campaign, while in Brazil, in a democratic and supposedly secular environment, the authorities hesitate to take the necessary measures. The conceptual references used are Freudian concepts of narcissistic wound, narcissism of small differences, illusion and denial (Verleugnung).

Keyword: negationism, pandemic, psychoanalysis, science, religion


 

 

Introdução

Este artigo comenta o livro de Orhan Pamuk (2007), O castelo branco, à luz dos acontecimentos desencadeados pela pandemia de covid-19 no Brasil, sublinhando o negacionismo sistemático do governo federal em relação às recomendações científicas para a prevenção e o tratamento dessa doença. Questionam-se, portanto, a partir da psicanálise, os fundamentos dessa atitude e o apelo mortífero que ela desempenha sobre uma parcela da população.

Publicado originalmente em 1979, o livro narra a convivência entre um ilustrado italiano em situação de escravidão e um mestre cientista otomano. Ambos vivem nos arredores de Istambul, durante o califado de Mehmed IV, em meados do século XVII. Em um determinado momento da trama, cuja estrutura é de um romance ficcional histórico, os protagonistas são surpreendidos pela eclosão de uma epidemia de peste negra. A dupla consegue então, a duras penas, convencer os governantes locais de implementar uma quarentena e um mapeamento cuidadoso dos casos da doença. Tal iniciativa, avaliada inicialmente com descrença pelos poderosos locais, mostra-se capaz de reduzir o número de contaminações, além de indicar alguns fatores relacionados ao avanço da peste, que embasam então uma nova proposta de erradicação da doença.

Quase quatro séculos depois, no contexto da realidade brasileira atual, no qual o método científico é difundido e consolidado - o que não implica dizer que os resultados das pesquisas científicas sejam mais facilmente aceitos e assimilados -, são notórios os inúmeros equívocos dos governantes que, diferentemente do exemplo do romance, insistem em ignorar a orientação dos especialistas, o que vem produzindo consequências desastrosas. Assim, embora não falte assessoria científica qualificada, a inação do governo federal diante dos desafios impostos pela covid-19 culminou em internamentos e mortes em massa. Tal situação, ao que tudo indica, parece estar se repetindo em um novo ciclo mais acentuado.

Ao contrário do governo britânico, cujo primeiro-ministro, após inicialmente ignorar a doença, mudou de estratégia para então liderar uma ampla campanha de lockdown, testagem em massa e fabricação de vacinas, no Brasil as ideias negacionistas ainda continuam a ser amplamente divulgadas e defendidas pelo presidente e por seus ministros, apesar do consenso científico mundial sobre as diretrizes sanitárias recomendadas.

Vale a pena especificar a amplitude da tragédia: o número mais recente de vítimas da pandemia supera 210 mil pessoas.1 Essa conta é acrescida a cada dia de mais centenas de mortos, sem incluir a possibilidade bastante plausível de subnotificação de óbitos por covid-19. Essa conta poderia ser bem maior se fossem incluídas as vítimas indiretas, isto é, aquelas pessoas que faleceram em decorrência de outras doenças, pois não receberam o tratamento adequado devido à sobrecarga da rede local de saúde. Com efeito, após 10 meses de pandemia, os adiamentos e cancelamentos de atendimentos, cirurgias e tratamentos para algumas patologias que não a covid-19 vêm se acumulando, criando uma demanda reprimida e um novo contingente de vítimas.

Da mesma forma como acontece com o sistema de saúde, em muitos centros urbanos outros serviços públicos, como os responsáveis por sepultamentos, estão colapsados ou operando em situação crítica. Somando-se a esse quadro a paralisação de muitas escolas e creches e a redução das atividades econômicas, constata-se que a qualidade de vida da população, especialmente a da parcela mais desfavorecida, está substancialmente comprometida, pelo menos a médio prazo, numa avaliação mais otimista. Isso quer dizer que o argumento dos negacionistas de que a economia não poderia parar acabou por agravar ainda mais a conjuntura econômica e social.

Voltando ao livro, dois artigos científicos recentes se dedicam ao seu comentário. O primeiro, de orientação psicanalítica, ocupa-se da autoridade na relação transferencial e do narcisismo como um limite à elaboração psíquica (Rabêlo, Martins e Martins, 2019). O segundo (Moura e Durães, 2020), no âmbito da teoria da educação, trata da importância dos interesses e motivações pessoais no processo de aquisição de novos conteúdos científicos.

Entende-se que, no limite entre esses dois recortes, desponta o tema do negacionismo, que se tornou urgente no esteio da pandemia de covid-19. Isso porque a conscientização da importância do isolamento social e do uso de máscara em ambiente público é um problema simultaneamente pedagógico, psicológico e político. A sociedade se vê diante do desafio de informar corretamente, em tempo hábil, valendo-se de várias mídias e estratégias, além de combater a desinformação e os efeitos grupais de incitamento ao ódio, ao confronto e ao preconceito.

Desse modo, mesmo com a ressalva de que o livro de Pamuk se trata de uma obra ficcional, cabe perguntar: por que um governo absolutista, teocrático, numa época em que o discurso científico moderno ainda engatinhava, em um ambiente político conturbado e instável, mostra-se mais apto a tomar medidas de contenção diante de uma situação pandêmica do que o atual governo brasileiro que, pelo menos oficialmente, é laico, republicano e democrático? De que forma qualificar o discurso negacionista no contexto da atual pandemia? Como ele se relaciona com a recente onda nacionalista e populista de extrema direita?

Este texto obedece à seguinte estrutura argumentativa. Na primeira parte, faz-se um comentário do livro citado, destacando o estado da ciência no momento histórico da trama, a relação dos protagonistas com as figuras de autoridade do Império Otomano e o processo de articulação coletivo que eles mobilizam para responder à urgência da pandemia. Em seguida, discute-se a conjuntura brasileira atual, com foco na análise do fenômeno do negacionismo. Para isso, tomam-se como referencial teórico os conceitos freudianos de desmentido (Verleugnung) (Freud, 1927/1997a), ilusão (Freud, 1927/1997a) e identificação ao líder nas massas (Freud, 1921/1997c).

Trata-se, portanto, de um ensaio de caráter teórico, político e literário, que toma a psicanálise como referencial para pensar criticamente a situação brasileira atual no contexto da pandemia de covid-19.

 

Entre a teologia e a ciência

A abordagem que se faz do texto de Pamuk (2007) se limita ao comentário de um trecho no qual os protagonistas lideram uma mobilização para conter o avanço da peste negra, em meados do século XVII. Para entender as dificuldades que permeiam essa empresa, faz-se necessário descrever primeiro em linhas gerais a trama do livro e as características dos personagens principais.

Estes são dois homens aproximadamente da mesma idade - um deles é 5 ou 6 anos mais velho que o outro -, muito parecidos fisicamente. Durante a narrativa, eles não são designados pelos nomes próprios, mas por suas posições sociais e procedências: o mestre otomano e o escravo veneziano. Apesar de ocuparem situações sociais assimétricas e de possuírem percursos culturais bastante discrepantes, eles compartilham a paixão pela pesquisa científica. Daí que Hoja, palavra que em árabe significa mestre ou senhor, mesmo desprezando os hábitos e as crenças religiosas do escravo - a quem, por ser cristão, considera um infiel -, empenha-se em fazer com que seu subalterno lhe transmita todos os conhecimentos no campo das artes e da ciência aprendidos no Ocidente. Já o veneziano, ainda que demonstre uma atitude inicial de desprezo com os otomanos, aos quais tinha, no início da trama, como bárbaros, violentos e sem cultura, pouco a pouco vai assimilando a concepção de mundo e o modo de ser dos seus algozes.

Nessa relação, destaca-se o legado árabe para a constituição da ciência moderna, que, no momento da trama, encontra-se ainda em estado embrionário. Vale salientar que muitos textos da Grécia clássica banidos do cânone ocidental católico só foram recuperados por meio dos livros de eruditos árabes, traduzidos por pesquisadores europeus após o Renascimento. É ainda digna de nota a importância da invenção da aritmética e da inclusão do zero no sistema de contagem dos algarismos arábicos, ambas descobertas de pensadores árabes.

Como destaca Koyré (2006), a ciência moderna inicia-se com o abandono de uma explicação dos fenômenos da natureza conforme a tradição clássica, que se fundamentava na atribuição de uma essência particular a cada coisa. Tal perspectiva, que remonta ao idealismo platônico, pressupõe a correspondência parcial entre o devir dos objetos do mundo e os seus modelos correspondentes no plano das ideias. Deriva daí uma concepção de mundo ptolomaica que professava que todo astro movimenta-se na abóbada celeste conforme a sua própria natureza intrínseca. Trata-se, portanto, de um modelo no qual a Terra é tida como plana, ocupando uma posição central em relação aos demais astros, que orbitam ao seu redor, numa estrutura análoga a uma semiesfera de cristal. Posteriormente, tal perspectiva foi adaptada pela tradição cristã ocidental como forma de representar fisicamente a localização do paraíso e do inferno. Assim, o primeiro deveria se situar no limite dos astros da abóbada celeste, enquanto o último ocuparia um lugar abaixo da superfície da Terra.

É importante assinalar que essa representação está intimamente relacionada à percepção imediata dos fenômenos e de uma visão de mundo religiosa. Para se desvencilhar dessa concepção foi necessário recorrer a diferentes mediações, o que acontece por meio da criação de modelos explicativos, do uso de uma linguagem matematizada e da criação de instrumentos de observação e medição. Sob essas premissas, os astros, que supostamente possuíam um comportamento singular e único, passam a ser explicados a partir de uma mesma regra. Apenas a partir dessa mudança, o movimento dos astros e a atração da força da gravidade passam a ser compreendidos como fenômenos que possuem uma mesma e só causa.

Pode-se dizer então que, no momento histórico da trama, no alvorecer da ciência moderna no Ocidente, os pensadores árabes talvez estivessem mais familiarizados com uma concepção de universo heliocêntrica e mais à vontade para expressar suas convicções a esse respeito do que os cientistas cristãos. Por outro lado, tem-se que a mesma concepção teocêntrica islâmica, que no campo dos conhecimentos rendeu bastante frutos, no âmbito da política segue uma rota decadente, marcada pelo culto à imagem do sultão e por um projeto belicista e expansionista, o que compromete a implementação social das descobertas científicas.

No livro, percebe-se que Hoja está intensamente preocupado em se mostrar dedicado às pesquisas que estão em conformidade com o projeto político-teológico do Império Otomano. Ele se empenha em construir um espetáculo de fogos para comemorar o casamento de um casal de nobres, um relógio mecânico para marcar com precisão o horário das orações, um sistema de mapas capaz de identificar a direção de Meca com o intuito de orientar a posição na qual as preces deveriam ser feitas etc. O inventor também é constantemente incitado pelo paxá a criar uma "arma que transforme o mundo em uma prisão para os nossos inimigos" (Pamuk, 2007, p. 47). Hoja, ao mesmo tempo que demonstra acalentar esse projeto, procrastina a sua concretização indefinidamente. Dessa forma, ele consegue garantir tempo e recursos para as pesquisas científicas que considera mais pertinentes.

Dentre os temas de sua predileção, destacam-se os estudos astronômicos. Uma de suas hipóteses é bem representativa do caráter não teleológico do método científico, visto que nele não há garantia prévia de que uma ideia promissora, que desperta o entusiasmo do pesquisador, possa ser de fato confirmada. Hoja busca comprovar a existência de um astro mais próximo da Terra do que a Lua, cuja presença não é percebida em razão de sua órbita peculiar. Ainda que falsa, essa hipótese o leva a construir vários modelos e a desenvolver cálculos que lhe ajudam a se aproximar de um entendimento mais acurado do Universo. Trata-se, portanto, de um erro instrutivo, uma vez que ele pode ser retificado e daí abrir caminho para a formulação de hipóteses mais pertinentes.

Essa é, segundo Freud (1933/1997e), uma das características da visão de mundo da ciência, que é a mesma da psicanálise. Ela é incompleta e parcial. Os dados com os quais o cientista e o psicanalista trabalham são irremediavelmente provisórios, devendo ser corrigidos ou abandonados sempre que uma nova explicação dos fatos se mostrar mais adequada. No caso da psicanálise, a teoria está submetida à prática clínica. Já em relação à física e à astronomia, as explicações devem estar em consonância com a observação controlada e os experimentos construídos para pôr as conjecturas científicas à prova.

O interesse de Hoja e de seu escravo veneziano pela astronomia é facilmente confundido pelos palacianos com uma atividade adivinhatória. Por isso, Hoja é tomado como um concorrente do astrólogo real, sendo frequentemente convocado para interpretar os sonhos do sultão. Uma atividade delicada, pois os adivinhos são, via de regra, acusados de traição e condenados à morte quando suas previsões contradizem os planos dos vizires e paxás.

Secretamente, o mestre também alimentava um projeto pedagógico iluminista. Ele não media esforços para educar o sultão, uma criança de 9 anos entronada ainda muito jovem. Sua meta é torná-lo um monarca esclarecido e racional, alguém que levasse o Império Otomano ao seu auge. Ele sabia, contudo, que essa empresa deveria ser conduzida com descrição e parcimônia, sob o risco de ser acusado de conspiração. Não obstante, Hoja é reiteradamente frustrado diante dos interesses pueris do monarca, que trata os modelos e instrumentos do inventor como brinquedos.

O ambiente do palácio onde vive o sultão é extremamente volátil e conturbado. O regente está sob a tutela da mãe e do vizir, uma mescla de ministro e conselheiro do rei. Ambos acompanham de perto as atividades diárias do monarca, cuidando para manter à distância pessoas consideradas indesejáveis. Por outro lado, há a ameaça dos meios-irmãos do sultão, concorrentes diretos na linha sucessória, e de seus parentes próximos, que tramam a ascensão ao trono de um novo regente. Tem-se então que a própria avó do monarca é condenada à morte junto com seus comparsas por causa de uma conspiração de assassinato frustrada.

Ao mesmo tempo que Hoja tenta instruir o sultão, ele trava uma batalha pessoal consigo mesmo. O inventor quer entender por que os outros são idiotas, isto é, tão avessos à assimilação do conhecimento científico. Seu desafio é situar o que constitui o obstáculo para o conhecimento em cada pessoa. Para além de questões cognitivas, ele encontra nas crenças individuais um forte obstáculo para o acesso à verdade pelo saber. Ele se pergunta por que as pessoas acreditam em tolices e continuam arraigadas a convicções errôneas e equivocadas.

Ao se deparar com esse problema, percebe-se uma forte ambivalência da parte do mestre. Cotidianamente, ele busca contornar o preconceito e a descrença dos governantes, que avaliam as suas iniciativas como bizarrices, inutilidades ou mesmo potenciais heresias. Hoja se irrita então com o que avalia ser a teimosia dos idiotas. Assim, ao mesmo tempo que valoriza a sua própria fé, a sua identidade otomana e despreza os cristãos, ele admira intensamente os ocidentais e as suas conquistas científicas e artísticas.

Tal conflito interior se reflete na relação com o seu escravo, com quem se identifica e, simultaneamente, repreende os hábitos. Cria-se assim uma situação recorrente: ao executar o projeto pedagógico de esclarecimento do veneziano, incitando-o a abandonar a sua fé e crenças, Hoja se depara com as suas próprias crenças como obstáculo para o conhecimento. Ele próprio seria um idiota?

Uma outra atividade desempenhada pela dupla é a de médico. Esse é o motivo para a vida do veneziano ter sido poupada. Ele se apresentou como tal para os corsários que atacaram o navio onde viajava. Por exercer satisfatoriamente tal atividade, ele é então dado como presente para Hoja, que também desempenha o mesmo ofício.

Deve-se destacar que nesse campo, avaliando-se o momento histórico, a tradição árabe estava à frente do Ocidente. Na medicina os textos dos eruditos árabes foram o móbil da transmissão do saber clássico para os pesquisadores europeus, como demonstra o romance O físico, de N. Gordon (1994). Ainda assim, apesar de possuir um estatuto nobre no Império Otomano, a prática da medicina constituía uma atividade de risco. Não era raro que os médicos fossem acusados de envenenamento quando os tratamentos ministrados fracassavam.

É assim que, por gozar de boa reputação junto ao sultão, o vizir e os paxás, por negociar com as crenças, rivalidades, anseios e medos dos poderosos e da população em geral, a dupla consegue mobilizar uma campanha de quarentena e o registro sistemático dos casos de peste negra, o que possibilitou relacionar a doença à presença de ratos. O passo seguinte para a contenção da pandemia foi o extermínio desse transmissor: o incentivo monetário à sua caça, junto com o isolamento social dos doentes e a quarentena do vilarejo em que a dupla morava.

Pontua-se que a observação metódica e o mapeamento minucioso dos novos casos da doença possibilitaram a realização da correlação entre o rato e a transmissão da peste, ainda que o agente etiológico e o mecanismo patológico permanecessem um mistério. Uma vez avaliadas como seguras e confiáveis, tais informações subsidiaram a proposição de intervenções sanitárias, que foram então implementadas em tempo hábil.

Do exposto, partindo do relato de Pamuk, cabe perguntar: o que dizer sobre a política sanitária brasileira durante a pandemia de covid-19?

 

O negacionismo

Percebe-se que o governo federal brasileiro estabeleceu uma orientação de combate à pandemia baseada em premissas falsas, sem um fundamento seguro e confiável, excluindo a possibilidade de uma crítica coordenada. Assim, em vez de aprender e dialogar com as experiências de outros países afetados pela pandemia, o presidente, mais preocupado com questões relativas ao seu projeto de manutenção da farsa e da ignorância, adotou rapidamente e de forma irrefletida uma diretriz de intervenção ineficaz, baseada no uso da cloroquina e da hidroxocloroquina, ao mesmo tempo que desqualificou o uso de máscaras e o isolamento social. A partir daí, sustentou o argumento de que era possível o retorno imediato às atividades econômicas.

Desde o início, os cientistas se mostraram céticos e cautelosos quanto aos resultados dessas diretrizes. Não demorou muito para que elas fossem desmascaradas como placebo e desinformação. Foi o que aconteceu com a quase totalidade dos países do mundo, que voltaram os seus esforços para a mobilização do distanciamento social, a criação de um suporte para os atendimentos emergenciais e o desenvolvimento de uma vacina. Mesmo o ex-presidente dos Estados Unidos, que serviu de modelo para o seu colega brasileiro, seguiu esse caminho após uma defesa inicial frustrada das medicações referidas.

O governo brasileiro, no entanto, mesmo alertado, optou por perseverar na mentira. Essa convicção destemperada levou ao adiamento da implementação de medidas comprovadamente eficazes, como a aquisição e a fabricação de vacinas e seringas, e a promoção do distanciamento social e do uso de máscaras.

Salienta-se, como agravante, que o próprio presidente e as pessoas próximas a ele tomam a iniciativa de espalhar notícias falsas, buscando desacreditar a opinião de cientistas, como ocorreu recentemente em Manaus, quando os gestores do governo do estado do Amazonas foram orientados pelo Ministério da Saúde para a aplicação de cloroquina e ivermectina como estratégia para a contenção da nova onda mais agressiva e letal da infecção de covid-19 (Carta Capital, 2021).

Conclui-se daí que o governo federal está obstinado em manter a mesma linha de atuação, isto é, o confronto direto e continuado, a desqualificação dos argumentos divergentes e o ataque às instituições democráticas. Esse projeto encontra ressonância em um grupo restrito de apoiadores mais radicais. Tal militância possui uma estratégia peculiar, alicerçada em processos psicológicos e políticos, que almejam confundir, inibir o pensamento e anestesiar a opinião pública.

Esse populismo de direita está organizado a partir de algumas diretrizes, cuja designação de obscurantista, no entendimento dos autores, não lhe faz a merecida justiça. Considera-se diferente o pensamento teológico dos séculos que antecederam a era contemporânea do negacionismo de hoje, levado ao paroxismo pelo governo brasileiro. O primeiro decorre de um conflito entre visões de mundo discordantes, o que pode ser exemplificado no livro de Pamuk (2007) a partir da tensão entre as teologias islâmica e católica, de um lado, e o discurso científico em ascensão, de outro.

Já no último, o que está em jogo é um processo de outra ordem. Os negacionistas e terraplanistas não se apoiam em uma visão de mundo coerente, tampouco concordam em abdicar dos produtos da ciência, como à primeira vista pode parecer. O que eles fazem é tão somente a defesa de uma ilusão pseudocientífica. Isto é, a confirmação coletiva de um anseio individual por meio de uma crença ilusória laica, que encobre a percepção imediata do próprio desamparo (Freud, 1927/1997a). Tais crenças não almejam se consolidar por meio da coerência e do diálogo. Elas são fragmentadas, heterogêneas e dificilmente se propagariam sem o suporte da internet e outros meios de comunicação em massa.

Conclui-se então que as crenças negacionistas se apoiam no discurso da ciência, para daí denegá-lo, como acontece no mecanismo psíquico do fetiche (Freud, 1927/1997b). O que quer dizer: aceita-se um fato - no caso do fetichista, a ausência de pênis na mãe - para então afirmar o seu contrário. Isso ocorre pela substituição da percepção da ausência daquilo que, no entendimento negacionista, deveria estar presente por um artefato qualquer, como um véu ou a peça do vestuário feminino, algo que faça alusão àquilo que é desmentido. Assim, a ameaça da pandemia, que exige uma coordenação complexa e coletiva de esforços, é suplantada por uma promessa inconsistente de cura. Tratar-se-ia então de uma gripezinha, com baixo poder de letalidade. Existiria um tratamento medicamentoso disponível capaz de evitar os seus agravos antes mesmo que estes se manifestem. Todo esse alarme criado em torno dessa doença seria, portanto, causado por opositores - comunistas, membros da comunidade lgbt etc. - com intuito de boicotar as iniciativas democráticas e legítimas do governo federal.

Deve-se salientar que, diferentemente dos negacionistas, a ciência trabalha com a falta como motor de seus esforços de pesquisa. Pode-se dizer inclusive que os avanços científicos, via de regra, costumam produzir feridas narcísicas na humanidade, como ocorreu com o heliocentrismo de Copérnico, a teoria do desenvolvimento de Darwin e a proposta psicanalítica do insconsciente (Freud, 1917/2001). Não é a toa que esses pontos são justamente os alvos principais das teorias negacionistas: o terraplanismo, o criacionismo e a crença no líder popular como móbil da emancipação pessoal e garantia da felicidade.

Por conseguinte, o negacionismo pode ser caracterizado como uma defesa patológica do narcisismo diante dos avanços da ciência. A psicanálise, por sua vez, vem demonstrar que esse processo, em se tratando de sujeitos neuróticos, necessita de respaldo coletivo, o que ocorre por meio da identificação à figura do líder, que exerce a função de substituto do pai morto da horda primitiva (Freud, 1921/1997c). Assim, ao ser colocado no lugar de ideal do eu de cada participante do grupo, essa figura desempenha a função de catalisador dos investimentos libidinais, direcionando-os para uma mesma direção. Ocorre então uma transição dos interesses narcísicos individuais para o coletivo.

No entanto, é importante que se diga, essa transição no caso do negacionismo não está respaldada em um princípio ético ou cívico, apesar de frequentemente surgir na forma da defesa de valores morais. Ainda assim, uma participação política é exortada e até mesmo exigida, sem margem para negociação, alicerçada em uma modulação acentuada dos afetos e na urgência de uma tomada de posição frente a uma ameaça imaginária iminente. Cria-se daí um proselitismo que confirma as suas crenças a partir do seu poder de sugestionar outras pessoas para a sua causa.

Tal estratégia pode se apoiar na fé religiosa, mas, na sua essência, prescinde dela. No entanto, ainda assim, o negacionismo possui muitas semelhanças com algumas práticas religiosas coletivas. Todavia, faz-se necessário admitir que, enquanto em muitas religiões e seitas a incitação à conversão de novos fiéis é uma diretriz essencial para o funcionamento grupal, essa característica não é um traço necessário e essencial de toda igreja ou comunidade religiosa.

Uma outra face do discurso negacionista é a estigmatização e a justificação da violência contra quem não compartilha das mesmas convicções. Trata-se da exacerbação do fenômeno a que Freud (1930/1997d) dá o nome de narcisismo das pequenas diferenças. Isso quer dizer que a agressividade que surge como produto da satisfação narcísica coletiva é constantemente canalizada para alvos bem definidos designados pelo próprio grupo, o que contribui para a manutenção da coesão dos membros entre si. Tanto melhor se esse alvo for um semelhante, alguém que difira dos demais integrantes do grupo somente por portar uma marca diferencial.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a produção de dissidências internas também vem corroborar essa dinâmica de funcionamento. A eleição de inimigos internos e traidores é um fenômeno que, além de reforçar os vínculos entre os membros e dar um destino à agressividade contida em cada um, contribui para anular a concorrência que alguns participantes com mais expressão e carisma poderiam eventualmente exercer sobre o líder, fato que acabaria por afetar não apenas os laços verticais - entre cada membro do grupo e o líder -, mas também os horizontais, isto é, de cada membro do grupo uns com os outros. Isso quer dizer que é bem-vindo querer ser igual ao líder, mas está vedado tornar-se de fato um igual.

Com efeito, é possível concluir que essa tensão paira sobre os grupos negacionistas, que tendem a constituir núcleos autônomos, que podem ser então aglutinados em torno de uma liderança principal. A dificuldade do atual presidente brasileiro é, portanto, congregar esses diferentes grupos heterogêneos entre si e direcionar a dinâmica de funcionamento destes em proveito próprio. Percebe-se que ele busca alcançar essa meta radicalizando o discurso de ódio e produzindo ameaças imaginárias.

É importante notar que nem sempre os grupos negacionistas possuem uma ideologia claramente de extrema direita. Como se constata no movimento Querdenken alemão - expressão que poderia ser traduzida para o português como pensamento divergente -, a bandeira da oposição à política de isolamento social e ao uso de máscaras congrega pessoas de diferentes matizes ideológicas, desde neonazistas e supremacistas brancos, passando por fundamentalistas cristãos a pequenos comerciantes, desempregados, exotéricos e ecologistas radicais (Knight, 2020). O que atrai pessoas tão diferentes para o mesmo agrupamento é a existência de grupos na internet que lançam apelos visando cooptar uma militância mais volátil e extremista para uma causa supostamente nobre, ameaçada por um inimigo imaginário forte e cruel.

Cabe ainda demarcar algumas diferenças entre as convicções negacionistas e as superstições. Estas raramente são professadas publicamente. Quem as exerce não reivindica a adesão de outras pessoas a elas. Na verdade, as superstições são frequentemente objeto de vergonha e de sofrimento. Em muitos casos, são até mesmo reconhecidas como bizarrices individuais ou idiossincrasias. A sua origem é cercada de mistério ou descrita como uma compulsão. Por isso, o indivíduo não procura para as superstições o status de uma verdade coletiva.

 

Conclusão

Depreende-se do exposto que, para além de um trabalho de esclarecimento, as dificuldades no combate à covid-19 põem em cena a resiliência de algumas crenças e ilusões coletivas, além do uso político delas. No caso do Brasil, percebe-se que o governo federal, em vez de combater as iniciativas que se opõem às medidas cientificamente comprovadas de combate à pandemia, ele mesmo buscou angariar apoio político desqualificando o discurso de cientistas, médicos e funcionários de carreira da área da saúde. Tem-se daí que estratégias já evidenciadas como falsas de tratamento e prevenção foram difundidas, ao mesmo tempo que informações sérias e corretas foram desqualificadas ou criticadas de forma descontextualizada.

Daí, enquanto na maioria dos países os governantes estão empenhados em combater o negacionismo, no Brasil ocorre justamente o contrário. O governo federal esforça-se em incentivá-lo. Como consequência, percebe-se o aumento da responsabilidade da sociedade civil e de outras instâncias de poder do pacto federativo, que têm então que assumir uma estratégia mais certeira e inabalável, mas também dialógica e democrática, antidogmática, em defesa da vida e da democracia.

Os mais atingidos são os mais vulneráveis, aqueles que poderiam se beneficiar de medidas que, imediatamente, podem parecer amargas, pois demandam um sacrifício coletivo, mas que apresentam um efeito concreto e confiável em um período mais distendido. O governo federal, que poderia liderar uma ação coordenada de combate à pandemia - como vem ocorrendo em muitos países, como a Alemanha -, optou por seguir uma direção oposta.

Cabe a psicanálise perserverar na aposta no sujeito do inconsciente como lugar de emergência de uma verdade que é ao mesmo tempo individual e coletiva. Trata-se de uma verdade que é efeito da falta, daquilo que descompleta os discursos socialmente instituídos. Em última instância, isto com o que a psicanálise se ocupa é o que é desmentido pelos negacionistas.

 

Referências

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1 Este texto foi escrito em meados de janeiro de 2021.

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